Edição 215 - Brasília, 04 de fevereiro a 04 de março de 2018
Cinema
Por Carlos Alberto Mattos
Foto: Divulgação
JR e Agnès Varda: em busca de rostos e vilarejos na França profunda
“O acaso sempre foi o meu melhor assistente”, diz Agnès Varda num dado momento de Visages Villages. A frase deveria caber na boca dos melhores documentaristas, mas cabe especialmente bem na de Agnès. Beirando os 90 anos, ela se mantém fiel a sua maneira fluida e casual de “catar” cacos de realidade segundo um dispositivo mínimo predeterminado.
Aqui ela se junta ao fotógrafo JR numa espécie de dupla cômica – a velhinha inquieta e o jovem pop – para rodar pelo interior da França em busca de rostos e vilarejos. JR, cuja identidade se esconde atrás da sigla e dos óculos escuros, faz o artista contemporâneo enigmático. AV, sempre delicadamente auto-exposta, faz a artista veterana envolta em ecos da modernidade.
Ela sai à cata de pessoas comuns, mas com algo de invulgar no jeito ou nas atitudes. Ele fotografa algumas dessas pessoas e, como de hábito, cola as imagens ampliadas em escala monumental em fachadas, muros, vagões de trem, pilhas de contêineres, etc. Para JR e AV, cada um a seu modo, gente é paisagem.
O encontro improvável dos dois se desdobra, portanto, em diversos encontros com agricultores, mineiros, criadores de cabras, operários, um carteiro de aldeia, um artista sem teto. O road movie os leva na camionete-estúdio de JR através de campos, praias e pequenas cidades, onde os modelos fotográficos logo se tornam celebridades locais.
Numa sequência tipicamente vardiana, ela escolhe fotografar (e entrevistar) não os trabalhadores das docas de Havre, mas as mulheres de três deles, cujas imagens imensas invadem o ambiente másculo do porto. Em outro momento, pede a JR que instale a foto que ela fez de um velho companheiro fotógrafo num bloco de pedra cravado numa praia da Normandia. Ainda em outro ponto da viagem, eles convocam diversas famílias para repovoarem por um dia uma cidade-fantasma.
Visages Villages tem semelhanças com Lixo Extraordinário no que tange à parceria entre o cinema e um artista visual de grandes escalas e personagens coletivos como são JR e Vik Muniz. Mas a parceria com Varda não é simples registro de trabalhos artísticos, e sim uma troca intensa de experiências, distâncias e proximidades. JR atende aos desejos de AV e, em troca, ganha um registro amável e autoral de seus procedimentos. Um serve de modelo para o outro num exercício de reciprocidade e carinho.
Agnès incorpora várias referências a seu universo e a sua própria obra, a começar por Os Catadores e Eu (2000). Lá estão ecos do longa As Praias de Agnès (2008); do curta Mur Murs (1981), sobre as pinturas murais das ruas de Los Angeles; de Réponses de Femmes (1975), em que a diretora interrogava um grupo de mulheres sobre a condição feminina; e de Les Fiancés du Pont Mac Donald (1961), pequeno curta cômico inserido no longa Cléo de 5 às 7, com Jean-Luc Godard retirando os óculos escuros para Varda filmar, enfim, o seu olhar. Esse fetiche godardiano, aliás, é mote cômico também de O Formidável.
A brincadeira com os óculos escuros de JR e as limitações visuais de AV atravessam o filme como um leitmotiv de humor e suspense narrativo. Godard, por sua vez, fornece a derradeira surpresa – bem a seu modo, aliás.
A leveza da abordagem, a maneira despojada de tratar a criação artística, a graça dos depoimentos colhidos e os limites indiscerníveis entre acaso e preparação fazem o charme de Visages Villages. O júri do Prêmio Olho de Ouro o distinguiu como melhor documentário do último Festival de Cannes, láurea entregue no ano anterior a Cinema Novo, de Eryk Rocha.
Carlos Alberto Mattos é jornalista e crítico de cinema. Texto originalmente publicado no blog do autor.