Edição 211 - Brasília, 04 de junho a 02 de julho de 2017
Reportagem
Por Hélio Rocha
Ilustração: Rafael Dantas
O sertão de Guimarães Rosa não é mais o mesmo
Por onde andam as veredas e buritis? O sertão mineiro, antes apenas uma região pobre e esquecida do estado de Minas Gerais, tornou-se memorável e patrimônio cultural do estado após a literatura do mineiro mais ilustre entre os romancistas brasileiros, Guimarães Rosa. Sessenta anos após a morte do escritor, que se completarão no dia 19 de novembro deste ano, grande parte daquele cenário se perdeu. Hoje, os buritis deram lugar aos eucaliptos e ao agronegócio, as veredas se tornaram espaço para barragens de mineração e represas para abastecimento e hidrelétricas. O bucólico interior mineiro segue, porém, resistindo à mercantilização de suas riquezas naturais, bem como ao aniquilamento da agricultura familiar. Com o suporte de entidades que buscam preservar os ecossistemas de Minas Gerais, pequenos produtores e ambientalistas seguem na luta por uma relação sustentável entre as veredas e as demandas da agropecuária e do desenvolvimento.
Conta a história de Guimarães que Augusto Matraga, antes um coronel impiedoso do interior mineiro, cercado de jagunços, foi acolhido por um casal de pretos (expressão original) após quase ser morto numa emboscada. Tendo sua vida salva, resolveu viver uma vida longe do pecado e tornou-se, ele também, agricultor de um pequeno rancho qualquer perdido nas veredas de Minas. Noutra narrativa, o “burrinho pedrês”, mansamente, faz sua trajetória em meio ao caos de uma tempestade na zona rural mineira, chegando ao seu destino final para descansar após uma saga simples e cotidiana, porém cheia de perigos. Por fim, a amizade e possível romance de Riobaldo e Diadorim, assim como os duelos e fugas protagonizados pelos dois no sertão das Gerais, marca o ponto alto na narrativa do escritor mineiro.
Todas essas histórias têm algo em comum. Suas personagens ainda estão por lá. Ainda vagam pelo interior mineiro os quilombolas, os trabalhadores rurais, os rebanhos dos pequenos sítios e, à exemplo dos velhos jagunços, os criminosos e os serviçais das elites rurais, os grandes produtores que um dia foram chamados de “coronéis”. A diferença não está nos habitantes e no perfil socioeconômico do Norte e do Noroeste de Minas, mas em suas características geográficas e ambientais, que impactam a vida das pessoas.
De acordo com o professor da Faculdade de Geografia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Eugênio Goulart, uma diferença inicial se faz notar ao primeiro olhar de quem passa pelo noroeste do estado: o sertão mineiro, com suas veredas e buritis, entrecortado pelos pequenos afluentes do São Francisco, vê-se domado pela modernidade, muitas vezes de forma predatória. Os eucaliptos dominam a região, assim como barragens, represas e novas hidrelétricas. “A região mudou demais, e não houve preocupação com a preservação do patrimônio natural, que também é cultural graças à obra de Guimarães.”
O mesmo afirma o doutorando em Geografia pela UFMG Gabriel Oliveira, que completa: “principalmente porque houve um processo desenvolvimentista no final do século XX, sobretudo nos anos 1970 e 1980, que ignorou as necessidades de preservação do meio ambiente e das características econômicas e sociais da região”, explica. “Hoje, Governos e entidades encontram dificuldades em recuperar o local, apesar de haver iniciativas com esse objetivo.”
De acordo com ambos os especialistas, uma característica etimológica do interior de Minas, que mostra o quanto a região dependia de suas veredas, é o nome dos tipos de trabalhadores rurais que ali habitam. Até hoje, os pequenos produtores nomeiam suas profissões com palavras referentes ao elemento do ecossistema do qual tiram seus sustentos. Os barranqueiros vivem de plantar e pescar próximos aos barrancos feitos pelo curso das águas. Os buritizeiros tiram sustento dos buritis e da vegetação e solo fértil nos seus arredores. Os campeiros plantam e colhem nas várzeas da região.
Hoje, cercados pelo agronegócio, esses produtores subsistem, mas não têm a mesma vida que seus avós, nos tempos retratados por Guimarães. A pobreza do norte e noroeste de Minas Gerais também fomenta a criminalidade, e desta forma os lugarejos, antes ameaçados pelo coronelismo, hoje sucumbem à criminalidade. Segundo levantamento realizado pela Secretaria de Estado de Defesa Social (Seds) do Governo de Minas, a violência no interior mineiro foi alavancada nos últimos 20 anos, chegando a 12 mil homicídios no norte do Estado. Montes Claros, a maior cidade da região, mas também Pirapora, Várzea da Palma, Janaúba e Buritizeiro, padecem da violência e, nessas últimas quatro, a maior parte dos crimes ocorre em áreas rurais. Se os pequenos agricultores nunca deixaram a região, a pobreza também jamais permitiu que ela se tornasse livre de seus jagunços.
Manuelzão e cadastramento rural são esperanças
O poder público, por meio de sua administração direta e suas autarquias, hoje, duas décadas após o desenvolvimentismo desenfreado, atua para recuperar a região. O Projeto Manuelzão é uma das iniciativas de excelência implantadas no interior do estado, com apoio da UFMG, para preservação da bacia do Rio das Velhas, o principal entre os afluentes do São Francisco, que nasce em Ouro Preto e deságua em Várzea da Palma. Por toda essa extensão, o projeto realiza biomonitoramento, geoprocessamento e recuperação das matas ciliares do Rio das Velhas. Também investe em projetos culturais para atenção às populações ribeirinhas, quilombolas e aos pequenos produtores da bacia.
Segundo o médico sanitarista e membro do Manuelzão, Apolo Heringer Lisboa, "o processo de renaturalização (dos rios), através da engenharia ambiental, é um alento àqueles que acreditam num futuro saudável, na qualidade da água natural como condição de saúde e no resgate da função simbólica, lúdica e de lazer e entretenimento dos rios, principalmente nas regiões desprovidas de outros centros de lazer". O rio, no entendimento dos diretores do projeto, é não apenas uma fonte de riqueza natural e qualidade de vida, mas de identificação cultural para as populações do interior mineiro.
O Governo estadual, por sua vez, investe no Cadastramento Ambiental Rural como fonte para um mapeamento efetivo dos trabalhadores e proprietários de terra do estado, de modo que se possa fiscalizar ameaças ao meio ambiente, mas sobretudo atender à população mais pobre e que precisa do subsídio do Estado para ser competitiva no mercado. Apenas munido das informações sobre cada propriedade rural, o Governo tem noção clara de que obrigações ambientais incidem sobre cada propriedade, e desta forma pode haver um planejamento para preservação dos ecossistemas mineiros. Da mesma forma, ele pode compreender as necessidades dos pequenos produtores e criar projetos econômicos e sociais para fortalecimento e diversificação da economia rural. As inscrições são feitas no site da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e vão até 31 de dezembro de 2017.
Hélio Rocha é jornalista. Texto originalmente publicado na revista Plurale.