Edição 219 - Brasília, 03 de fevereiro a 03 de março de 2019

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Literatura

Corpos dóceis
Romance expõe precarização do trabalho

Por Paulo Lima

Foto: Divulgação

A escritora Sayaka Murata, autora do romance Querida konbini

Simples em sua estrutura, de linguagem direta e fluente, o romance Querida konbini, (publicado pela Estação Liberdade, com tradução de Rita Kohl), da japonesa Sayaka Murata, aborda questões difíceis e delicadas. O livro, que virou best-seller – vendeu 700 mil exemplares no Japão –, conta a história de Keiko Furukura, uma mulher que, aos 36 anos, trabalha há 18 numa konbini, loja de conveniência, tipo de estabelecimento muito popular naquele país.

Furukura começou no emprego aos 18 anos, tendo descoberto a konbini por acaso. Ela vinha de uma infância e adolescência problemáticas, e encontrou no trabalho a oportunidade de forjar uma identidade, um lugar onde pudesse se encaixar no mundo.

O que deveria ser uma ocupação temporária se prolonga por 18 anos. Solteira e virgem aos 36 anos, longeva num negócio de alta rotatividade que costuma recrutar pessoas como apenas uma etapa para um salto maior, ou como “bico”, Furukura é cobrada por familiares e amigas.

Para se livrar das cobranças sociais, inventa o álibi de que tem problemas de saúde, e assim vai ficando e se molda de tal forma à konbini e sua rotina que não pode conceber uma vida fora dela. Furukura está sempre disponível, full time. É uma espécie de oposto de Bartleby, o personagem de Herman Melville que jamais aceita trabalhar. Na konbini, Furukura e os demais colegas são identificados como Funcionários, ou pequenas peças numa engrenagem.

Por meio da história de Furukura, o romance trata das questões do trabalho e da discriminação sexual, revelando uma realidade maior que diz respeito à própria fetichização do trabalho como atributo da realização pessoal, da felicidade. A konbini acaba por penetrar pelos poros da Funcionária exemplar que é Furukura. Molda seu corpo, seus desejos, sua rotina, seu sono. Furukura vive em função unicamente da loja de conveniência. Com ironia, Sayaka Murata expõe essa identificação. Furukura passa a notar que, no ambiente da konbini, os colegas acabam absorvendo os estilos e trejeitos um do outro: mimetizam os modos de falar, de usar as palavras etc. A konbini vai amalgamando todos num único formato padrão.

Essa padronização se dá já a partir da forma com que cada Funcionário deve saudar cada cliente. Irasshaimasê! (Agradecemos pela preferência! Volte sempre!), é o grito previamente ensaiado em treinamentos, como um exército em guerra. “A partir desse momento, nós nos tornamos Funcionários e existimos em função da loja de conveniência”, observa Furukura.

A rotina de Furukura dá uma guinada com a chegada à konbini de um colega fora dos padrões, Shiraha. Aos 35 anos, ele não casou e já é considerado velho para atuar como trabalhador temporário numa konbini. Nessa idade, pelas normas sociais japonesas, Shiraha - bem como Furukura - já devia ter emprego e família estáveis. Diferentemente da colega, porém, o discurso de Shiraha é profundamente crítico. “O padrão do mundo é compulsório e os corpos estranhos são eliminados sem alarde. Os seres humanos fora do padrão acabam sendo retificados”, ele diz.

Carreira e utilidade são palavras caras em meio ao pequeno círculo social no qual Furukura se move. Ou a carreira, ou a alternativa de um bom casamento. Nenhum dos caminhos está a seu alcance. Shiraha, que também é alvo constante de cobranças, elabora criticamente as coisas: “Se você não estiver contribuindo para a sociedade, mandam você procurar um emprego. Se arranja um emprego, querem que ganhe bem. Se está ganhando bem, mandam você arranjar uma mulher e fazer filhos... Somos julgados a vida todinha.” Contudo, enquanto Shiraha esperneia para não ser tolhido pela perspectiva de se transformar num Humano Normal, Furukura a ela se entrega como único caminho possível. A konbini é ela, ela é a konbini.

Escritora premiada, Sayaka Murata trabalhou dez anos numa konbini enquanto fazia faculdade. Querida konbini, portanto, traz sua experiência nesse universo que se torna assustadoramente cada vez mais precário, do qual Furukura é um símbolo trágico ou, como ela mesma diz no romance, “uma boa peça no motor”.

 

Paulo Lima é jornalista e editor da revista Balaio de Notícias.