Edição 214 - Brasília, 07 de janeiro a 04 de fevereiro de 2018

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Cultura

Impressões de uma Babel
A poesia e a magia de Lisboa

Por Cesar Carvalho

Foto: Cesar Carvalho

Torre de Belém, em Lisboa

O mundo é mesmo cheio de sincronicidades, aquelas coisas que parecem coincidências, mas que, na verdade, são eventos que ocorrem em tempos e lugares diferentes, mas fazem sentido.

Pode ser estranho para o leitor começar uma crônica falando deste conceito tão caro a Jung, o psicanalista, sobre as primeiras impressões de um turista, eterno aprendiz. Mas, como não começar por ele se as coisas assim se sucederam.

Olha só. Estava há nove dias em Lisboa, era feriado de Natal, e ao acordar, depois de uma lauta ceia na véspera, na casa de amigos, lá pelo meio dia porque ninguém é de ferro, ligo meu tele móvel - nome chique que os portugueses dão ao nosso celular - e vejo a mensagem de Paulo Lima, editor deste Balaio, convidando-me para escrever minhas primeiras impressões sobre a capital portuguesa. Claro, como sempre acontece, fiquei apreensivo. Toda vez que ele me desafia, fico apavorado. Darei conta? Serei capaz? Sei lá. Sempre me questiono, mas acabo por aceitar o desafio. Mas, desta vez não. Não escreveria nada. Estava determinado apenas a curtir minha viagem, ficar fora do Brasil pelo menos uns três meses, me aventurando pelos gélidos países europeus, dando-me de presente esta viagem, repensar minha vida, conhecer novas pessoas, hábitos, enfim, curtir. Então, nada de escrever. Mas aí....

Bem, aí, estava sentado na cama do apartamento lendo as notícias do Brasil e, na Folha de S. Paulo, leio a crônica de Ruy Castro sobre o quê? Ora, sobre Lisboa. Aí é demais. Sua crônica é pequenina e fala das diferenças existentes entre duas Lisboas, a que ele conheceu nos anos 70, uma cidade cheia de problemas, sombria e decadente, e a de hoje, cidade luminosa, polo de atração turístico que atrai mais do que o dobro de sua população, cerca de dez milhões de habitantes. A empatia foi imediata. Apesar de estar ali há pouco mais de uma semana tive a mesma sensação por ele descrita, pelo menos no que toca a ser uma cidade luminosa.

De resto, o que sentia naqueles primeiros dias em Lisboa estava muito distante de ser apenas isso. E o que sentia? Ora, uma emoção muito forte acompanhada por indecifráveis angústias e intuições estranhas. Até agora estou sem entendê-las.

Logo no primeiro dia, um sábado frio, com céu azul cristalino, olhei pela sacada do apartamento onde eu e minha mulher estávamos hospedados, no bairro de Belém, e vi, poucos metros abaixo, uma igreja. Algo me dizia que deveria conhecê-la de perto. Estranho desejo para um viajante que costuma fotografar todas as igrejas que vê pela frente, mas, paradoxalmente, não tem a menor vontade de nelas entrar. Saímos. Em frente à igreja, uma padaria, a Jardim Dourado. Entramos para tomar café. Primeiro choque para um viciado em café. Todos os cafés, em qualquer lugar onde são servidos, são expressos e curtos. Sempre muito saborosos, nem um pouco amargo e sem nenhum gosto de palha. Não cheguei a perguntar, mas, cá para nós, certamente são cafés produzidos no Brasil ou na Colômbia, e da melhor qualidade. Minha mulher resolveu registrar em fotos todas as vezes que eu os saboreava, e, olha, não são poucas as fotos tendo em vista que tomo vários por dia. E o preço, ah, o preço, normalmente em torno dos sessenta e cinco centavos de euro, o que, em nossa moeda significa pouco mais de dois reais e cinquenta centavos. Mas, não se iluda, a vida aqui não é tão barata assim.

Entramos na igreja. Não lhe tinha nenhuma informação prévia, sequer sabia-lhe o nome, mas entramos. Fiquei em estado de êxtase. Nem me pergunte o porquê. Não saberia responder. Ao entrar, deparei-me com uma estrutura sóbria, com cúpula altíssima onde os raios de sol penetravam pelos lanternins clareando todo o espaço. Ao fundo, uma grande imagem retratando um soldado, a mão direita sobre o peito, os olhos fixos na Virgem Maria segurando o Menino Jesus, intermediado por um anjo. À esquerda da imagem, uma freira segurando um pergaminho na mão esquerda e uma espécie de bastão na direita.

