Edição 209 - Brasília, 22 de janeiro a 19 de fevereiro de 2017
Literatura
Por Reginaldo de Jesus
“Eu próprio já tive oportunidade de reconhecer que há dois modos de ser na valorização da província: ou como provinciano ou como provincial. Para o provinciano, o que existe é a província, restrita à limitação de seus horizontes. Para o provincial, o que existe é o universo na província. Daí a recomendação de Tolstoi: - Se queres ser universal, cultiva a tua aldeia. E estava certo o mestre russo, universalizando-se em Iasnaia Poliana, como se olhasse o mundo do alto de sua torre.”
Josué Montello (Prefácio à Janela de mirante)
Foto: Reginaldo de Jesus
A obra de Antônio Torres
Dois Antônio Torres
Gostaria de deixar bem claro, neste preâmbulo, sobre qual Antônio Torres discorrerei, porque de fato há dois Antônio Torres em nossas letras. O primeiro era mineiro de Diamantina, nascera em 31 de outubro de 1885 e falecera em 17 de julho de 1934, em Hamburgo, na Alemanha, onde servia no consulado brasileiro e a quem outro mineiro famoso, Guimarães Rosa, sucedeu no posto diplomático.
Este Antônio Torres fora padre, mas sua têmpera de polemista, sarcástico e panfletário lhe fizera abandonar a batina e se tornar um dos jornalistas mais famosos e temidos do Brasil, em seu tempo. No Rio de Janeiro, onde fizera carreira de jornalista e cronista, ele se inscreve, segundo o poeta e crítico Alexei Bueno, entre os maiores cronistas da Cidade Maravilhosa, rivalizando com nomes como Luiz Edmundo, Lima Barreto, João do Rio, seu arqui-inimigo, Gastão Cruls, seu grande amigo, e Sérgio Porto, só para citar os mais conhecidos e consagrados daquela época.
O segundo Antônio Torres nasceu em 13 de setembro de 1940 no pequeno povoado do Junco, sertão da Bahia, hoje a cidade de Sátiro Dias. Foi jornalista e publicitário. Morou em Alagoinhas, Salvador, São Paulo, Portugal e Rio de Janeiro. Atualmente mora em Itaipava, Petrópolis. É considerado um dos mais importantes romancistas contemporâneos, tem 11 romances publicados e vários deles traduzidos para diversas línguas. Em 1998, foi condecorado pelo governo francês como Chevalier des Arts et des Lettres.
Torres é ganhador de vários prêmios literários, com destaque para o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto de sua obra (2000). Em dezembro de 2016, foi eleito o vencedor do mais importante galardão da Academia Carioca de Letras, o Grande Prêmio Cidade do Rio de Janeiro, também pelo conjunto de sua obra. Desde abril de 2014 é membro da Academia Brasileira de Letras, ocupando a cadeira 23 cujo patrono é ninguém menos do que José de Alencar, o primeiro ocupante foi Machado de Assis e durante 40 anos pertenceu a Jorge Amado.
Protagoniza este texto o segundo Antônio Torres.
O dedo do Bruxo do Cosme Velho
Devo a meu ídolo, Machado de Assis, a descoberta de três outros grandes escritores da literatura brasileira que se tornaram igualmente meus ídolos: o sergipano Francisco J. C. Dantas, o maranhense Josué Montello e o baiano Antônio Torres. Foi o dedo do Bruxo do Cosme Velho que me levou a estes três geniais romancistas.
Em 2005, eu queria pleitear uma vaga no mestrado de Letras da UFAL e meu objeto de estudo seria composto de contos de Machado de Assis. Procurei o ex-professor da UFS, o escritor Francisco Dantas, para me valer da fortuna crítica que ele coleciona a respeito do mestre de Brás Cubas. Dantas é um especialista em Machado e dono de uma das melhores e maiores bibliotecas machadianas. É verdade que eu já havia lido seus romances e já era seu fã, mas foi meu interesse pelo estudo de contos de Machado que me fez amigo do mestre de Coivara da memória.
Em 1998, a obra Os inimigos de Machado de Assis me apresentou à pena de Josué Montello. De lá para cá, tornei-me amigo íntimo de Montello. No entanto, trata-se apenas de uma amizade pelos livros, uma vez que não o conheci pessoalmente, por culpa das contingências da vida. E mesmo havendo uma imensa lacuna nessa amizade, pois só voltaria a lê-lo dez anos depois, eu soube desde o primeiro contato, que ele iria me acompanhar até os últimos dias de minha vida.
E o que dizer de meu primeiro contato com Antônio Torres? Conheci primeiro o escritor, mas poderia ter conhecido antes um de seus escritos, se eu tivesse lido a antologia Os cem melhores contos brasileiros do século, organizada por Ítalo Moriconi. Cheguei a folhear este livro várias vezes nas livrarias. Há um conto de Antônio Torres nesta coletânea intitulado “Por um pé de feijão”.
Ironicamente, se Ítalo Moriconi não logrou o feito de me apresentar Torres, através dessa antologia de contos, ele me apresentou o escritor em carne e osso, na tarde do dia 3 de agosto de 2006, no Teatro Odylo Costa, filho, na UERJ, quando foi o moderador de uma mesa-redonda de prosadores, composta por Moacyr Scliar e Antônio Torres.
Foto: Reginaldo de Jesus
Da esquerda para a direita: Moacyr Scliar, Ítalo Moricone e Antônio Torres
Era o X Congresso Internacional da ABRALIC (Associação Brasileira de Literatura Comparada). Eu me fiz presente nesse congresso para participar, como ouvinte, de um fórum denominado “O lugar dos contos de Machado de Assis”, coordenado pelo professor doutor João Cezar de Castro Rocha. No entanto, não quis perder os simpósios e num deles estava o mestre de Essa terra. Como eu já havia dito, foi Machado de Assis quem, de certa forma, apresentou-me a Antônio Torres.
