Edição 219 - Brasília, 03 de fevereiro a 03 de março de 2019

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Ficção

Caráter
Uma história de adultos

Por Eduardo Haak

Minha irmã tem oito anos. A coisa que ela mais gosta é brincar com sapatos de salto, de mulher.

Não temos sapatos assim em casa, mamãe morreu quando éramos bem pequenos e papai não casou de novo. Às vezes vou passear com minha irmã num mercado que fica aqui perto, um desses mercados gigantes que têm tudo, inclusive seção de calçados, aí ela fica lá, colocando sapatos de salto e tentando andar com eles.

No passeio de hoje minha irmã contou que vem sendo pressionada por uma menina aqui do prédio para assumir a culpa por uma coisa errada que essa menina, que se chama Giovanna, fez – que se minha irmã assumir a culpa Giovanna disse que vai dar pra ela um par de sapatos de salto, que ela vai pegar no closet da mãe. A coisa errada que a Giovanna fez foi colocar debaixo da porta do apartamento 1004 um bilhete onde estava escrito, a Veridiana do 1004 é puta.

Essa mulher que mora no 1004 tem mesmo jeito de puta, ela toma sol na piscina sempre com uns biquínis escandalosos e fica lendo livros sentada com a perna aberta. Perguntei se minha irmã vai aceitar a oferta da Giovanna e ela disse que não, não vai. Então eu disse que ela está certa, que agindo assim ela está demonstrando ter caráter, ser uma pessoa boa.

Giovanna continua pressionando minha irmã para que ela assuma a culpa pelo bilhete, em troca do par de sapatos. Quem aos nove anos já é dissimulada, chantagista e corruptora tem chance de se tornar alguém que preste?

Moramos num prédio de ricos, meu pai não teria dinheiro pra pagar nem o condomínio daqui, mais IPTU, etc. O apartamento é do nosso avô, que é rico e que sustenta meu pai, apesar de meu pai ter quase quarenta anos. Às vezes penso que se meu pai parasse de fumar maconha nossa vida iria melhorar muito – que o fato de ele viver desempregado também tem a ver com essa coisa de maconha. Nosso avô não dá moleza para nós, quer dizer, só dá um pouco de moleza, ele banca o apartamento, paga nossa escola e só. Tanto eu quanto minha irmã somos vistos pelas crianças aqui do prédio como pobres, porque usamos roupas e tênis velhos, então somos excluídos de todas brincadeiras. Eu acho que também foi por isso que a Giovanna escolheu minha irmã para assumir a culpa no caso do bilhete – sim, os ricos aprendem desde cedo que podem usar os pobres como bucha de canhão, se o rico faz uma besteira é só arrumar um pobre e dar uma nota de cem pra ele que o pobre assume a culpa, todo felizinho.

Digo para minha irmã combinar de se encontrar com a Giovanna às nove da noite, na piscina, para elas fazerem a troca. A menina aparece no horário combinado. Então eu a agarro e levo para a borda da piscina e enfio sua cabeça dentro da água e a mantenho submersa primeiro dez segundos, depois quinze segundos, então a largo e digo, nunca mais tente corromper minha irmã, o.k.?

Giovanna vai embora tossindo-engasgada-chorando e minha irmã diz, e agora?, ela vai chegar em casa com o cabelo molhado e vai contar pros pais dela o que aconteceu. Eu digo, tudo bem, é pra contar mesmo. Minha irmã então diz, o papai vai ficar uma fera com você, e eu digo que não, não vai ficar. (Morro de pena quando noto que minha irmã ainda não percebeu que nosso pai é um idiota fracassado. Será uma grande decepção pra ela quando perceber.) Ela então diz que o.k., que o papai não, mas que o vovô com certeza vai ficar uma fera comigo e eu digo que, hum, que é verdade, que é bem provável que o vovô fique bravo. Ela então diz que vai me defender se o vovô ficar bravo e eu digo que não precisa, digo que a braveza dos adultos nunca dura muito, que o melhor que a gente pode fazer quando um adulto fica bravo conosco é não fazer nada, que a gente deve ficar quieto, só esperando que a braveza passe.

 

Eduardo Haak é escritor. Conto originalmente publicado no blog do autor.