Edição 212 - Brasília, 03 de setembro a 01 de outubro de 2017

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Reportagem

Viagem a La Guajira
A literatura de García Márquez vista de perto

Por Maria Cecilia Guirado

Foto: Maria Cecilia Guirado

Praia de reserva indígena no Caribe colombiano

Terminal rodoviário de Riohacha, capital de La Guajira. No banheiro nada turístico, a caixa de descarga tem a marca Daza. Sobrenome comum neste pedaço do Caribe, que beira a Venezuela. Daqui saiu a maioria dos nomes de personagens de García Márquez. Daza é o sobrenome de Fermina, a personagem inspirada em sua mãe, Luisa Santiaga Márquez Iguarán, no romance O amor nos tempos do cólera.

Na vida real, para defender sua honra, o Coronel Nicolás Ricardo Márquez Mejía matou Medardo Pacheco. Então, mudou-se de Barrancas - com sua prima e esposa Tranquilina Iguarán Cotes e seus três filhos - para Aracataca, onde muitos anos depois, o neto inventaria um povoado chamado Macondo.

Além dos baús da mudança, os Márquez-Iguarán levaram, os hábitos guajiros e três índios wayúus – Apolinario, Visitación e Meme - para os trabalhos domésticos. Gabriel García Márquez nasce e vive na casa dos avós até os 8 anos de idade. Quando a avó Mina percebia o envolvimento dos índios com Gabito, ralhava com eles em wayuunaiki – o idioma wayúu. O menino, fingia não compreender, mas absorvia lendas e cosmovisões do universo guajiro. Gabo assume, em suas memórias, que a língua doméstica de sua infância era uma mistura de espanhol e localismos do Caribe e africanismos de escravos.

Na rua da praia de Riohacha denominada por Primeira, dezenas de wayúus se espalham nas coloridas calçadas para vender mochilas, chapéus e outras artesanatos ancestrais. Eles vivem no entorno da cidade, em pequenos agrupamentos familiares, conhecidos por rancherias, onde conservam costumes diferentes dos arijunas – pessoas estranhas, não índios, possíveis inimigos. A maioria dos wayúu vive em resguardos na média e na alta Guajira, com algum apoio do governo colombiano, em troca da exploração de carvão, gás e energia eólica. Mas, não têm água potável. Dependem do Deus Juya, chuva, que cai do céu só vez em quando.

Outro personagem ligado a Riohacha é Francis Drake. Gabito deve ter ouvido muitas histórias dos avós sobre o terrível pirata. Entre as lendas que circulam na Guajira está um dos milagres de Nossa Senhora dos Remédios, a padroeira da cidade, que impediu o corsário inglês e seus piratas de saquearem Riohacha, pela terceira vez, pois Francis Drake já havia destroçado a cidade em 1568 e 1596. Os fiéis tiraram a Virgem dos Remédios da catedral e a levaram para a praia. O céu ficou negro de nuvens. Os piratas, com medo do grande exército, que avistaram em toda a extensão do Mar Caribe, recuaram e desistiram. A virgem chamada Remédios, que sobe aos céus envolta em lençóis parece ser referência a essa outra virgem, também cultuada em Macondo.

Histórias de família

No hotel, pergunto pelo paradeiro das famílias Márquez e Iguarán. “Conheço uma Iguarán que tem agência de turismo”, diz uma senhora que ouve a conversa na recepção. Horas depois encontro-me com Gloria Iguarán Ballesteros, 55 anos. “A importância de Gabo é enorme. Começamos a ler seus livros na escola. Sentimos que a obra fala da cotidianidade da Guajira. Há uma grande identificação. Na minha área de turismo, é importante como atrativo cultural”, diz orgulhosa a Iguarán, prima em terceiro grau do Nobel. Gloria me ajuda contatar outros membros da família e viabiliza uma viagem ao Cabo de la Vela.

“Iguarán é uma das primeiras famílias espanholas a se mesclar com os nativos da árida Guajira”, informa Jesus Amilcar Iguarán Quintero, primo de Gabo em segundo grau, engenheiro civil de 79 anos. Amilcar mora num sobrado bonito da praça da matriz Nossa Senhora dos Remédios e há dez anos pesquisa a genealogia familiar. Publicou, com Helion Iguarán Morales, em 2008, Breve reseña histórica y genealógica del apelido Iguarán. Ele garante que Tranquilina, a avó do primo famoso, não tinha descendência wayúu, ao contrário do que afirmam alguns biógrafos.