Todavia, durante o simpósio dos prosadores, minha atenção estava toda voltada para Moacyr Scliar. Eu já havia lido alguns de seus romances e contos e era seu admirador, embora não fosse seu fã. Lembro-me bem de que não dei a mínima atenção a Antônio Torres, pois ainda não conhecia nada de sua obra. Até me esbarrar com ele, numa mesma mesa, dez anos depois, na Casa de Machado de Assis.
Desta vez, agradeço a Josué Montello e a Academia Brasileira de Letras, na pessoa da escritora e Acadêmica Ana Maria Machado, por me fazerem amigo de Antônio Torres e de sua obra. No dia 14 de junho de 2016, graças ao convite de Ana Maria Machado, tive o privilégio de estar ao lado de Torres tanto na sala do chá dos imortais da ABL quanto no Teatro R. Magalhães Jr., quando fui proferir minha conferência intitulada “Os tambores de São Luís: quarenta anos da obra-prima de Josué Montello”. O Acadêmico Antônio Torres era o coordenador do ciclo de conferências “África: olhares ficcionais da ABL” e eu era um dos conferencistas desse ciclo.
Foto: Daniela Montello
O autor ao lado de Antônio Torres na sala do chá da ABL
Terminada a conferência, fui agraciado por suas palavras efusivas que me fizeram crer que não fui um fracasso. Torres me presenteou também com dois de seus romances: Essa terra, sua obra-prima, e o premiado Meu querido canibal, devidamente autografados. Desde aquele momento, eu senti que nasceria uma bela amizade entre o grande romancista baiano e o humilde professor sergipano.
Foto: Antonio Santos
O autor e Antônio Torres no Teatro R. Magalhães Jr. (ABL)
A obra torresiana: amor à primeira leitura
Se o dia 14 de junho me pôs ao lado do escritor Antônio Torres, o dia 18 do mesmo mês apresentou-me à sua obra romanesca. Na tarde desse dia, li o romance Essa terra e seu posfácio. O impacto dessa leitura foi tão grande quanto o que senti no dia em que li, pela primeira vez, por exemplo, Memórias póstumas de Brás Cubas, Coivara da memória ou Os tambores de São Luís.
Após minha leitura de Essa terra, disse a mim mesmo: “Esse cara é genial! Como só fui conhecê-lo agora? Esse romance é uma obra-prima.” Embora eu devo declarar aqui que não sabia ainda que, de fato e de direito, esse livro é considerado pela crítica especializada a obra-prima de Antônio Torres. Mas logo me atentei para o fato de que, assim como celebrávamos os quarenta anos de Os tambores de São Luís, de Josué Montello, feitos em 2015, no ano de 2016 celebramos os quarenta anos de Essa terra. Ironicamente, enquanto eu estava na ABL exaltando as qualidades da obra-prima de Montello, Torres, ao meu lado, guardava num envelope, sua obra-prima para me presentear.
Outrossim, meu desejo instantâneo, depois da leitura do livro, era sair pelas ruas anunciando num megafone: “Leiam o romance Essa terra, de Antônio Torres! Esse livro é uma maravilha. Não morram sem ter lido Essa terra!”. Se assim eu tivesse agido, estaria em conformidade com um desejo análogo da escritora Rachel de Queiroz. No prefácio a uma das edições de O coronel e o lobisomen, ela diz que desejou fazer exatamente isso quando leu esse célebre romance de José Cândido de Carvalho.
Numa conversa pelo Facebook com o saudoso contista Antonio Carlos Viana, que elogiava meu desempenho na conferência da Academia Brasileira de Letras, eu dizia a ele o quanto estava estupefato com a leitura de Essa terra e sugeri que esse romance fizesse parte do projeto criado por ele, denominado “Autor do mês”. Esse projeto consistia na escolha de um autor contemporâneo e colocação de uma obra dele em debate. Não se tratava de dar uma aula, mas de fazer as pessoas chegarem ao encontro com o livro lido e ali o discutir nos aspectos que mais lhes chamaram atenção. Viana me disse que já havia lido outros romances de Torres, inclusive elogiou muito Um cão uivando para a lua, Um táxi para Viena d'Áustria e outro cujo título não me lembro agora.
O autor de Jeito de matar lagartas passou um bom tempo estudando Um táxi para Viena d’Áustria com alunos da UFS onde lecionara, mas ainda não tinha lido Essa terra e achava que o tinha e iria lê-lo. Eu lhe disse que esquecesse tudo que havia lido sobre o sertão na literatura, porque esse romance era inovador e renovador desse tema, além de ser revestido por uma linguagem diferenciada e técnica narrativa ousada para os anos 70. Infelizmente o contista sergipano faleceu quatro meses depois desse bate-papo e não teve tempo de ler essa obra. Viana e Torres se conheciam pessoalmente.
Não posso deixar de registrar aqui uma das associações que fiz de imediato entre Essa Terra e o romance Enquanto agonizo, de Willian Faulkner. Em Essa terra, a cena em que o pai de Totonhim, em seu mutismo, vem fazer o caixão de Nelo, seu filho suicida, lembrou-me veementemente a cena em que Cash, também em seu mutismo, faz o caixão da mãe, Addie Bundren, em Enquanto agonizo.
Contudo, mais do que essa cena, esse romance de Torres lembra muito o de Faulkner por sua técnica narrativa fragmentária e polifônica. E isso não é um demérito; ao contrário, esse e outros romances de Antônio Torres ao fazerem uso dessa técnica narrativa e ao porem os conflitos de seus personagens num patamar que vai além do regional, alcançam um lastro universal.
Qual não foi minha surpresa ao ler, muito depois, no site oficial de Antônio Torres, um prefácio de Ítalo Moricone à edição de bolso de Essa terra, e encontrar o trecho que aqui transcrevo: “Quando releio em Essa terra as páginas que narram o percurso tresnoitado em que o narrador leva a mãe para ser internada numa instituição psiquiátrica, sempre me vem à mente o relato arquetípico da viagem dos irmãos com o cadáver da mãe no clássico Enquanto agonizo.”
