Edição 214 - Brasília, 07 de janeiro a 04 de fevereiro de 2018
Meio Ambiente
Por Thiago Roberto Soares Vieira
Foto: Thiago Roberto Soares Vieira
As águas do rio São Francisco
Nos dias 20, 21 e 22 de dezembro de 2017, eu e Idenilson de Albuquerque, escritor, historiador de Porto da Folha, Sergipe, realizamos, junto com o barqueiro José de Beli, do povoado Genipatuba de Gararu, uma expedição de barco de Canindé de São Francisco até a foz do Velho Chico, percorrendo 250 Km, com o objetivo de conhecer os impactos que o rio vem sofrendo com as baixas vazões liberadas pela hidrelétrica de Xingo, na região do baixo.
Pretendíamos ver de perto as consequências desse cenário nas suas margens e sobre o povo ribeirinho. Só preservamos aquilo que conhecemos. Nesse tempo de crise e descaso com a área ambiental, queríamos mostrar a triste realidade do Velho Chico no seu baixo curso.
No primeiro dia, tivemos alguns contratempos. O barqueiro com quem inicialmente marcamos da cidade de Canindé de São Francisco desistiu na véspera e tivemos que ir atrás de outro barqueiro. Acabamos acertando então com o senhor José de Beli. Dessa forma, tivemos que alterar nosso local de partida. Nesse primeiro, saímos de Genipatuba de Gararu rio acima, até Canindé de São Francisco, e depois retornamos já no início da noite ao mesmo ponto de onde partimos. Foram 13 horas de navegação (das 06 até as 19h).
Dormimos na casa do nosso barqueiro, bem na beira do rio. Realizamos várias paradas para conversar com os ribeirinhos que encontrávamos e visitar e fotografar locais interessantes: igrejas e casarões antigos - como a antiga Fazenda Araticum, em Porto da Folha (hoje assentamento de reforma agrária), que ainda mantém em pé o antigo casarão da fazenda e uma antiga capela - e comunidades tradicionais, como a aldeia indígena Xokó, na Ilha de São Pedro, em Porto da Folha. Nesse trecho, muitos pescadores reclamavam da dificuldade em navegar pelas águas do rio devido aos grandes bancos de areia – inclusive nosso barco quebrou a hélice no trecho entre Pão de Açúcar, em Alagoas, e Poço Redondo, em Sergipe, quando ainda subíamos o rio para Canindé de São Francisco. O trecho estava tão raso que a hélice bateu no banco de areia e ficou danificada. Apesar das habilidades mecânicas do nosso barqueiro, precisamos trocar a peça no povoado Niterói, município de Porto da Folha, quando navegávamos de volta a Gararu. Ficamos impressionados com a quantidade e o tamanho desses bancos de areia, que se tornam grandes obstáculos para a navegação.
Foto: Thiago Roberto Soares Vieira
Trecho do Velho Chico
Depois de uma tranquila e revigorante noite de sono na casa de José de Beli, seguimos rio abaixo. Já bem na saída, logo no início, o barco teve mais uma peça danificada devido às más condições de navegação provocadas pelas baixas vazões do rio: dessa vez foi o leme. Paramos na cidade de Gararu, para que um mecânico o consertasse. Aí, sim, com o barco em condições, seguimos viagem. Passamos pelo município de Traipu, em Alagoas, uma bela cidade ribeirinha. Em frente a ela, um enorme banco de areia, uma realidade que, infelizmente, nos acompanha vários trechos do rio. A cidade de Amparo do São Francisco, na beira do rio, pequenina, mas graciosa, também nos chama a atenção.
Seguindo o rio, chegamos em Propriá, na margem sergipana, cidade que no século XIX e início do Século XX foi um grande pólo comercial e de produção agrícola na região – hoje já não possui mais o destaque econômico dos tempos de outrora. Conversando com moradores da cidade, eles relataram que o pescado diminuiu muito: o único peixe nativo que ainda se pesca é o piau-preto. O surubim, peixe famoso na região, por ser bastante saboroso, raramente é encontrado no rio, segundo os moradores. No momento em que conversávamos, registramos a queima de lixo na beira do rio. Aliás, vimos muito lixo na cidade. Também encontramos muitos pontos de erosão nas duas margens – sergipana e alagoana. Aliás pontos de erosão vimos praticamente em todo o percurso. Seguimos adiante e atracamos no povoado Saúde, no município de Santana do São Francisco, em Sergipe, uma das maiores colônias de pescadores do Velho Chico. Dormimos bem em redes num pequeno quiosque na beira do rio, sentindo um friozinho à noite e sem a presença de mosquitos.
