Edição 215 - Brasília, 04 de fevereiro a 04 de março de 2018

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Cultura

A armadilha da desigualdade
Os males de nossa fragilidade democrática

Por Marcos Fabrício Lopes da Silva

Uma das mais difíceis virtudes do ser humano é a coerência. Alguns tentam mantê-la em todos os momentos da vida. Quase impossível. São muitas as tentações e encruzilhadas. Sem perceber, caímos em contradição. “A vida dá muitas voltas. A vida nem é da gente”, já dizia João Guimarães Rosa (1908-1967). Além disso, as ideias e opiniões podem mudar com o tempo. Quando isso acontece, somos cobrados lá na frente. Outros fazem questão de chutar a coerência para escanteio. São os aproveitadores e carreiristas. Gostam e apoiam somente o que interessa a eles.

Na sociedade brasileira, as pessoas são previamente rotuladas como boas ou más, competentes ou incompetentes, craques ou pernas-de-pau, intelectuais ou ignorantes, éticas ou aéticas, bregas ou charmosas, morais ou imorais, progressistas ou conservadoras, prepotentes ou humildes etc. Não há meio termo. Depois de carimbadas, a conduta dessas pessoas são irrelevantes. O diagnóstico já está pronto. Isso é muito perigoso. A confiança é um tesouro. É um tesouro imaterial que sustenta e permeia tudo. Tudo depende da confiança que se pode ou não depositar em pessoas, sistemas e instituições. Até mesmo a economia – ancorada sempre na materialidade do que o dinheiro determina, compra e permite possuir como propriedade – depende dos fluxos e refluxos advindos dessa credibilidade.

Crescem os desvarios que ocorrem na sociedade contemporânea, marcada pela iluminação instrumental da razão e pelas possibilidades dos grandes avanços tecnológicos. De um lado, o espetacular das conquistas e da modernização. Do outro, o cenário injusto da miséria e exclusão de tantos pobres, a vergonha da corrupção, o horror da violência e a superficialidade que a sociedade do descartável alimenta nos corações. A liberdade, bem inseparável do homem, pertence-lhe como o oxigênio à vida. Os países que a sufocam estão fadados a conduzir seu povo ao abismo da indignação. A respeito, revela-se, na canção Apesar de você (1970), de Chico Buarque, uma oposição digna aos abusos do poder autoritário:

“Hoje você é quem manda/Falou, tá falado/Não tem discussão/A minha gente hoje anda/Falando de lado/E olhando pro chão, viu/Você que inventou esse estado/E inventou de inventar/Toda a escuridão/Você que inventou o pecado/Esqueceu-se de inventar/O perdão/Apesar de você/Amanhã há de ser/Outro dia/[...]/Quando chegar o momento/Esse meu sofrimento/Vou cobrar com juros, juro/Todo esse amor reprimido/Esse grito contido/Este samba no escuro/Você que inventou a tristeza/Ora, tenha a fineza/De desinventar/Você vai pegar e é dobrado/Cada lágrima rolada/Nesse meu penar/Apesar de você/Amanhã há de ser/Outro dia”.

Busca-se democraticamente o mais amplo direito de querer, de sentir, de pensar e agir. Princípios éticos e valores inegociáveis devem sempre pautar as condutas. Porém, o diálogo só é exitoso quando se reconhece a pluralidade, compreendendo que ninguém é dono da verdade. O respeito ao outro e às diferenças é condição para se avançar em discernimentos e, assim, fazer escolhas acertadas, corrigir rumos e alcançar novas respostas. Só o diálogo e a capacidade de dialogar revelam e comprovam a envergadura moral e cidadã. Uma das mais terríveis crises da sociedade brasileira é a generalizada incompetência para o diálogo entre instituições, grupos e pessoas. Para complicar esse quadro desafiador, aparecem os oportunistas e também aqueles que buscam travar as possibilidades do intercâmbio de ideias e opiniões. Prenúncio para radicalismos e outras perdas no necessário processo de se reconstruir a nação.

Para superar a falta generalizada de diálogo, são necessários exercícios que alarguem corações e mentes, que iluminem visões capazes de contribuir para o enfrentamento dos muitos problemas que se abatem sobre a sociedade. É necessário ultrapassar a defesa egoísta dos próprios interesses, de pequenos grupos ou classes, para empreender esforços e garantir soluções que gerem benefícios para a coletividade. Exercitar esse discernimento possibilita reconhecer que todos partilham a mesma estatura e merecem respeito. Assim, é possível o diálogo, caminho para superar a mesquinhez e a indiferença que alimentam, entre outros males, o desarvorado desejo de acumular dinheiro e poder, verdadeira porta para a corrupção.

Ainda vive a imagem da democracia brasileira, sugerida pelo político Otávio Mangabeira (1886-1960): “uma planta ainda tenra, que exige todo o cuidado para medrar e crescer”. Em Cidadania no Brasil: o longo caminho (2001), atesta o historiador José Murilo de Carvalho que a desigualdade social confirma a nossa fragilidade democrática e divide os brasileiros em três “classes”: “Para os da primeira, a lei só funciona em seu benefício. Os da segunda estão sujeitos tanto aos rigores como aos benefícios da lei. Os da terceira, não têm seus direitos protegidos, seja porque não conseguem acesso à Justiça, ou porque, quando o têm, terminam sendo regularmente prejudicados. Para eles vale apenas o Código Penal. E, acrescentaria, a Polícia”.

Uma democracia consistente somente será possível se a educação for obsessão nacional, das famílias e das políticas públicas, e se a sociedade tiver compromissos com a verdade e a ética. Não há desenvolvimento maduro sem famílias e escolas que eduquem para o saber de transformação, para a vida em dignidade e para o trabalho qualificado. O ápice da qualificação de qualquer vida pessoal é a consistência da própria interioridade como fonte sustentadora da paixão pela verdade, o gosto pela solidariedade e a coragem de lutar pela justiça. É cultivar a honestidade na palavra dada, no respeito aos outros e, particularmente, na condução da coisa pública e do bem comum.

 

 

Marcos Fabrício Lopes da Silva é professor das Faculdades Ascensão e JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela UFMG. Graduando em Letras pela UnB.