Edição 216 - Brasília, 04 de março a 01 de abril de 2018

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Autoficção

1979
A infância revelada

Por Eduardo Haak

Ela, que é uns vinte e cinco, trinta anos mais velha do que eu, acabou de se recostar num sofá e agora descansa os pés, descalços, sobre uma almofada. Ela é ruiva, corpo mignon com óbvias capacidades acrobáticas, e sua pele é aquela pele meio desgastada por anos de sol. Como vim parar aqui, nesta sala? Provavelmente me cansei das atividades enérgicas das crianças com quem eu estava brincando no quintal, crianças que têm mais ou menos a mesma idade que eu, oito anos.

Sempre tive déficit de energia para certas atividades (correr, ficar pulando, sobretudo obedecer às regras rígidas e chatas das brincadeiras), o que sempre me empurrou para a introspecção. Esse meu traço introspectivo – ou esquizoide, para usarmos a apavorante terminologia da psiquiatria – fez muitas vezes minha mãe ser chamada para conversar com a psicopedagoga do colégio. De qualquer forma, agora estou aqui, nesta sala, em meio a adultos, olhando hipnotizado para a mãe do Guilherme, que é um colega de escola. O Guilherme, que se parece com o Bozó, aquele personagem do Chico Anysio, ei, eu trabalho na Globo, está fazendo aniversário. O telefone do Guilherme é 70-1009.

A mãe do Guilherme agora está fumando um cigarro slims, um cigarro com dez centímetros de comprimento. Ela tem aquele jeito feminino de fumar, a mão desmunhecada e mantida suspensa no ar, como a de alguém pedindo aparte num enfrentamento verbal pautado por alguma civilidade. Ela assopra a fumaça para cima, vulcão, volúpia, volpone, alfredo volpi, vulva, então uma palavra vem à minha cabeça: puta. Não, eu não estou xingando a mãe do Guilherme. Eu nem sei exatamente, aos oito anos, o que quer dizer puta; sei que é um palavrão e só. Mas há uma força nessa palavra, uma força tensiva semelhante à de uma pequena bola de chiclete sendo estourada, algo que de um modo misterioso se relaciona a essa mulher, recostada nesse sofá, descansando os pés e incensando o ar com seu Charm Slims. Estou achando delicioso vê-la, delicioso mastigar e assoprar essa palavra, puta, até que ela dê seu pequeno estalo. Puta.

Então a mãe do Guilherme percebe que eu estou olhando hipnotizado para ela. Ela dá uma pausa no processo de expelir fumaça das vias respiratórias, sorri para mim e me manda um beijinho. Um beijinho cheio de lascívia.

Meus pais chegam para me buscar na casa do Guilherme.

Eles estão vindo do Hospital do Câncer. Meu tio gênio da química, com apenas quarenta e quatro anos, está internado lá e morrerá em menos de um mês. Não será a primeira vez que vou lidar com a morte de uma pessoa próxima – meu avô Waldemar Haak, pai da minha mãe, morreu em 1975. Porém, a maneira como vivenciarei a morte desse tio será bastante diferente.

Entre outras coisas, venho me tornando hipocondríaco desde que comecei a ouvir as histórias cochichadas pelos cantos a respeito da doença dele: sei que meu tio vinha urinando sangue havia doze anos e que ele decidira ignorar isso, dado o pavor que sentia de médicos, e que, quando não deu mais para fingir que não havia nada de errado com seu organismo, já não havia mais nada a se fazer.

Nem preciso dizer que ir ao banheiro para fazer xixi vem sendo algo extremamente angustiante para mim – sim, aos oito anos eu já sei que nossa vida pode virar completamente do avesso depois de uma simples ida ao banheiro. Outra obsessão hipocondríaca minha, nesse ano de 1979: um pontinho preto que apareceu na minha gengiva. Passei meses aterrorizado com ele, até que um dia, depois de escovar os dentes, o pontinho sumiu. Meu dentista, o Sílvio, disse que o tal pontinho preto provavelmente era um pedaço de grafite que se incrustara na gengiva por causa do meu hábito de morder o lápis enquanto faço lição.

Para escapar das garras mórbidas e debilitantes da hipocondria, assumo que sou um covarde mesmo e me torno um especialista em manobras evasivas. Aos oito anos, felizmente, tenho muitas áreas de escape à minha disposição. Sim, por mais que eu tenha me sentido pessoalmente atingido pela morte desse tio – não, não tive sentimentos piedosos em relação à viuvez da minha tia e à orfandade dos meus primos, o que essa morte fez explodir em mim foi um sentimento incrivelmente egoísta, descobri que eu, eu, eu, eu, oras bolas, sou mortal também, e me revoltei muito com a descoberta –, como eu dizia, por mais que eu tenha sido bastante atingido por essa história toda, no fundo, eu sei estar razoavelmente protegido de qualquer encrenca maior por minha condição de criança. Os adultos que se danem com seus cânceres e seus problemas.

 

Eduardo Haak é paulistano, nascido em 1971. Foi cronista do portal de conteúdo feminino do UOL, "iTodas", durante três anos. É autor do livro Tem uma coisa sobre mim que acho justo você saber, lançado em 2011 pela editora KBR. O texto acima é fragmento do capítulo Anos 1970, do livro Memorando, que é um ensaio autobiográfico que o autor vem escrevendo.