Partimos rumo ao terceiro e último dia da expedição. Passamos em frente às cidades de Penedo, no lado alagoano, e Neópolis, na margem sergipana. Penedo é uma antiga cidade ribeirinha alagoana que já foi visitada por D. Pedro II. Tem igrejas e monumentos históricos riquíssimos. Seguimos e paramos na cidade de Ilha das Flores, do lado sergipano. Nos deparamos com uma orla muito bonita. Tomamos um café e fomos adiante. Nesse terceiro dia, vimos muitas plantas aquáticas que se enroscavam na hélice do barco. Aliás, essas plantas são muito comuns do sertão ao litoral. No sertão, os ribeirinhos a chamam de “rabo de raposa”; nas proximidades da foz do rio, a chamam de “cabelo”. Essas plantas se proliferaram bastante. Os ribeirinhos mais antigos com quem conversamos diziam que essas plantas, há 50, 60 anos, não eram tão comuns como hoje. Alguns pesquisadores afirmam que essa proliferação se relaciona com a construção das hidrelétricas: os sedimentos que o rio antes carregava naturalmente, hoje são depositados no fundo das barragens, fazendo com que a água à jusante fique mais clara, aumentando a incidência de luz solar dentro do rio, aumentando o aumento dessas plantas.
Foto: Idenilson de Albuquerque
Thiago Roberto e o barqueiro José de Beli
Chegamos na cidade de Brejo Grande, na beira do rio, pelo lado de Sergipe. Descemos, tomamos um café, conversamos com pescadores no local e partimos. Ouvimos relatos impressionantes: a água do rio São Francisco está salobra em toda a região da foz (últimos 20 km do rio). Nesse trecho, as cidades ribeirinhas estão sem água nas casas. Em Piaçabuçu, lado alagoano, encontramos uma feira de pescados bastante movimentada.
Pegando informações com moradores locais de como chegar até o famoso farol da foz, seguimos até o povoado Resina, na margem sergipana. Nosso barqueiro estava um pouco aflito devido às várias histórias e lendas de embarcações que naufragaram perto da Ilha “Criminosa”, situada bem no meio do rio, próximo do povoado Resina. Mesmo assim, chegamos lá.
O povoado Resina faz parte de uma terra Quilombola que há muitos anos sofre com conflitos de terras. Os ribeirinhos que nos receberam nos relataram as dificuldades que vêm passando com as alterações bruscas na paisagem e no cenário da região da foz. Quanto ao pescado, por exemplo, essa comunidade sempre pescou peixes de água doce, mas nos últimos anos, com a água salobra, só tem peixes de água salgada (inclusive há relatos de pescadores que encontraram tubarão em suas redes). Até hoje esses pescadores ainda estão se adaptando a essa nova realidade. Outra questão é a força da maré: ela traz vários galhos e restos de vegetação de manguezal que rasgam a rede dos pescadores, causando prejuízos. Depois da conversa com os pescadores de Resina, criamos coragem para encarar o mar e chegar até o farol. Ele hoje está dentro do mar, mas na época de sua construção ficava em terra, a uns 800 metros do mar. Hoje encontramos o farol 1 km mar adentro!
Foto: José de Beli
Thiago Roberto e o historiador Idenilson de Albuquerque
Em Resina, tivemos que trocar de barco, pois o de José de Beli não é propício para encarar as ondas do mar. Fomos num barco de Enéas, uma liderança do povoado. Nesse trajeto até o farol, além do Enéas, fomos eu e Idenilson, que estava um pouco apreensivo, pois não sabia nadar e as ondas batiam com força considerável na pequena embarcação.
Finalmente, chegamos ao farol. Solitário, enferrujado, torto, mas ainda de pé, apesar de toda dificuldade. Um momento emocionante e indescritível. Três dias para percorrermos os últimos 250 km do Velho Chico. O majestoso rio São Francisco (ou rio Opará, nome indígena que quer dizer “encontro do rio com o mar”), já não mais tão caudaloso. Enfraquecido e esquecido pela sociedade. Discute-se muito as potencialidades (o turismo, a irrigação, pesca, entre outras opções), mas pouco o cenário real e atual do rio. É assustadora toda essa mudança no baixo curso. Fico imaginando: com a intensificação das mudanças climáticas, que cenário restará? Para o mal não há limites. Será?
Thiago Roberto Soares Vieira é Engenheiro Florestal e Mestre em Agroecossistemas pela UFS. Atua com gestão de áreas protegidas, Recuperação de Áreas Degradadas e Conservação da Caatinga. Email: [email protected]