Edição 211 - Brasília, 04 de junho a 02 de julho de 2017

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Cinema

Os dois filmes por trás da história
Polêmica em torno do festival Cine-PE

Por Carlos Alberto Mattos

Foto: Divulgação

Olavo de Carvalho, personagem do filme O Jardim das Aflições

A mesma semana viu entrarem em cartaz no Rio os dois filmes-pivô da polêmica em torno do festival Cine-PE. Quando foi anunciada na programação a presença do documentário O Jardim das Aflições, sobre o ideólogo ultraconservador Olavo de Carvalho, e a ficção Real - A História por trás do Plano, sete realizadores e mais um pesquisador pediam sua retirada do festival em protesto. Na carta que divulgaram, eles explicam:

"Constatamos que a escolha de alguns filmes para esta edição favorece um discurso partidário alinhado à direita conservadora e grupos que compactuaram e financiaram o golpe ao Estado democrático de direito ocorrido no Brasil em 2016. Para nós, isso deixa claro o posicionamento desta edição, ao qual não queremos estar atrelados". A íntegra da carta pode ser lida aqui

A atitude gerou certa polêmica no meio cinematográfico, com algumas vozes acusando os cineastas de serem intolerantes e praticarem censura. O direito de participar ou não de um festival, sem exigir nada em troca, lhes era negado por supostos defensores da diversidade. Contra essa interpretação insurgiram-se 62 críticos e críticas de cinema de todo o Brasil através de um manifesto em apoio aos realizadores. Entre os signatários estavam nomes importantes como Jean-Claude Bernardet, José Geraldo Couto, Luiz Zanin, Maria do Rosário Caetano, João Luiz Vieira e Pedro Butcher.

Expostos enfim ao público no circuito comercial, os dois filmes-pivô se destacam mais por sua mediocridade conceitual e cinematográfica do que pelo conteúdo político que desajeitadamente veiculam.

No que diz respeito a Real – O Plano por Trás da História, basta a frase "Fernando Henrique, você tem que pensar em alguma coisa", dita a certa altura por Itamar Franco (Bemvindo Sequeira) para dar uma ideia do nível de banalização a que o filme submete esse episódio da história econômica brasileira. A criação do Plano Real, segundo o filme, foi uma maratona de discussões inflamadas entre homens firmemente dispostos a "salvar o Brasil". Itamar aparece estranhamente enérgico, enquanto FHC, Malan e outros próceres do tucanato quase desaparecem em benefício do protagonista, Gustavo Franco.

O filme é conceitualmente desastroso ao tentar aplicar a fórmula de thrillers financeiros americanos (como "Wall Street" e "A Grande Aposta") ao contexto brasiliense. Alguns lances chegam a parecer satíricos, como a caminhada em câmera lenta dos "homens de preto" ou o discurso de Franco em defesa do Plano numa manifestação de adversários. Essas liberdades de representação descolam o filme de um maior compromisso com os fatos, acomodando-se melhor na faixa da recriação ficcional.

Cabe reconhecer que REAL permite também uma leitura mais ambígua dos acontecimentos. Se reafirma a importância do Plano, não escamoteia os seus efeitos adversos, nem a quebra da economia brasileira no segundo mandato de FHC. Vários diálogos evidenciam como o povo era um joguete na boca dos tucanos. Gustavo Franco ocupa o centro dramatúrgico como um herói problemático, pequeno monstro neoliberal que não hesita em sacrificar amores, amigos e até o seu amado mercado em prol de ambições pessoais. Em dado momento, ele até sugere um paralelo com Napoleão.

Tecnicamente, o diretor Rodrigo Bittencourt (também autor de grande parte da trilha roqueira) se segura no ritmo, na manutenção de movimento constante e em algumas boas performances. Emilio Orciollo Netto como Franco, Juliano Cazarré como um senador petista genérico e Arthur Koll com voz idêntica à de José Serra têm atuações particularmente sugestivas. Em compensação, Cassia Kis como a repórter de TV que deveria empurrar a narrativa, ao contrário, empaca o filme sempre que aparece.

Entre cenas ridículas e caracterizações de alguma complexidade, REAL acabou me parecendo menos ofensivo do que eu esperava, embora mais caricato do que foi o Brasil dos anos 1990.

Quanto a O Jardim das Aflições, não estou bem certo se pode ser chamado de um filme. O fato de estar sendo projetado numa tela não é suficiente quando falta qualquer laivo de invenção, método ou revelação. Sob o pretexto de um documentário sobre Olavo de Carvalho na intimidade de sua casa (na Virginia, EUA) e de suas ideias, Josias Teófilo criou apenas um veículo subserviente para o escritor "vender" seu livro homônimo, seus cursos e sua vaidade livresca exposta em infindáveis tomadas de estantes abarrotadas.

Algumas cenas canhestras de aconchego familiar tentam mostrar o lado humano do personagem, mas o que prevalece mesmo é a imagem da família e do diretor ouvindo, embevecidos, Olavo desfiar generalidades filosóficas na sala de estar.

Quando sai do campo das generalidades, as coisas ficam ainda mais difíceis de engolir. Para Olavo, o estado é um mero controlador de individualidades, já que ele não aprova qualquer função social dos governos. Sua peroração sobre a "revolução cultural" que a esquerda teria realizado no Brasil com a parceria das universidades e da mídia atinge a esfera da paranoia delirante. A noção de que o mundo está dado como natureza e nada resta a fazer, pois tudo o mais seria controle e imposição, cai bem como ideologia de defesa do status quo capitalista.

A câmera impassível e submissa de Josias Teófilo ouve a tudo como se fosse a palavra de Deus. Mesmo no campo das ideias, o filme tem dificuldade em fornecer uma síntese, por exemplo, da oposição de Olavo à "tirania do coletivo", conceito que nomeia a primeira das três partes. A ilustração com imagens anódinas de Brasília pretende algo indecifrável, assim como as cenas de "Limite"/Mario Peixoto coladas a um texto de Ortega y Gasset insinuam uma conexão para além de qualquer entendimento racional.

Se essa visita ao ideólogo conservador fornece algum insight é sobre a admiração dele pelo exógeno. Sua reverência aos marcos da Guerra Civil Americana na região onde mora ("Aqui a gente sente que tem História") e a admiração pelas armas e os westerns poderia ter inspirado o documentário no rumo de uma paródia de gênero. Mas aí seria um filme.

 

 Carlos Alberto Mattos é jornalista e crítico de cinema. Artigo originalmente publicado no blog do autor.