Edição 218 - Brasília, 12 de agosto a 09 de setembro de 2018

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Entrevista

Crimes sem castigo
A escritora argentina Selva Almada fala de seu novo livro Garotas Mortas

Por Paulo Lima

Foto: Irupé Tentorio

Selva Almada: "O feminicídio é a expressão máxima da violência contra nós."

A escritora argentina Selva Almada tinha 13 anos quando ouviu falar do assassinato de Andrea Danne, de 19 anos. A garota foi encontrada morta, apunhalada na própria cama enquanto dormia, na casa em que morava com os pais. O crime trouxe uma revelação para Selva Almada: ao contrário do que ela acreditava, a casa não era o lugar mais seguro do mundo para um adolescente. Ocorrido em 1986 em Villa Elisa, pequena cidade da província de Entre Ríos onde ela nasceu e cresceu, o caso jamais foi esclarecido

Mas Andrea Danne não foi a única a ocupar o imaginário da escritora. Tempos depois, ela ficaria sabendo da morte de María Luisa Quevedo, assassinada aos 15 anos, em 1983, na pequena cidade de Presidencia Roque Sáenz Peña. E mais adiante teria notícia de outro crime: Sarita Mundín, de 20 anos, desaparecida em março de 1988. O corpo foi encontrado em dezembro daquele ano, na pequena cidade de Villa Nueva. A exemplo do que ocorreu com Andrea, essas duas tragédias nunca foram elucidadas.

Durante muito tempo, Selva Almada conviveu com as histórias de Andrea, Maria Luísa e Sarita, e decidiu contá-las no livro Garotas mortas, narrativa de não ficção lançada este ano no Brasil pela editora Todavia. Nele, mostra um panorama impressionante de violência enraizada contra as mulheres, uma realidade que diz respeito não apenas a essas pequenas cidades do interior argentino. E os três exemplos que compõem o eixo do livro não são os únicos investigados e denunciados pela escritora, que compartilha também sua experiência.

Ao descrever cenas familiares ou próximas vividas durante sua infância e adolescência, Selva Almada expõe a misoginia que se impunha nos relacionamentos, gerando temor, como uma corda tensionada prestes a se romper: mulheres que eram proibidas pelos maridos de se maquiarem ou usarem sapatos de salto alto, que eram por eles estupradas, que a eles entregavam seus salários. “Eu cresci escutando mulheres adultas comentarem coisas assim em voz baixa, como se a situação da pobre coitada fosse motivo de vergonha ou como se elas temessem o agressor.”

A morte de Andrea Danne funcionou como um rito de passagem para Selva Almada. “Em perspectiva, percebo que foi uma entrada brutal para a adolescência e a feminilidade, ser uma mulher poderia te matar”, explicou nesta entrevista concedida por email um pouco depois de sua participação na Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty, e dias antes da rejeição pelo Senado argentino do projeto de legalização do aborto.


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Seu livro mostra um panorama impressionante de violência contra a mulher em seu país. Você teve alguma dificuldade em publicá-lo?

Não, eu não tive problemas nesse sentido. É um projeto que tive muito tempo comigo, fazendo trabalho de campo, pesquisando, redigindo rascunhos, mas quando falei com a Random House eles imediatamente se interessaram em publicar o livro. Eu acho que o contexto também contribuiu para o interesse: feminicídio e violência de gênero começaram a ocupar a agenda da imprensa na época, a questão saiu para a rua, movimentos feministas cresceram (continuam a crescer, felizmente) dia a dia .

Quando ocorreram os três assassinatos descritos no livro, você era jovem – no primeiro, de Andrea Danne, você tinha apenas 13 anos -, e somente agora traz à tona o impacto que eles causaram em você. Como foi conviver com essas histórias durante tanto tempo?

A história de Andrea estava sempre em minha memória e de vez em quando retornava. Foi muito chocante para mim e para todas as mulheres da minha idade naquela época. Agora, em perspectiva, percebo que foi uma entrada brutal para a adolescência e a feminilidade, ser uma mulher poderia te matar, isso é um pouco o que veio nos contar seu feminicídio: mesmo dentro de sua casa, você pode estar totalmente segura. Tudo isso eu refleti com o tempo, é claro, mas acho que isso tem a ver com o fato de eu nunca ter esquecido essa história. Eu conheci as outras duas histórias quando comecei a pensar no livro. De qualquer forma, entre quando comecei a pensar sobre isso e finalmente publiquei, levou cerca de quatro anos, quatro anos em que vivi com essas histórias de uma maneira muito íntima.

As histórias de Andrea Danne, María Luisa Quevedo e Sarita Mundín compõem o eixo de sua narrativa, mas você revela muitas outras situações de feminicídio, que é um mal que está enraizado na cultura das pequenas cidades, como a que você nasceu. Esta é uma realidade dessas pequenas cidades ou trata-se de algo que impregna a realidade argentina?