Antes de despedir-me, digo que pretendo visitar uma ranchería, mas não quero ir como turista. Amilcar pede para a sobrinha me levar até a casa de seu filho Nicolás. Há algo oculto nas meias palavras daquele senhor de pele morena. No caminho, a sobrinha Luisa relata parte da história, que os críticos literários chamariam de realismo mágico. Ao lado da igreja, nos fundos de um estacionamento de carros, vive Nicolás Iguarán Ipuana com Patricia Pushaina. Os dois se disponibilizam a acompanhar-me a ranchería da família dali a dois dias. A indígena, nora de Amílcar, é líder da comunidade “La Cachaca”. Nicolás é um dos filhos de Amilcar com uma índia wayúu.

A casa da concepção

De calça branca, a condizer com o tênis e o boné, aparece no hotel Ricardo Márquez Iguarán, 88 anos, engenheiro civil, o primo mais próximo de Gabo. Faz questão de me levar à casa da família, onde García Márquez foi gerado durante a lua de mel de Gabriel Eligio e Luisa Santiaga, em 1926. O imóvel é herança da família Márquez Iguáran. “Minha mãe cedeu o quarto principal para os recém casados. Então, Gabito e eu fomos gerados na mesma alcova. Eu dizia pra ele que éramos irmãos de cama”, brinca com a história

Ricardo quer contar sobre a última visita de Gabo a Riohacha, em dezembro 1983, um ano depois do Nobel. O motivo da viagem era acompanhar a implantação de um projeto de minério de carvão da associação Carbocol-Intercor, que almejava ser a maior mina a céu aberto da América Latina. “Queriam o aval de Gabo. Eu trabalhava na Carbocol, então organizei a jornada. Buscamos Gabo em Cartagena, em um voo charter. Sobrevoamos a mina, mostraram tudo, explicaram o projeto. Quando o avião desceu ele virou-se pra mim e cochichou: ‘Primo, a única coisa que me interessa desse projeto é a solução do problema da água na Guajira. Não importa se seremos os maiores exportadores de carvão. Meu maior desejo é acabar com a sede da população indígena’. Ele tinha razão”, diz cabisbaixo Ricardo, com o pesar de que o problema não foi solucionado.

Gabo hospedou-se em Riohacha, com a condição de que não houvesse nenhuma programação oficial. “Preparamos uma recepção na casa dos amigos Deluque, mas Gabo chateou-se com os jornalistas, que o assediaram o tempo todo com perguntas banais. Comentou depois que o jornalismo tinha que ser outra coisa, que aqueles repórteres locais não sabiam nada da profissão”, relata Ricardo.

Dia seguinte depois do café da manhã típico com salpicão de bonito e arepa branca - “que Gabo apreciou muito”- rumaram para Aracataca. “Ele estava ansioso. Era a primeira viagem a Cataca depois do prêmio Nobel. Quando chegamos, debaixo de um sol ardente de uma hora da tarde, dezenas de crianças de primária, de 10 e 11 anos, o esperavam com bandeirolas nas mãos para saudá-lo. Gabo ficou muito bravo: ‘Colocar crianças ao sol do meio dia para esperar um tonto como eu... Isso não está certo’ dizia ele indignado”.

Um sancocho trifásico o esperava na casa de um conhecido cataqueiro. “Às 4 da tarde já estava incomodado com as homenagens e pediu para Jaime levá-lo para Barranquilla. Ele não era de cerimônia. Não gostava de fazer discursos. Era um homem de poucos amigos. Saiu do país ainda jovem. Quando vinha à Colômbia ver seus amigos de sempre, convidava os familiares mais próximos. Gostávamos de estar com ele, não como figura importante, mas como parente”.

Os Iguarán-wayúu

15 horas. A comunidade parece vazia. Muitos trabalham na cidade ou estão pastoreando carneiros e cabras, animais mais resistentes para suportar a seca da região, símbolo de riqueza wayúu, que se mede pelo número de animais que cada um possui. Outros estão na pesca. Os indígenas vendem a mão-de-obra especializada em tirar mojarras, dourados e sierras neste trecho do mar Caribe que pertence a Cachaca. As lanchas e toda a tralha de pesca são de uma empresa que paga aos indígenas 30% do quilo de peixe, a partir de um valor estipulado por ela para cada tipo de pescado. Depois levam, diariamente, centenas de caixas para a cidade e vendem com uma margem de lucro altíssima.

