Edição 214 - Brasília, 07 de janeiro a 04 de fevereiro de 2018

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Ficção

Balas e caramelos
Os meninos nos braços do Senhor

Por Paulo Lima

 

Você não tem para onde ir. Há um abrigo bem debaixo dos braços do Senhor. A velha igreja. Venha.

O Menino 1 não tinha alternativa. Seguiu o Menino 2 e o Menino 3 e o Menino 4. A trouxinha com todos os seus pertences. Um mundo inteiro que cabe num pequeno saco de pano que também é travesseiro, cama e companhia, onde ele encosta a cabeça à noite e a quem confia seus demônios.

Pai e mãe e irmã como uma paisagem difusa, uma mancha desbotada como tantas que vê nas paredes dos prédios carcomidos dos espigões da grande cidade. O dia mesmo sob sol intenso uma névoa indefinida e fantasmagórica, um túnel enegrecido em que ele entra sem saber se poderá sair.

Todo o dia é assim. Quem sabe o último. Uma roleta russa que gira em alta velocidade e nem dá tempo de pensar, ele uma peça a mais perdida na engrenagem de uma máquina faminta e ruidosa. Uma peça defeituosa que logo será eliminada e esquecida num cemitério anônimo de objetos inanimados. Carcaças que oxidam e são depositadas à margem do fluxo incessante que são produzidas num ritmo febril e exponencial.

Ele segue o Menino 2 e o Menino 3 e o Menino 4.

A noite é como um dia sem luz, mergulhada na mesma indistinção de uma paisagem igual, repetida, um loop de desilusão e desesperança.

Chegam aos braços do Senhor e cada um se ajeita sobre uma larga área na qual já estão deitados sobre a calçada dura e fria uma miríade de outros meninos – e também meninas. Faz frio e os corpos se atraem por puro instinto de sobrevivência, como certamente procedem os animais na floresta.

Ele aceita uma ponta de cigarro e cheira com intensidade a lata aberta que passa de mão em mão. Tudo que vem de fora e entra por sua boca e narinas e o ajuda a se manter de pé por mais um dia é ingerido sem grandes escrutínios. Engolir e seguir em frente.

Está ali aninhado naquele mosaico de cabeças e braços e pernas e fedor. Lá no alto, muito acima das torres da catedral, as estrelas pontilham o céu em uma cena imutável desde tempos imemoriais, quando ele era não mais do que – do que o quê?

O súbito jorro de ideias desordenadas começa a ceder e ele sente-se afundar docemente.

O silêncio é quebrado ocasionalmente por raros carros e ainda mais raras pessoas que teimam em extrair o máximo da madrugada. O Menino 2 e o Menino 3 e o Menino 4 já apagaram antes dele. Aqueles pequenos corpos formam um tapete disforme, como se tivesse sido estendido na calçada improvisadamente, sem zelo, com protuberâncias que se destacam aqui e ali, talvez joelhos amalgamados num estranho ricto, pietás petrificadas pela exiguidade do espaço e pelo cansaço.

Provavelmente nenhum deles se deu conta do veículo que se aproximou com lentidão, como bicho selvagem à espreita rondando a presa, disfarçado sob a luz tênue da noite. E nenhum deve ter ouvido quando passos cautelosos, porém determinados, marcharam em direção ao lugar onde estavam. E é até provável que somente os mais insones – ou os de sonos mais intranquilos – tenham ouvido quando a voz, num tom fake de carinho paternal, anunciou olhem aqui, crianças, balas e camarelos para distrair a noite.

Não se sabe – será impossível saber – se ao menos um deles percebeu que o lusco-fusco de mais uma noite se avivou repentinamente, como se fogos de artifício – ou trovões – tivessem de repente irrompido sem aviso.

É ainda mais improvável que as línguas avermelhadas que começaram a lamber seus corpos já aquecidos pela comunhão forçada tenham encontrado qualquer tipo de reação – uma mão que se interpôs num reflexo automático aos objetos velozes e letais, um último grito ou esgar antes de sentir que as línguas lhes roubassem de uma vez por todas o sono.

 


Paulo Lima é editor da revista Balaio de Notícias.