Moricone comenta, num trecho anterior ao supracitado, que Torres já se valera de Faulkner ao usar uma frase do mestre de O som e fúria como epígrafe de seu primeiro romance Um cão uivando para lua. E eu aproveito para lembrar aqui duas coisas: a primeira é que a epígrafe de Essa terra foi extraída de O som e a fúria; a segunda, é a declaração do personagem A no final do capítulo 3 de Um cão uivando para lua: “Eu também queria escrever um livro. O título desse livro seria: Enquanto eu agonizo. Não, não faz mal que alguém já tenha escrito um com esse nome. I could write a book.”
O próprio Torres põe Faulkner entre suas influências quando entrevistado por Vandré Abreu e André de Leones, que, entre outras coisas, queriam saber quais escritores ajudaram a definir seu estilo. Eis o que ele diz:
“Meu estilo começa na infância no sertão, ou seja, na cultura popular que vem da literatura de cordel, das lendas de um povo, dos cânticos religiosos e profanos, das festas populares. Venho de um mundo de contadores de história e isso formatou meu imaginário. Quanto às influências eruditas, incluo Machado de Assis, os romancistas da chamada Geração de 30 (Jorge Amado, Graciliano Ramos etc.), e os norte-americanos, como William Faulkner, Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway, Truman Capote, e tudo mais, de Dostoievski ao francês Boris Vian, de James Joyce ao português José Cardoso Pires.” Em seu livro Sobre pessoas, numa crônica denominada “Enquanto Nova Orleans agonizava”, Torres declara que Faulkner sempre foi um de seus santos de cabeceira.
Ilustração: Franklin França
Antônio Torres e os títulos de suas obras
No dia seguinte à leitura de Essa terra, eu li os primeiros capítulos de Meu querido canibal e sofri outro grande impacto. Nesse livro, o Velho Índio das Letras (epíteto usado por Torres no texto do autógrafo que escreveu no meu exemplar de Meu querido canibal) vai na contramão da história ao pôr Cunhambebe, considerado um selvagem repelente pelos historiadores, não só como herói do romance mas também como o primeiro herói nacional. De certa forma, há aí uma idealização do herói indígena, uma vez que os índios não deixaram registros escritos de seus feitos. O autor usou ao mesmo tempo sua indignação e sua imaginação para fazer a pintura de Cunhambebe.
A visão que temos do indígena vem toda dos colonizadores e passa pelo crivo nada condescendente dos historiadores. No entanto, essa idealização do índio é muito diferente daquela concebida por José de Alencar em seu romance Iracema, em prol de um projeto literário que buscava atender à nacionalidade da literatura brasileira. Torres queria apenas fazer justiça a um personagem real marginalizado pela História.
Mencionei o romance Iracema porque tanto Antônio Tores quanto eu tivemos nosso primeiro deslumbramento diante de um texto de ficção quando nossas professoras nos apresentaram essa memorável obra de Alencar. Torres diz numa entrevista à revista Volare Club, de Caxias do Sul:
“Fui despertado para a literatura por duas professoras. A primeira, dona Serafina – que ainda vive já quase centenária – fazia de sua escola um espaço para recitais de poesia (de Castro Alves, Gonçalves Dias, Olavo Bilac) e hinos patrióticos. A segunda chamava-se Teresa, e com ela tive meu batismo na ficção, ao ler o começo de Iracema, de José de Alencar, em voz alta: ‘Verdes mares bravios da minha terra natal, onde canta a jandaia na fronde da carnaúba’. Talvez tenha sido esse o dia em que o ficcionista aqui nasceu. Vivendo num sertão onde nem rio havia, danei a imaginar como seria o mar e a sonhar com ele. Não há como fugir disso: são as leituras que estimulam as vocações literárias.”
Comigo o fato aconteceu um pouco diferente. Quando estudava a 6ª série do antigo ginásio, a professora Rita Araújo leu para a classe, de maneira muito empolgante, o início do segundo capítulo de Iracema, que é o começo da história da virgem dos lábios de mel, uma vez que o primeiro capítulo é o epílogo antecipado. Não sei quanto a meus colegas, mas eu fiquei maravilhado com aquela linguagem indianista de Alencar. Mesmo sendo um leitor incipiente, consegui captar de primeira a poesia em prosa que há nesse romance. Entretanto, jamais seria um escritor. Não tinha vocação para isso. Eu soube ali que minha vocação era de leitor e que, como futuro professor, eu também teria muitas chances de encantar meus alunos com a magia da palavra literária.
Não nos esqueçamos que há um fundo histórico e lendário em Iracema e que seu autor fez pesquisa histórica para escrevê-lo. Não seria diferente com o autor de Meu querido canibal. Esse foi mais longe ainda. Como ele mesmo relata numa entrevista dada à revista Navegações:
“Comecei as pesquisas para o Meu querido canibal em 1996, correndo sebos, lendo os relatos dos escritores viajantes do século XVI, conversando com quem já havia trabalhado com o assunto, como o cineasta Nelson Pereira dos Santos, que fez ‘Como era gostoso o meu francês’, e veio a escrever a orelha do livro, encantadora, por sinal. Dei uma busca no Museu do Índio, no Rio, e viajei muito a Angra dos Reis, subi a serra da Bocaina até a uma aldeia dos índios guaranis lá no topo da montanha, de difícil acesso.”
Paralelamente às minhas leituras da obra torresiana, eu me comunicava com o escritor por email e ia registrando, ainda que de forma simplória, o quanto minha paixão por sua obra crescia a cada novo livro que ele, generosamente, me enviava quase semanalmente. Torres, por sua vez, agradecia-me a boa vontade de lê-lo, como se eu precisasse fazer algum esforço para isso e não o estivesse lendo por puro deleite.