Esta imagem, colocada no centro do presbítero que é uma construção oval e pequena, comparada a outras igrejas históricas e mais antigas de Lisboa, chama a atenção do fiel logo que este entra na igreja, dando-lhe uma imponência que o próprio presbítero não tem. Enquanto em outras igrejas há muitos degraus que elevam o presbítero bem acima da nave, naquela igreja, a Igreja da Memória, há um único lance de escada que o separa da nave.

Enquanto percorria lentamente a nave, atento aos detalhes de suas pequenas capelas, fui tomado por uma forte emoção. Achei isso estranho, muito estranho. Não sou católico, não tenho crenças religiosas, nem sequer acredito em Deus, ainda que me considere razoavelmente místico e espiritualista, então porque a emoção? Imagens pululavam em minha cabeça: a figura generosa de meu avô português, as lições de história aprendidas nas escolas brasileiras e lidas nos mais diferentes livros de historiadores que sempre me fascinaram, os navegantes que saíam em busca de novos horizontes, enfim, uma tonelada secular de um passado remoto e recente comprimiam meu peito e eu chorei feito criança. Minha mulher, depois que saímos ironizou: sei não, acho que sairás daqui feito beato, disse-me imitando o sotaque lusitano.

Só depois disso, graças ao Santo Google, é que vim a saber que aquela construção de arquitetura barroca tinha sido inaugurada em 1760 por obra e graça de Dom José I, à época rei de Portugal, como agradecimento por ter saído ileso de um atentado contra sua vida. Curiosamente, os portugueses parecem dar pouca importância a esta igreja, tendo em vista que numa cidade turística como Lisboa, os únicos turistas que a visitaram no tempo em que lá estivemos fomos nós, eu e minha mulher. Aliás, nem sequer está disponível a informação de que os restos mortais do Marquês de Pombal estão ali depositados. E, olha, esta foi uma figura das mais importantes da história lusitana.

Mas, claro, Lisboa não é só igreja. Se o turista quiser, pode passar dias e dias visitando-as. Existem muitas. São patrimônio cultural e histórico do país. Mas, pelo visto, tudo aqui é patrimônio. Andar pelas ruelas de Lisboa é um delírio visual. Em cada construção, as paredes são cobertas com azulejos dos mais diferentes tipos. Azulejos com desenhos simples, com motivos temáticos, murais feitos à base de azulejos confeccionados em diferentes técnicas. Daí, dá para entender o quanto certas cidades no Brasil carregam a marca lusitana de forma acentuada.

Minha mulher encantou-se e chamou-me a atenção. Aqui, diz ela, a gente vê nestas paredes as mesmas cidades históricas de Minas, mas, ao mesmo tempo, não são as mesmas. Concordo, mas uma coisa me assusta andando por estas ruelas, cheias de altos e baixos: não há espaços vazios. As casas se sucedem umas às outras, as ruas estreitas e as paredes se preenchem de azulejos coloridos. Andando por elas, senti que o português tem horror ao vazio. Depois, como que para convencer-me deste horror, visitei a casa de um poeta e, sem nenhuma surpresa, deparei-me com um átrio repleto de quadros e objetos decorativos. A sala, enorme e retangular, preenchida com uma mesa de jantar, também enorme, mais objetos decorativos, mais quadros, poltronas, sofás e uma mesa de centro. Nenhum espaço vazio. Mas, aos olhos portugueses, o excesso é magia, como nestes versos de António Correia, do livro Lisboa em Haiku (PróArt&Letra. Lisboa, 2015):


O corpo levita
Na sonoridade mágica
Dos bairros antigos

Os turistas adoram. E nesta Babel moderna, nos bairros antigos, tanto da Cidade Alta, quanto da Baixa, você ouve de tudo, desde o português, o chinês, coreano, italiano, inglês e por aí vai. Uma sonoridade multilinguística numa cidade que aprendeu a explorar o turismo e transformar-se num centro luminoso e cheio de poesia, mas a poesia fica para outro dia.

 


Cesar Carvalho é escritor e poeta. Autor dos livros Proesia (2013); Lavras ao Vento, pá (2014) e Toca Raul (2013). Contato: [email protected]