Edição 214 - Brasília, 07 de janeiro a 04 de fevereiro de 2018
Literatura
Por Maria Adélia Mota da Silva
Ler Zé Belo e Outras Figuras, de Juraci Costa de Santana, é voltar à terra da memória. Ao ler esse livro de contos é possível se sentir como alguém que está em um país estrangeiro e, de repente, ouve a língua de sua origem. Maria Lúcia Dal Farra, em sua apresentação do livro, faz referência a essa linguagem que é um dos atrativos da obra. Mas o livro rende mais, mais histórias, mais palavras pitorescas, nesse redemoinho de lembranças que se chama aldeia natal.
Nomes significativos e palavras que só são ouvidas na terra de origem representam o insight que leva a uma época que, em algum tempo, estará sepultada junto com os falantes de uma linguagem peculiar, com aqueles que hoje têm mais de quarenta anos. Uma pertinente contribuição da obra Zé Belo é, justamente, o resgate dessa linguagem, dessa vida interiorana que, às vezes, é negada, no entanto, não deixa os seus filhos imunes a fatos que, na memória coletiva, aconteceram em um lugar a que muitos chamam de nossa terra.
As figuras emblemáticas como o político da cidade, a mulher adúltera, o menino em seu despertar da sexualidade, o padre libidinoso, todos esses arquétipos também fazem parte do anedotário de outras localidades. Em matéria de memória, o mundo é uma aldeia coletiva. Por isso, ao ler Zé Belo, constata-se que muitas histórias narradas aconteceram em outras cidades também. Por exemplo, em Zé Pé-de-Lixa, encontra-se o contato com a justiça que está no conto “Um cinturão”, de Graciliano Ramos. No passado de algumas aldeias, por muito tempo, os representantes da lei batiam primeiro para depois constatar se o preso era culpado ou inocente. Para encobertar as injustiças, havia um comportamento de alheamento e medo por parte da população. Sobre essa atitude, em Zé Belo, não há questionamentos morais ou julgamentos; há relatos verossímeis. São fatos que representam parte marcante na narrativa de Juraci Costa. Não são histórias líricas, são acontecimentos e realidade crua do tempo em que as instituições tinham um grande poder. Outro exemplo está no conto “Entre a batina e a navalha.” Neste, encontra-se a representação de uma história conhecida no interior. A mulher que tinha um filho com o padre local era figura pitoresca de várias cidades pequenas. Juraci fez com que as personagens Isaura e o padre Vitalino tomassem os acontecimentos como naturais e até previsíveis, afinal, sacerdotes também são homens, são machos e a batina não representa um freio moral.
Os seres humanos padecem de um processo que se chama esquecimento. Para o bem ou para o mal, quem são e de onde vêm não são mais questionamentos vitais. São necessários livros como Zé Belo para guardar essas lembranças, recordações, tristezas, injustiças e até alegrias de tempos que não voltam mais e estão presentes nesse tipo de literatura de resgate. As fotografias penduradas na parede da memória, que tanto faziam Carlos Drummond de Andrade sofrer, estão em contos como esses, que guardam as reminiscências do lugar em que se enterra o umbigo. Livros assim são relíquias, pois trazem, em suas páginas, os gostos, as recordações e os sons do interior. Por isso, essa obra dá um presente inusitado ao leitor dos contos. Essa prenda é o reconhecimento de ser e pertencer a alguma localidade, misto de recordações e esquecimentos.
Maria Adélia Mota da Silva é professora da Rede Pública de Sergipe. Contato: [email protected]