O primeiro livro que me foi enviado por Antônio Torres, pelo correio, foi O nobre sequestrador ou “A história de René Duguay-Trouin, o corsário do rei Luís XIV que em 1711 fez o primeiro sequestro do Rio de Janeiro – o da própria cidade”, como diz uma espécie de subtítulo à maneira barroca. O protagonista, já declarado pelo subtítulo, se assim posso dizer, aparece na terceira parte de Meu querido canibal. Talvez por isso o Velho Corsário das Letras (epíteto usado por Torres no texto do autógrafo que escreveu no meu exemplar de O nobre sequestrador) achou que eu devia lê-lo logo, já que minha leitura anterior tinha sido o romance cujo protagonista é Cunhambebe, o grande líder da Confederação dos Tamoios.
Se eu já tinha ficado encantado com a leitura de Meu querido canibal, uma incursão de Torres pelo romance histórico, O nobre sequestrador, outro romance de índole histórica, me impressionou de cara, porque não sabia que os franceses, sob o comando de Duguay-Trouin, haviam tomado o Rio de Janeiro do jeito que ele o fez. E mais do que a novidade histórica para mim, encantei-me com a técnica narrativa utilizada pelo autor em ambos os romances e pela solução narrativa que se valeu da utilização de gêneros híbridos. Mas isso é assunto para outro texto.
Num dos e-mails que enviei para Antônio Torres, eu queria saber se ele nunca pensou em escrever suas memórias. Afinal, um homem como ele que teve e ainda tem uma vida voltada para a literatura, conviveu e ainda convive com muitos homens das letras e das artes em geral, tem muitas histórias interessantes para nos contar. Torres me respondeu que provavelmente não tem coragem suficiente para escrever um livro de memórias e que precisava voltar a escrever um romance iniciado há muito tempo, mas interrompido. Eu lamentei sua indisposição para escrever esse tipo de gênero literário. E concluí: “Ainda bem que escreveu as memórias de René Duguay-Trouin, em O nobre sequestrador.” Realmente foi isso o que ele fez.
Foto: Site de Antônio Torres
Discurso de posse na Academia Brasileira de Letras
Logo na primeira parte desse romance, intitulada “A estátua falante”, num discurso que denota fina metalinguagem e, ao mesmo tempo, uma ousada desmistificação da narrativa, pois o protagonista, em forma de estátua, conversa com o autor do romance, lemos a seguinte passagem: “...mas eia, você veio até aqui para sequestrar as minhas memórias, porque sou também um malfadado personagem da história de seu país...” (5ª ed., p. 12)
De fato, se em Meu querido canibal podemos encarar a narrativa como uma espécie de biografia não-autorizada de Cunhambebe, em O nobre sequestrador a sensação é de que estamos lendo as memórias póstumas de René Duguay-Trouin. Só as etapas da pesquisa empreendida por Torres para a consecução desse romance merecem nossos aplausos. Havia material demais aqui e na França. Vejamos o que ele nos diz sobre esse laboratório histórico, em entrevista à revista Navegações:
“Os franceses me atulharam de livros, referências, viagens, a Saint-Malo, duas vezes, e La Rochelle, que têm tudo a ver com a história. Aqui, tive dois orientadores acadêmicos, ambos do departamento de História da Universidade Federal Fluminense: a professora Maria Fernanda Bicalho, que fez a sua tese de doutorado sobre o tempo das invasões francesas ao Rio de Janeiro, e que foi publicada pela Civilização Brasileira (A cidade e o império); e o também doutor Paulo Knaus, com sua biblioteca bem fornida com tudo o que é preciso saber sobre o tempo de Luis XIV, a Guerra de Sucessão da Espanha, as guerras de corso etc. Na França, contei com a orientação do professor Laurent Vidal, diretor do Espaço do Novo Mundo da Universidade de La Rochelle. O tempo envolvido nisso é incalculável.”
Outra excelente surpresa eu tive quando recebi os romances O cachorro e o lobo e Pelo fundo da agulha. De cara, ao ler os autógrafos dados por Torres nesses dois romances, fiquei sabendo que o primeiro é o Essa terra revisitado 20 anos depois e que o segundo fecha essa trilogia, 30 anos depois. Como até agora nada falei sobre o enredo de Essa Terra, aproveito o ensejo para fazê-lo juntamente com os dois romances que completam a trilogia.
Em Essa terra, Nelo, primogênito de uma família de 12 filhos, morador do Junco, sertão da Bahia, parte para São Paulo para tentar a sorte, volta para o Junco 20 anos mais tarde, não suporta a cobrança do lugar por não ter vencido na vida e se suicida. Está gerado todo o conflito da história. No final, Totonhim, seu irmão caçula, narrador da história, segue os passos do irmão suicida.
Em O cachorro e o lobo, Totonhim , como o irmão Nelo, mora em São Paulo, onde fica 20 anos sem dar notícias, período em que convive com um fantasma na cabeça, achando que se retornar ao Junco vai repetir o gesto do irmão. Um dia recebe uma carta da mana Noêmia, dizendo que o pai vai completar 80 anos. Ele então decide retornar e, na convivência com o lugar, vai revendo sua própria história e recuperando a memória local. E tudo isso se passa em um único dia.
Já em Pelo fundo da agulha, Totonhim está separado da esposa e dos filhos. Na cama, bastante solitário, vive as amarguras da primeira noite de sua aposentadoria. E isso se dá em São Paulo, cidade tão famosa por sua noite. “Eis o conflito básico do personagem cujas marcas (sertanejas) de origem afloram em sua memória. E toda a história passa a girar em torno de uma imagem que surge em O cachorro e o lobo: a da mãe de Totonhim, já velhinha, enfiando uma linha pelo fundo de uma agulha – sem óculos. E tudo o que ele deseja naquele momento é ir ao seu encontro, para saber como ela via o mundo através daquele ínfimo buraco.” (Entrevista de Antônio Torres ao blog Clisertão, 05/05/2012)
Numa entrevista dada à Patrícia Moreira, do jornal A tarde, caderno 2, Salvador, 01/05/1997, Antônio Torres faz a seguinte declaração sobre O cachorro e o lobo: “Foi o livro mais prazeroso da minha carreira. É terno, leve, uma espécie de retorno à terra que me pariu. O que espero é que o leitor sinta esse mesmo prazer que tive ao escrever o livro, no fundo uma homenagem aos velhos contadores de história que a pós-modernidade acabou.”
