Edição 213 - Brasília, 08 de outubro a 05 de novembro de 2017

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Reportagem

Um capítulo do realismo mágico
A babá de Gabriel García Márquez diz adeus

Por Ciça Guirado

Foto: Mira Roxo

A autora com Maria Magdalena, babá de García Márquez

Como Úrsula, em Cem anos de solidão, que partiu de Macondo numa quinta-feira Santa, e o próprio escritor, que encantou-se na mesma data religiosa em 2014, Maria Magdalena, la nana de Gabito, escolheu a última quinta-feira de setembro para dar adeus a Aracataca, com 100 anos e dois meses de vida.

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O mormaço e a poeira cinzenta da Rua dos Turcos, onde zumbem motocarros o dia todo, não mais terão a velha Magda em sua cadeira de balanço na calçada. Ela não se incomodava. Ficava ali vendo a vida passar. Não ouvia há tempos. Em janeiro deste ano, “estava mais forte que um guacamayo”, como dizem os colombianos costeños ao comparar seus viejitos com araras e papagaios que têm vida longa e alegre. Naquele entonces a babá de Gabo, Maria Magdalena Bolaño Soares, contou memórias, achou graça dela mesma - por se saber importante - e rebolou os quadris, imitando passos de cumbia dos tempos de mocidade.

6 de janeiro de 2017. Final do dia. Banhada e perfumada, esperava a entrevista. O sol penetrava manso pelos vãos da varanda interna da casa. Construção antiga com pé direito alto e ventilações para suportar o calor pachorrento entre 35 e 40 graus. Maria Magdalena herdou a casa dos avós, onde criou 12 filhos, ao lado do marido José Antonio Rodrigues Rios. Serena, a voz buscava palavras: “Eu tinha 8 anos quando cheguei... Vim com meus pais e meus avós de Villanueva, que fica no Departamento da Guajira. Dez dias viajando em lombo de burro. Muita gente vinha trabalhar em Aracataca. Era a febre ‘del banano’. O povoado era rico. Ah, mas depois...tudo se acabou... E eu ganhava só 3 pesos para cuidar do menino na casa dos Márquez-Iguarán”, contou com o olhar parado na névoa do passado.

Quando Maria Magdalena chegou em 1925, colombianos de perto e de longe também chegavam em Aracataca atraídos pela bonança da United Company Fruit, a multinacional norte-americana que se estabeleceu no povoado no início do século XX. Mas, com a saída da empresa, após “o massacre das bananeiras”, que dizimou “três mil trabalhadores”, em 1928, toda a Costa do Caribe colombiano entrou em declínio. Essa história, contada em ritmo de realismo mágico, em Cem anos de solidão, já atingiu mais de 50 milhões de leitores e conferiu ao jornalista-escritor Gabriel García Márquez o Prêmio Nobel de Literatura, em 1982.

Gabito, como era chamado em criança, foi criado por um batalhão de tias e empregadas capitaneado pela avó Tranquilina Iguarán, que serviu de molde para a matriarca Úrsula. Detalhes das personalidades desse mulheril teriam destaque no romance. Além da fantástica Úrsula, as mulheres reais da infância encarnam em Pilar Ternera, Pietra Cotes, Santa Sofia de la Piedad, Amaranta, Rebeca, Remédios, Renata, Fernanda del Carpio e Amaranta Úrsula.

Embora García Márquez não tenha feito referência à babá em suas memórias, nem em sua produção literária, ela deve ter ajudado o menino a descobrir a vida entre 2 e 8 anos de idade - quando a imaginação ainda não dava conta de interpretar as magias da realidade. Maria comemorou 100 anos dia 22 de julho de 2017 numa grande festa que reuniu mais de cem familiares em Cataca - como os moradores nomeiam o povoado. “Ela passava bem até vinte dias atrás quando foi internada com pneumonia. Na quinta feira, 28 de setembro, morreu tranquila no hospital”, revelou anteontem, por whatsApp, seu neto Rodolfo Rodrigues, 32 anos, guia turístico na cidade natal de Gabo.