No centro da ranchería, a construção de taipa coberta com zinco, aberta nas laterais para minimizar o calor, recebe 150 crianças pela manhã. Erika Iguarán Pushaina, 33 anos, filha de Patricia e Nicolás, é uma das professoras da comunidade. Ela leciona o idioma wayúu: “Trabalhamos com um Projeto de Educação, aprovado pelo Ministério de Educação, elaborado pelo povo wayúu para resgatar nossas raízes culturais. Nossos filhos estavam se afastando das tradições. Ao perder a língua e os costumes a pessoa perde a si mesmo, por isso lutamos muito para implantar esse projeto Etno Educativo”.


Na luta pela preservação de seu povo, Patricia Pushaina realiza há 15 anos o Festival de Resgate Cultura Wayúu. As trinta e duas comunidades wayúus de Riohacha enviam representantes para a festa, que é celebrada com comidas e bebidas típicas, além das lutas e músicas indígenas. “Faço a festa na Cachaca. A vencedora vai para Uríbia, a capital indígena, onde disputa com as majai de todo o Departamento. Aí fazemos o baile – yonna - e as moças se apresentam com seus trajes wayuus (a manta e a mochila) e a maquiagem típica. Então, se escolhe a wayúu mais bela de La Wajiira”.

Um pouco afastado das casas está o cemitério de poucos túmulos. Ao redor, estruturas de taipa e palha para realizar as cerimônias e fazer as refeições. Depois de doze horas no chinchorro o corpo é lavado e colocado no caixão para enterrar. Durante 9 dias, a família oferece comida e bebida (de milho fermentado) para os parentes e amigos ‘chorarem o morto’. Depois de 5 anos os ossos são retirados. Realiza-se outra cerimônia de despedida. Desta vez os restos mortais serão depositados no “ossário” da família e o espírito passa a pertencer ao mundo divino, já sem identidade individual. O clã é matriarcal, assim o coletivo sempre é representado pelo sobrenome materno. Nesse momento têm dois túmulos de Iguarán-Pushaina. Quando uma família se muda, leva os ossos de sua linhagem. No romance, Rebeca, que era de Manaure, chega em Macondo com um pequeno baú contendo os ossos dos pais. García Márquez não revela de imediato, mas todos os detalhes levam a crer que ela era wayúu.

No deserto de Erêndira

A camionete conduzida por Xavier Bermudes, da agência de viagens, passa no hotel em Riohacha às 5 horas da manhã. Destino: Cabo de la Vela, uma das mais belas praias da América Latina, protegida pelos wayúus do turismo depredador. O passeio inclui Maicao, cidade de turcos, libaneses e outros povos do Oriente Médio (onde ainda vivem muitos descendentes Márquez-Iguarán). Maicao é puro contrabando, uma área livre de impostos, boa para quem gosta de fazer compras, mas está perigoso passar por lá. Fica muito perto da divisa com a Venezuela, que atravessa uma grande crise econômica. A fronteira está fechada. Os venezuelanos estão proibidos de sair e os turistas proibidos de entrar. “Criaram caminhos escondidos para contrabando e para fugir da Venezuela, que não tem emprego. Mas já morreu gente que não conseguiu atravessar”, explica o motorista.

Às 7 hs chegamos em Uríbia, a capital indígena da Colômbia. Parada para o café da manhã. No banheiro do restaurante, uma vasilha enorme com água amarela e mal cheirosa para dar descarga à mão. O ácido que exalava da latrina se misturava ao cheiro do óleo rançoso das frituras na cozinha contígua. Impossível comer ali. Melhor pegar frutas no mercado e tomar café na padaria.

Voltamos para a estrada em direção ao norte. A sequidão de quando em vez mostrava cactos dispersos entre casas de taipa. Lembra a caatinga do nordeste brasileiro. Na paisagem dourada de areia, recordo Erêndira e sua avó desalmada, que vendeu a neta em barracas improvisadas pelo deserto. A primeira aparição de Erêndira, foi em Cem anos de solidão, na cantina de Catarino.

O conto, que em princípio era roteiro de cinema, foi baseado em um vallenato de Rafael Escalona, La patillalera, e no bordel ambulante chamado Erêndira, que Gabo reparou no deserto da Guajira, quando por lá andava vendendo relógios e livros, entre 1951 e 1952. Naquele “entonces” sentiu na pele os mitos e mistérios do povo wayúu, as histórias fantásticas de sua avó, as outras versões das batalhas dos Mil Dias de seu avô e, principalmente conscientizou-se da profunda conexão entre a família espanhola materna e a cultura guajira.