Nas minhas comunicações com Torres por email ou mesmo pelo Facebook eu jamais mencionei o que vou dizer agora. De toda a sua obra romanesca, O cachorro e o lobo foi o livro que mais me deleitou. Em nenhum outro romance engendrado por sua pena, tem-se a presença tão intensa de um narrador conteur como nesse. Leia-se, por exemplo, a primeira frase do impagável capítulo "Relendo as primeiras histórias" e se terá a temperatura dessa narrativa: “Num tempo em que esse mundo velho era povoado por contadores de histórias, um galo cantando fora de hora já era o começo de um romance – de amor.” Porém, é verdade que em Meu querido canibal e O nobre sequestrador o romancista volta ao estilo dos velhos contadores de histórias.
Mesmo que a crítica tenha eleito Essa terra como obra-prima de Antônio Torres, O cachorro e o lobo não é em nada inferior a esse clássico da literatura contemporânea. Se no primeiro livro da trilogia o tom que prevalece é o da angústia das personagens torresianas em suas tentativas de fuga de uma terra onde Judas perdeu as botas; no segundo livro, o autor deixou prevalecer a pena da galhofa em vez da tinta da melancolia. E era natural que o tom melancólico voltasse em Pelo fundo da agulha. Para mim, se é para apontar a obra-prima de Torres, toda a trilogia assim se configura.
Foto: Site do autor
O Antônio Torres das feiras literárias
Contudo, chegar cedo demais àquele livro que a crítica diz ser a obra-prima do autor, ao invés de ajudá-lo a seguir adiante, poderá atrapalhá-lo? Quem disse que um escritor só pode ter uma obra-prima? O próprio Torres sofreu muito na pele e na pena, depois da escrita de Essa terra, seu terceiro romance. Em 2005, numa entrevista ao jornalista Ricardo Mota, no extinto programa Pajuçara Especial, da Tevê Pajuçara, ele conta que durante muito tempo esse livro foi uma pedra em seu sapato. Embora seu romance seguinte, Carta ao bispo, tenha sido um grande sucesso de crítica, alguns de seus amigos diziam que não iriam lê-lo, temendo que não chegasse à altura da qualidade literária de Essa terra.
Ainda bem que Antônio Torres saiu vencedor dessas dúvidas que podem povoar a mente de qualquer escritor, depois que ele escreve “sua grande obra”. Mas o que o leitor precisa ter em mente é que, para o escritor, “a grande obra” ainda estar por vir. Na remessa seguinte de livros, Torres me deu uma prova cabal de que poderia ir muito além do que já fora com a escrita da trilogia Essa terra e dos romances de cunho histórico. Enviou-me Um táxi para Viena d’Áustria. Para mim, outro clássico do romance contemporâneo e, por que não dizer, outra obra-prima.
Antes mesmo de descobrir as qualidades desse grande romance, deleitei-me com as leituras de O centro de nossas desatenções, Do Palácio do Catete à venda de Josias Cardoso e Meninos, eu conto. O primeiro é uma espécie de roteiro histórico-cultural do centro do Rio de Janeiro. Torres diz em entrevista ao Correio das artes – julho de 2015, que foi correndo atrás de material para esse livro que tropeçou nos personagens Cunhambebe e René Duguay-Trouin.
Sem dúvida, O centro de nossas desatenções é um livro belo e apaixonante. Que declaração de amor ao Rio! Mais uma. E mais uma vez, um título muito bem escolhido por quem tem verdadeiro fascínio por títulos e os trabalha com engenho e arte.
Como Torres, sou apaixonado pela Cidade Maravilhosa. Adoro bater perna em seu centro. Na verdade, hospedo-me em Copacabana, mas meu roteiro é sempre o centro do Rio, todos os dias que passo na cidade. Lendo esse livro, vi-me caminhando por cada lugar descrito e narrado pelo autor. Meu amigo Paulo Lima, o criador e editor da Revista eletrônica Balaio de Notícias, disse-me, num bate-papo de Facebook, que tem esse livro e que o acha ótimo.
No livreto Do Palácio do Catete à venda de Josias Cardoso, Torres evoca a memória do menino Antônio Torres quando soube, indo para a escola, do suicídio do então presidente da República, Getúlio Vargas. Essa leitura me fez lembrar de minhas visitas a esse palácio. Josué Montello o transformou no Museu da República e foi seu primeiro diretor, a pedido de Juscelino Kubitschek. Inclusive o mestre de Cais da sagração, em tom jocoso, disse a Juscelino que só assim o sucederia no Catete.
Já em Meninos, eu conto, título que mantém uma evidente referência intertextual com o famoso verso “Meninos, eu vi”, do poema I-Juca Pirama, de Gonçalves Dias, Torres reuniu pela primeira vez em livro três contos dos anos 70 do século XX. Conforme alguns de seus depoimentos em entrevistas, esses contos são o embrião de Essa terra e foi exatamente o conto “Segundo Nego de Roseno” o fiat genésico de seu mais famoso romance.
A despeito de ser encarado como literatura infanto-juvenil, o livro é muito bem recomendado para todas as idades. O conto “Por um pé de feijão”, incluído na antologia Os cem melhores contos brasileiros do século, é o segundo de Meninos, eu conto. Outro dado curioso sobre esse livro é sua vendagem. Meninos, eu conto já chegou à 15ª edição e é, atualmente, o livro mais vendido de Antônio Torres.