É uma realidade que abrange todo o país. Os micromachismos existem em cidades pequenas e grandes. Em uma cidade grande, por exemplo, é comum que as mulheres sejam apalpadas em transportes públicos ou assediadas verbalmente na rua. Talvez isso não aconteça em uma cidade pequena porque todos se conhecem, mas depois o assédio toma outras formas, menos públicas talvez: você não é apalpada por um estranho em um ônibus, mas você é apalpada por um parente na cozinha de sua casa... O machismo é uma questão cultural e, como tal, nos atravessa, está instalado em todas as regiões do país e em todas as classes sociais.

Você descreve um quadro complexo que combina dificuldades econômicas coexistindo com um universo quase mágico das pequenas cidades argentinas, em que curandeiros e videntes fazem parte da vida das pessoas (você mesma chegou a se consultar com um desses videntes). Como imaginar um combate à misoginia num cenário desses?

O cenário é difícil, claro, significa desmantelar um aparato cultural, isso levará décadas. Juntamente com isso, também estão as dificuldades econômicas, em alguns lugares - acesso à educação, à saúde; acesso para poder denunciar ou pedir ajuda. Existem muitas dificuldades e é por isso que é uma questão tão difícil de resolver. Mas se não começarmos mesmo que seja pouco a pouco, não começamos mais.

Os assassinatos de Andrea, María Luisa e Sarita nunca foram elucidados, e seu livro mostra a situação de precariedade ou de ausência do estado nas pequenas cidades argentinas – numa cena do livro, um policial tem que se deslocar de bicicleta para atender um chamado, porque não havia uma viatura disponível. Há uma relação entre a impunidade dos três assassinatos e este quadro de abandono?

No caso dessas três histórias que ocorreram há trinta anos, acho que existem vários fatores: o principal e o que prevalece hoje é que esses casos não recebem a verdadeira importância que têm, estão sempre procurando algo na vida privada da vítima que justifique sua morte, estão sempre procurando uma causa, um atenuante ao feminicídio, isso faz parte da lógica misógina. E depois, é claro, sempre há o fator da pouca preparação que um policial provincial pode ter para investigar esses fatos. Há trinta anos não havia tanta informação sobre o assunto, as coisas eram feitas de uma maneira muito desordenada, elas eram meninas da classe média baixa, então não significavam muito para a justiça ou para a polícia... Mas, além da falta de meios, o fundamental é a falta de interesse, o desdém com que o assassinato de uma mulher é tratado.

Você utilizou as ferramentas do jornalismo para apurar suas histórias, e as escreveu com as técnicas da literatura. Por que decidiu que o livro teria esse formato de não ficção, incluindo nele sua própria história?

Eu sou uma escritora de ficção, este é meu primeiro livro de não ficção. Não queria romantizar as histórias dessas meninas, eu queria que os leitores soubessem, antes de abrir o livro, que o que iam ler tinha acontecido com mulheres de carne e osso, mulheres que estavam vivas, que tinham projetos, pessoas que as amavam, tinham trabalho, o que quer que fosse, até que alguém arbitrariamente decidisse pôr fim a tudo aquilo. E isso continua acontecendo. Que existem homens que acreditam que uma mulher é uma propriedade e que pode fazer com ela o que quiser. Eu queria que ficasse claro que eu estava falando da realidade, que não havia imaginação no que eu estava narrando, além de que o livro é escrito com alguns recursos que têm mais a ver com literatura do que com jornalismo. E incluir anedotas pessoais tem a ver com contar coisas menores, mas também graves que acontecem a todas as mulheres. O feminicídio é a expressão máxima da violência contra nós, mas há toda uma série de pequenos eventos, naturalizados, que vão montando este enredo que permite que uma mulher seja morta a cada 30 horas na Argentina.

O projeto de interrupção voluntária da gravidez foi aprovado pela Câmara dos Deputados em junho. Como você analisa essa vitória inicial no contexto da luta pelos direitos da mulher na sociedade argentina?

Bem, é uma vitória histórica que vem de longos anos de luta. Não esperávamos que o debate fosse aberto este ano, com este governo. Eu acho que foi uma surpresa para todas. Além do resultado final [o projeto foi rejeitado pelo Senado argentino em 08 de agosto], nos últimos meses, a questão se instalou definitivamente na sociedade. Mesmo nos programas de fofoca da televisão falamos sobre o aborto, ele deixou de ser um tabu, deixou de ser culpa e vergonha para milhares de mulheres que poderiam dizer: “Eu abortei, diga a suas filhas, a suas amigas”... Essa é uma vitória que eles não podem tirar de nós, mesmo que a lei não saia. Se não sair no próximo ano, não há como voltar atrás.

 

Paulo Lima é jornalista e editor da revista Balaio de Notícias.