Edição 209 - Brasília, 22 de janeiro a 19 de fevereiro de 2017
Ficção
Por Eduardo Haak
Os pais de Olegário são ricos, mas dão pouco dinheiro a ele.
Olegário comprou uma bicicleta, francesa, de segunda mão, com uma parte do quadro soldada. O dono anterior sofreu um acidente com ela.
A compra dessa bicicleta, apesar da soldagem no quadro e de uma roda que não foi desentortada adequadamente, deixou Olegário muito feliz – depois de seis meses ainda sente prazer em pedalar, especialmente num dia como hoje, um sábado de sol, bem cedo.
Vai à garagem e a empurra com a mão até a calçada. O barulho do cubo parece o tambor de um revólver girando, trrrrrrrrrrrrr.
Uma vez Olegário cogitou usar uma das armas de casa para obter à força algo que estava querendo muito, mas que o pai dissera que não ia comprar.
Então se horrorizou: descobriu que podia fazer coisas más e irreversíveis.
Olegário tinha onze anos e soube que nunca mais seria a pessoa inocente e feliz que fora até então.
A rua em que Olegário mora tem nome de país europeu e acaba na Faria Lima.
Ele pedala até o Largo da Batata, depois volta e pega a descida que conduz ao estacionamento externo do Shopping Iguatemi, uma área arborizada em que qualquer pessoa pode entrar (estamos em 1986, ainda não há cancelas, vigilantes, etc.).
O estacionamento está vazio, o shopping só abre às dez.
Olegário observa os fundos de uma loja de discos, o cano de um exaustor, uma árvore, e pensa no que viu ontem na TV, a reportagem de um homem que vendia borrifadas de desodorante no banheiro de um salão de baile.
Um carro, novo, com rack para prancha de surf, entra no estacionamento.
A distância Olegário vê que é um casal.
O motor do carro é desligado. Um sujeito forte, com uma camiseta em que se vê uma linha de arame farpado sobre o sol (sun city, artistas unidos contra o apartheid), desce e vem até ele.
É o seguinte, meninão, diz. Estou com uma gata ali no carro. Se você ficar por aqui ela não vai fazer nada, vai ficar com vergonha. Pode fazer o favorzinho de cair fora?
A voz do sujeito parece mais cheia de ss do que o normal, com se suas gengivas estivessem anestesiadas.
O sujeito se afasta e diz para a mulher, o bundão já vai embora, aí gira o tronco a Olegário e diz, com a mão em formato de concha ao redor da boca, não é, bundão?
A mulher desce dando risada e diz, indo na direção de Olegário, c-cara, que chocante, você se parece demais com um primo meu!
Vem, o sujeito diz, pegando-a pelo braço. Os dois voltam ao carro.
Olegário permanece no mesmo lugar, olhando o casal de modo desafiador. Sabe que se for covarde irá passar meses pensando, eu podia ter reagido assim, etc.
O sujeito dá a partida e avança contra a bicicleta, freando bem próximo.
E aí, bundão, vai embora ou não vai?
Engata a ré, toma distância e vem de novo. Então Olegário pega a bicicleta e a arremessa contra o carro, atingindo o capô e o para-brisa.
O sujeito desce e corre atrás de Olegário.
Olegário consegue despistá-lo e se esconde no hall social de um daqueles prédios que ficam atrás do shopping.
Olegário ouve o barulho do sujeito passando várias vezes com o carro por cima de sua bicicleta.
Volta ao estacionamento quando não escuta mais nada.
Aproxima-se da bicicleta, fica olhando para ela.
Quando viu um cadáver pela primeira vez – na praia –, Olegário reparou nisso. Toda coisa destruída tem a mesma aura de silêncio.
Eduardo Haak é paulistano, nascido em 1971. Foi cronista do portal de conteúdo feminino do UOL, "iTodas", durante três anos. É autor dos livros Tem uma coisa sobre mim que acho justo você saber, lançado em 2011 pela editora KBR, e do e-book Adulteração, de onde foi retirado o conto acima.