Voltemos a Um táxi para Viena d’Áustria. Seu entrecho “é a viagem imaginária de um homem que depois de cometer um crime entra num táxi e como está muito estressado adormece. E o rádio do táxi está tocando a Missa em Dó Maior do Mozart e é essa música que faz o passageiro delirar. Ele delira ao som dessa música. E a Missa fica um contraponto para a barulheira em volta, do Rio de Janeiro, todo aquele caos urbano.” (Entrevista de Antônio Torres para Marzia Figueira, para A Gazeta, Caderno Dois, Vitória (ES), domingo, 28/06/1992)
Eis um caso que deveria ter escapado do tão conhecido aforismo rodriguesano: “Toda unanimidade é burra”. Deveria, mas não escapou. Um crítico de O Estadão despejou críticas negativas sobre essa obra. E acabou sendo a exceção, pois o livro foi louvado em todo o Brasil e fora dele também. A famosa crítica Alice Raillard, conselheira editorial da Gallimard, tradutora de Jorge Amado, João Ubaldo, disse a Antônio Torres que o romance é brasileiro, sim, mas contemporaneamente universal. E ela tem razão.
Um táxi para Viena d’Áustria é um desses livros que precisamos ler e reler antes de morrer. Entrei nesse táxi com Watson Rosavelti Campos, o protagonista, e só saí dele quando a história acabou. Ri bastante com esse romance em que a tragédia nossa de cada dia se esconde sob a carapaça da comicidade. Acrescente-se que a inserção de outros gêneros como o conto e o diário tornam essa narrativa ainda mais genial.
No entanto, não vá pensar o leitor incauto que essa maestria do autor advém em maior parcela de sua inspiração prodigiosa. Na lavra literária de Torres, aquela máxima, 10% inspiração e 90% transpiração, é assaz legítima. A propósito, ele reescreveu 33 vezes um capítulo de Um táxi para Viena d’Áustria. Sua obsessão pela palavra exata, pela frase enxuta e poética é tão grande que temos aí uma das razões mais plausíveis por que seus livros demoram tanto a vir a lume.
Os dois primeiros romances de Antônio Torres, Um cão uivando para lua e Os homens dos pés redondos, chegaram a mim na remessa seguinte. Comecei minha leitura pelo primeiro e, para mim, era muito visível como Torres estreou com mão firme na ficção. Na verdade, seu livro de estreia seria Os homens dos pés redondos, se ele não tivesse empacado, depois de escolhido o título e a primeira frase, quando morou em Portugal na casa do poeta e amigo Alexandre O’Neil, nos anos de 1960.
Sucesso de público e de crítica, o primeiro romance de Torres suscitou reações como a de Jorge Amado, que o chamou de “um senhor ficcionista” e de Hélio Pólvora, que considerou o livro “a estreia mais significativa” daquele ano (1972). Mas a história da noite de autógrafos em São Paulo de Um cão uivando para a lua é digna de registro e Torres a conta em seu livro Sobre pessoas, num texto intitulado “Roteiro sentimental de um leitor de Jorge Amado” e também no prefácio a Um cão uivando para a lua.
Resumindo-a aqui, Jorge Amado lançaria seu Tereza Batista cansada de guerra na mesma noite e na mesma hora da estreia de Torres, porém noutra livraria. Antes disso, o mestre de Jubiabá passou na livraria onde Antônio Torres lançaria seu primeiro romance e comprou um exemplar, deixando-o com o vendedor para que este pegasse o autógrafo do estreante e o enviasse naquela mesma noite. Jorge, como quase todo mundo, ainda não conhecia o mais novo romancista baiano.
Nas minhas conversas com Torres, deixei bem claro o quanto fiquei impressionado com seu romance de estreia. A loucura é tratada ali com os requintes de um verdadeiro escritor-psicólogo. Os recursos narrativos que definirão o estilo Antônio Torres de escrever já estão ali semeados e frutificarão em toda a sua obra romanesca. Um cão uivando para lua é uma livro que anuncia o grande esteta da palavra que é esse baiano do Junco.
Já minha leitura de Os homens dos pés redondos não foi muito profícua. Este é, provavelmente, o romance mais denso da pena de Antônio Torres. Embora também tenha-se tornado um best-seller como o anterior e o posterior, Essa terra, a segunda incursão de Torres pela ficção não me deixou à vontade como fiquei quando tive em mãos seus outros livros. Isso significa que preciso relê-lo antes mesmo de reler todos os seus outros rebentos. Até o momento, reli Essa terra.
Foto: Paulo Carvalho/Diário de Pernambuco
Antônio Torres - ao fundo Juazeiro da Bahia, cenário de Carta ao bispo
O último pacote que me foi enviado por Antônio Torres trazia os romances Carta ao bispo, Adeus, velho e Balada da infância perdida. Antes desse pacote, recebi outro contendo seu livro Sobre pessoas – crônicas, perfis e memórias. Torres foi tão generoso comigo que só tenho os livros Sobre pessoas e Balada da infância perdida graças às suas buquinações por livrarias e sebos do Rio de Janeiro, uma vez que essas obras estão esgotados nas editoras.
Eu havia dito a Torres que queria ler suas confissões e memórias, além das que são encontradas em seus romances, já que esse gênero acaba sendo também a urupema do escritor. E eis que com a obra Sobre pessoas, ele me ofereceu um prato cheio de belas crônicas, perfis e memórias. Segundo um de seus depoimentos em entrevista, esse livro veio como um refrigério entre um romance e outro, tal é a natureza leve de seus textos. No que tange ao título, depois de observar que coincidentemente escrevera praticamente todas as crônicas sobre pessoas e ao falar isso ao editor, esse concluiu que o livro deveria se chamar Sobre pessoas. Com o intuito de alargar a proposta inicial, Torres escreveu alguns perfis e memórias. O resultado final foi o melhor possível.
