Edição 219 - Brasília, 03 de fevereiro a 03 de março de 2019

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Crônica

Realismo mágico
O refúgio das palavras

Por Paulo Lima

A cena foi rápida como a aparição de um fantasma. O ônibus parou e, diante da porta aberta, a figura da garota, sentada nos degraus, que lê um livro.

Uma leitora. E jovem. Podia estar cutucando o celular, como um robô, o ar ausente que acomete milhões.

Tão desacomodada, a fantasia da leitura vencendo o desconforto. Não era nenhum trem bala; nenhum assento do metrô; nenhuma poltrona de avião; e sim um ônibus em pleno rush matinal, feito para desencorajar qualquer impulso de boas intenções.

Mas a menina lia, alheia à vida difícil ao redor. E talvez por isso mesmo. No refúgio das palavras, a recompensa, o abrigo do sonho.

Do livro, apesar da rapidez, do vapt-vupt do flagrante, consegui ver a capa. E nesse detalhe reside toda a diferença. ("Detalhes fazem a perfeição", já dizia o filósofo.) Encimando a capa, o nome do autor: Gabriel García Márquez.

Bem que desde o início eu tinha tomado o quadro inteiro como algo inimaginável, na fronteira dos acontecimentos impossíveis de acreditar. Mas com García Márquez como convidado da história, eu tinha certeza. Estávamos diante de um capítulo do realismo mágico.

Eu precisava descobrir o título do livro, sem o qual esta pequena fábula do cotidiano estaria incompleta. Faço uma pequena ginástica, estico o pescoço daqui e dali. Não consigo, mas gravo a imagem, as cores. Em casa, descubro: era "Cem anos de solidão".

O milagre estava completo. O clássico atravessou o tempo e estava encantando uma jovem leitora, numa realidade das mais difíceis, de cerceamento da leitura por métodos vis de asfixia.

Mas a magia da literatura venceu o imponderável, todas as barreiras, todo o pessimismo, e escreveu ali, numa manhã comum, uma bela página, ainda que momentânea, de felicidade.

 

Paulo Lima é jornalista e editor da revista Balaio de Notícias.