Nessa região também há uma zona muito fria. É a Sierra Nevada, cujo topo está sempre branco de neve. Aí vivem 30 mil índios das etnias arhuacos, wiwas, kogis e kankuamos. Este é um dos Departamentos mais pobres da Colômbia, onde se concentra o maior número de indígenas do país. É suposto que Bogotá envie verbas, mas elas não chegam ao destino, segundo o jornalista Alonso Sánchez Baute,

A seca e a falta de água potável fazem parte do dia-a-dia dos indígenas e mestiços, além do contrabando de ouro, de marijuana, de coca, de gasolina ou de qualquer coisa adquirida na fronteira da Venezuela. Segundo os dados oficiais de 2016, a Guajira é habitada por 985.498 pessoas, 44,9% indígenas, 40,3% são mestiços e brancos, 14,8% negros ou afro-colombianos e 0,04% são ciganos Estima-se que 50% da população não tem saneamento básico. Não há água encanada num calor constante entre 30 e 42 graus.

No caminho amplo que se faz de estrada, a vegetação é rara. “Choveu muito em outubro e novembro. Por isso ainda existe algum verde”, diz o condutor. De repente algumas reservas de água da chuva. De repente, o mar ao fundo. A cada dois quilômetros, paupérrimos pedágios improvisados. Crianças e mulheres wayúus surgem segurando um frágil tronco amarrado a uma fina corda, que se prende ao outro extremo da passagem. Mil pesos. Equivalente a um real. “No retorno”, dizia para todos, Xavier. Para não pagar. Na volta ele fez outro trajeto.

Depois de apreciar, de longe, as lindas praias de Mayapo chegamos a Manaure. A terra de Rebeca, personagem de Cem anos de solidão. Rebeca, a que comia terra e cal, não falava espanhol, mas compreendia a fala dos índios. Manaure tem lindas salinas. Os indígenas têm um sistema ancestral de extrair o sal da água do mar e ajuntá-lo em pequenas montanhas brancas. Os brancos montes pontiagudos formam paisagens geométricas ao longo do horizonte. Paramos para ver de perto. As crianças wayúu vêm correndo para pedir dinheiro, tirar fotos e vender pulseiras e grandes pedaços de sal. Nosso grupo, um casal francês e um casal colombiano, além de mim, decide oferecer garrafas de água. Os pequenos índios se alegram, bebem e molham o rosto e as mãos. “A água é doce”, diz um garoto.

Antes de chegar ao morro Pilão de Açucar, restaurantes rústicos fazem fila na beira mar. Lá de cima, dá pra ver o sinuoso recorte da Praia Dourada, onde o mar Caribe desenha ondas de azul turquesa. Cabo de la Vela. Um clã indígena toma conta das barracas. Cervejas venezuelanas e água, em pequenas caixas de isopor, vendem-se quase frias. Uma guarita para trocar a roupa: mil pesos. Não há banheiros. O Mar Caribe é a única saída para as necessidades humanas. A agua é fria, mas limpa, tingida pelo azul do céu mais caribenho da costa. Parada para o almoço tradicional: arroz de coco, patacones e peixe frito.

Voltamos pelo Faro, um farol pequeno de onde se avista a Serranía del Perijá. O mar Caribe vai contornando a estrada. Em algumas curvas se faz de espelho para o céu da mesma cor. De repente, a negra estrada de ferro rompe o cenário. O trem leva carvão da mina Del Cerrejón Norte, exploração da Carbocol e da Intercor, filial da norte-americana Exxon. É uma das maiores do mundo a céu aberto e exporta cerca de 16 milhões de toneladas de carvão por ano. Cabras e bodes atravessam os caminhos em busca de pasto. Casas de taipa ao longe. Árvores retorcidas ao sabor do vento. Céu azul intenso e chão dourado. De vez em quando uma moto. O motorista ouve vallenato e comenta: “Essa é uma região muito rica. Temos exploração de gás, o parque eólico Jepírachi e dizem que há reservas de petróleo. Estão perfurando...” Mas o desejo de Gabo ainda não foi realizado. Falta água para a população guajira.

 


Maria Cecília (Ciça) Guirado, é jornalista, mestre em Comunicação e Semiótica (PUC-SP) e doutora em História da Comunicação (Universidade Nova de Lisboa). Leciona na Universidade Estadual de Londrina. O texto acima é resultado de uma viagem da autora a Riohacha, em fevereiro de 2017, e foi publicado na integra, em espanhol, pela Revista Unicarta, da Universidade de Cartagena.