Agora só me restavam as leituras dos três romances que vieram a lume na sequência de Essa terra. Vejamos o que nos diz Antônio Torres sobre esses três livros, num depoimento à UFBA, em 13/06/1997, intitulado “Com a palavra o escritor”: “Carta ao Bispo e Adeus, Velho seguem a trilha do ir-e-vir, só que com personagens procurando um lugar dentro do mapa da Bahia mesmo. Em Adeus, Velho o deslocamento é do interior para a capital, depois do polo petroquímico, da industrialização do estado, com novas oportunidades de trabalho, que reduzem os fluxos migratórios para o Sul.
Balada da Infância Perdida é essa Bahia nas paredes de um quarto em Copacabana. Inspirado num poema de Garcia Lorca - Balada da pracinha -, é a história de um desfile de crianças vestidas de azul e branco levando os anjinhos para o céu - ou seja, os caixõezinhos azuis. Isso às 5 horas da manhã, com um narrador de porre, com um olho na parede e outro no despertador. Nessa parede desfilam 25 anos da história do Brasil contemporâneo. É um delírio.”
Torres me disse que tem um certo apreço por Carta ao bispo. E que é possível que haja nesse romance a sua melhor primeira frase. Em 2010, em entrevista à revista Navegação, ele declara que vê no Gil, protagonista de Carta ao bispo, o seu personagem-síntese cuja densidade o fez transpirar muito.
Para mim, esses três romances da obra torresiana ratificam o quanto o romancista soube se desvencilhar das amarras da fama que angariou Essa terra. Não obstante aplauda os três, Carta ao bispo e Adeus, velho estão no rol dos meus favoritos de Antônio Torres. Li os dois avidamente, apaixonei-me por esse personagem visionário e quixotesco que é Gil e acredito que nenhum romance de Torres termina da forma tão lírica quanto Adeus, velho.
Ao fim e ao cabo, tenho a certeza de que a obra torresiana atende plenamente à máxima de Tolstoi evocada por Josué Montello e presente na epígrafe desse texto. Destarte, Antônio Torres universaliza-se no Junco. Mas como ele não é um sambista de uma nota só, os horizontes de sua ficção se estendem também ao romance urbano e histórico. E em todos esses gêneros, seus personagens vivem os conflitos do homem universal. Além disso, todos os seus romances dialogam com as circunstâncias sociais e políticas do período a que se reportam, sem proselitismo nenhum. Assim, o romancista não perde o bonde da História e nos oferece a obra literária perdurável.
Foto: Site de Antônio Torres
Antônio Torres, cidadão do mundo
Por fim, mas não por último
Se o estilo é ou não é o homem, deixemos para Buffon resolver. Mas para mim, não há dúvida de que o estilo de um escritor pode ser seu passaporte para a eternidade ou para o esquecimento. Antônio Torres já garantiu sua imortalidade. Não digo isso porque ele é membro da Academia Brasileira de Letras, mas porque é criador de um estilo que não envelhecerá nem morrerá jamais. Para aqueles que nunca o leram, e eu fazia parte desse infausto grupo de leitores há pouco tempo, deixo aqui uns aperitivos de sua obra romanesca, na esperança de despertar novos interessados em sua pena literária. Como são trechos desvinculados de seu contexto, é natural que percam um pouco de sua força aforística. Entretanto, não deixam de ilustrar a razão pela qual Torres já garantiu seu lugar entre os melhores romancistas contemporâneos.
Um cão uivando para a lua
Rimos muito. Sempre desconfiei de que se você começa uma relação com uma boa gargalhada, as coisas ficam mais fáceis.
Sempre relutei contra a cama e, mesmo dormindo, me mantenho com o espírito acordado. Preciso estar vigilante.
Minha memória é uma cova funda, onde enterrei todos os meus mortos.
Você já entrou alguma vez numa delegacia? É mil vezes pior do que uma história de Franz Kafka.
Os homens dos pés redondos
Um homem não pode deixar outro homem penetrar em seus segredos mais íntimos.
Essas francesas são tão engraçadas. Devem estar adorando a guerra. Nunca vi povo tão romântico na minha vida. Acho que já nasceram com O vermelho e o negro entre as mãos. Bem, talvez Stendhal não tenha nada com isso, nem Robespierre, nem a Revolução Francesa. Não sei.
[...] enquanto Miles Davis agonizava no trompete:
- Esse aí me diz mais sobre o desespero de viver do que todos os livros que eu já li.
Essa terra
A vida alheia é uma brisa nas bocas encharcadas.
Benditas são as mulheres. Elas sabem chorar.
Sertanejo velho, não era um forte. Também não era um fraco.
Porque o homem é uma besta que pensa que pensa e por isso pode fazer tudo fiando-se apenas na sua própria vontade.
E este sol ia secando tudo, secando o coração dos homens, secando suas carnes até aos ossos, secando-os até sumirem – e lá se vai o tempo, manso e selvagem, monótono como uma praça velha que faz força para não cair abaixo, como se isso não fosse inevitável, como se depois de um dia não viesse outro com seus dentes afiados, para abocanhar um pedaço das nossas vidas, deixando em cada mordida os germes da nossa morte. E esta é a pior das secas. A pior das viagens.
O mundo é um carro de boi, que vai rodando para a frente, gemendo em cima de um eixo.
Quando não se conhece a direção, roda-se em todas as direções.
Carta ao bispo
O destino pode ter muitas cores, mas a travessia é a ausência de todas as cores. O mundo escurece.
Os pecados mortais são só três: nascer, crescer e viver.
Tudo isso é transitório, Gil. As forças que hoje lutam contra o bem comum, e contra todos aqueles que desejam o bem comum, não são eternas.
O medo da morte é natural para todo ser humano. Mas esse medo não pode ser uma intimidação para se deixar de viver.
Quando alguém está só, Marília, um livro parece ter alma, corpo, tudo. Mas é duro não ter ao lado com quem se possa comentar um pensamento lido, um achado, as palavras que mais nos impressionaram. É a mesma coisa que não se ter com quem repartir a própria vida.
Adeus, velho
Rompem-se os tampos, fica a dor.
