Edição 218 - Brasília, 12 de agosto a 09 de setembro de 2018

Youtube Twitter

Crônica

O olhar obsessivo
As evidências estranhas das coisas

Por Chico Lopes

Nunca posso dizer por inteiro o que me exaspera e o que é a minha beleza. Minha obsessão não é construir um conjunto lógico de fantasia, mas desvendar um pedaço de realidade isolado de um todo obscuro, um fragmento precioso (talvez demasiadamente observado) de vida desconhecida. Fixo um ponto qualquer de um dado retrato, preocupado, hipnotizado com a mensagem que pode estar embutida ali; numa paisagem, destaco (quase involuntariamente: treino de intuição) um certo elemento, e a obsessão faz o resto. Não terei a mesma tara daquele personagem de Edgar Allan Poe fixado nos dentes da mulher amada? “Seus dentes eram ideias”, dizia ele.

O encanto de descobrir uma coisa significativa na massa amofra do cotidiano... De repente, os olhos do desconhecido que almoça numa mesa de restaurante, e de vez em quando ele os fecha como se uma luz o ferisse. O rosto de uma mulher alta, magra, muito magra, que parece oferecer todo um tratado fisionômico sobre o tornemento. Não a conheço, mas tenho certeza de que ela já esteve num manicômio. Ou essa assustadora falta de uma mão ou de dedos tão constante em transeuntes (há muitos acidentes de trabalho no país). Tenho inclusive medo da atração que mutilações, feridas e deformações congênitas exerceem sobre mim. É como se a excepcionalidade, mesmo para o horrível, tivesse uma formação hipnótica, obrigasse a olhar a uma inquirição de natureza mais profunda, mais empática, buscando o nexo oculto, terrível, da anormalidade e da dor.

O olhar pousa obsessivo sobre as coisas e delas extrai significados que podem jamais atingir uma articulação lógica. A atenção é uma força mágica, cria entre o observador e o objeto de observação uma relação em que não se sabe onde começa o sujeito e termina o objeto. Essa antinomia, aliás, tem suas fronteiras abolidas pela paixão de olhar. Tudo se converte numa só coisa ardente, numa espécie de transe em que é possível ocorrer inclusive temíveis revelações. Acredito mesmo que temos olhares treinados para não ver ou ver pouco para que não nos perturbemos com evidências estranhas.

O Mistério não é assim tão oculto. Está talvez num estado de visibilidade tão patente que o decretamos misterioso apenas para evitarmos sua luz muito direta, que desorganizará o nosso entendimento.

 

Chico Lopes é escritor e tradutor. Sua novela O estranho no corredor recebeu o Prêmio Jabuti em 2012. O texto acima foi extraído do seu livro mais recente O abraço dos cegos, publicado pela Penalux, primeira incursão do autor pela crônica.