A história de Maria Magdalena com Gabito começou quando sua avó, em 1929 - época em que o pueblito entrou em declínio -, teve que trabalhar como empregada doméstica na casa dos Márquez-Iguarán. Com certeza, o fato de ser da Guajira ajudou na contratação, pois os avós de García Márquez nunca se desprenderam dos costumes e gentes de sua terra. A menina tinha 12 anos e acompanhava a avó para auxiliar no serviço. Logo, perceberam as qualidades e a doçura de Maria e colocaram em seus braços o garoto sapeca, que não havia completado 3 anos e ainda não era batizado. “Eu estava no batizado dele. Já era sua ‘nana’. Ele era muito traquina, mexia em tudo. Eu dava banho, penteava, levava pra passear... Quando foi crescendo ficou muito invejoso das coisas dos outros. Tudo que via queria pra ele. Pedia pra eu pegar das pessoas e dar pra ele”. Contava e sorria de lembranças: “Gabito era muito teimoso, sabe? Quando queria uma coisa, ninguém o fazia desistir”. Determinação e disciplina, confessadas em Viver para contar, eram características do jornalista-escritor herdadas do avô Coronel Nicolás Ricardo Márquez Mejía.

Silêncio. Maria parecia recordar algum fato muito importante: “Ah, esqueço muito as coisas agora”. Balançou a cadeira em busca de memórias. Depois falou: “Na casa dos Márquez-Iguaran, só ganhava 3 pesos”. E mostra suspensos três dedos da mão direita.

“A mãe de Gabito era uma mulher branca e pequena. Ela era velhona. Bem velha mesmo. Mas era uma mulher com muita energia”, falou sacudindo os braços. Na verdade, essa é a descrição de Tranquilina, esposa do coronel Márquez. Rodolfo, o neto, estudioso da biografia e da obra de Gabo, que acompanhava a entrevista, interferiu: “Não, avó, a mãe era Luisa Santiaga, que não vivia aqui em Cataca”. Ela abanou a mão num gesto indicativo da irrelevância do fato e continuou: “Gabito gostava de passear à tarde pelo povoado. Eu o levava até o Camellon 20 de Jullo”. Aí misturou lembranças: “Havia muita plata em Cataca. Os trabalhadores da Companhia Bananeira faziam parrandas de luxo. Em vez de acenderem velas para bailar a cumbia, eles acendiam notas de dinheiro. Eles ganhavam muito...Havia muita fartura e desperdício”. Essa façanha, verdadeira ou produto do realismo mágico popular, contada e recontada em toda a costa colombiana, mereceu estudos de Vargas Llosa em sua tese de doutorado Gabriel García Márquez: Historia de un deicidio.

Perguntei se a babá do escritor mais famoso da América Latina leu Cem anos de solidão. Ela esboçou um sorriso maroto e piscou: “Não li porque aqui em Cataca não tem onde comprar, não tem livraria”. Contente por ter falado do seu pequeno Gabo, levantou, sem ajuda, e foi até a porta da rua para dar adeus. A pedido do neto, dançou uns pasitos de cumbia. Depois resmungou, com a voz rouca e cansada: “Eu cuidava do Gabito. Ganhava só 3 pesos para trabalhar com a Dona Tranquilina. Só 3 pesitos, sabe?”. Maria Magdalena partiu, na última quinta-feira de setembro de 2017, com o orgulho de ter sido la nana de Gabriel García Márquez.

 

Ciça Guirado, é jornalista, mestre em Comunicação e Semiótica (PUC-SP) e doutora em História da Comunicação (Universidade Nova de Lisboa). Leciona na Universidade Estadual de Londrina. O texto acima faz parte de uma série de reportagens em torno do universo de Gabriel García Márquez na Colômbia.