Mas o feito está feito, sigo meu eito.
Uma mulher é como uma cidade: uma festa selvagem.
Uma mulher é como a terra: também serve para enterrar um homem.
Uma mulher é como o sol. Ilumina e queima.
Era forçoso reconhecer que o milagre não era a capacidade de reprodução da espécie. Era esse dom humano para a sobrevivência.
Jogue uma mulher dentro de um supermercado que ela encontrará o reino dos céus.
Balada da infância perdida
E não era necessário ler Confúcio ou qualquer outro chinês para saber que a alegria vinha da barriga.
Abrir a porta e o coração para tudo quanto é parente é um perigo.
[...]a compensação para o esforço, é o reconhecimento[...]
...já sabia qual era a diferença entre a metafísica e a dialética, pois já tinha descoberto que não é verdade que não há nada de novo sob o sol. A dialética comprovava que o sol que nasceu hoje não é o mesmo de ontem, tanto quanto a camisa que você veste agora não será a mesma se você voltar a vesti-la amanhã. No mínimo, estará mais suja.
O tique-taque não consegue devolver o já vivido.
Um táxi para Viena d’Áustria
[...] – ora direis, carioca não adora amenidades? Faz ajuntamento até pra ficar olhando conserto de buraco.
Quero tropeçar num bêbado genial, como os de antigamente – mas neste momento todos os bares estão repletos de homens vazios.
E o poeta que disse isso não mora mais aqui.
Ele virou nome de rua e me abandonou numa garganta engarrafada.
Por que se embriagara tanto de jazz? Porque era o estilo perfeito da meia-noite, para o desempregado (era o seu caso) que não precisava acordar cedo e há muito perdera o sono. O som a um só tempo selvagem, como o uísque, e refinado, como o vinho.
Porque toda cidade é um caixote que produz música. Às vezes terna, lírica, sentimental. Às vezes, como uma vertigem. Alucinante. Como o jazz.
A vida é pra quem está bem-disposto. Em alta no mercado da saúde.
Andar sem pressa enquanto todos correm – eis um pecado mortal.
E nos dissemos todas aquelas coisas que dizem todos os amigos. Vasto é o repertório de lugares-comuns, para os encontros incomuns.
O cachorro e o lobo
Como se algum filósofo lhe tivesse soprado ao ouvido que não é a fé que remove montanhas, mas o complexo de culpa.
Um homem que sabe cozinhar é senhor do seu destino.
Sejamos honestos: certas verdades são muito chatas.
Li em algum lugar, com certeza numa crônica de jornal sobre os dramas brasileiros que acabam em farsa, que neste país são sempre os personagens secundários os que pagam o pato.
Desço a praça bem devagar, vendo um que passa hoje, outro depois de amanhã. A passos de anteontem. Dizem que em cidadezinhas como esta só existem três assuntos de interesse público: quem morreu, quem faliu e quem está dando.
Meu querido canibal
Deve datar desse tempo a fama de que os franceses não foram feitos para a guerra, mas para a cama e a mesa.
Até eles chegarem, os índios não sabiam que eram índios. Ou antes: não eram índios nem nada. Eram só um outro povo.
Todo português diz que é francês ao saber que vai morrer.
Onde havia índio, tinha fumaça. E vinha fogo.
Ao vencedor, a estátua.
O nobre sequestrador
Canalhas não têm pátria. Tem interesses imediatos.
E eu me dizendo: só os fracos se deixam abater pelos reveses.
Não. Nunca fiz o gênero best-seller: impudicícias baratas, pau puro, grossura explícita.
Herói é aquele que a sorte leva a navegar sobre todas as ondas adversas, no roldão de todos os riscos, sem tempo de temer a morte.
E o ostracismo, que dói mais do que um ferimento à bala. A solidão, que vai matando lentamente.
Aos velhos só restará a literatura. Ou ficar vendo televisão até pegar no sono.
Pelo fundo da agulha
Aonde quer que você for, vai encontrar alguém sonhando com um lugar de sonhos.
Cuide-se. E torne o seu ócio produtivo, para não chafurdar no tédio, na melancolia.
Comece por fazer uma faxina caprichada naqueles livros ali na sua estante, que nunca teve tempo de ler. Os velhos Proust, Dostoievski, Tolstoi, Flaubert, Eça de Queiroz, Machado de Assis, Guimarães Rosa, William Faulkner e demais sumidades entregues às traças poderão servi-lhe de companhia, e menos trabalhosa do que a de um cão.
É fácil se odiar quem está perto e se amar quem está longe.
A graça de todo passeio está nas surpresas que a gente vai descobrindo pelo caminho.
Não se mate pelo que acha que deixou de fazer por sua mãe, seu pai, seus irmãos, mulher, filhos, o país, tudo. E, principalmente, por você mesmo. Ou pelo que deixaram de lhe fazer. Nem por isso o mundo acabou. Abrace-se sem rancor. Depois, durma. E quando despertar, cante. Por ainda estar vivo.
Por último
No início deste texto, discorri sobre como Machado de Assis foi o caminho para eu chegar aos romancistas Francisco Dantas, Josué Montello e Antônio Torres. Logo, logo eu descobri algumas peculiaridades comuns aos três. Uma delas é a reverência à obra de Machado, outra à obra de Faulkner e outra ainda à música clássica e ao jazz. Há quem considere Montello o herdeiro da pena de Machado. Para mim, por caminhos distintos, Dantas e Torres são os herdeiros da pena de Faulkner.
Antônio Torres conheceu Josué Montello e Francisco Dantas. Com Dantas, Torres participou de um encontro literário de Cabo Frio, mas não lembra o ano em que ele se deu.
Sobre Montello, revelou-me num email: “Infelizmente, não convivi muito com ele, que me tratou muito bem, nas poucas vezes em que nos encontramos. Três delas foram na França. Primeiro, tive a honra de fazer parte de uma mesa com ele e Jorge Amado, no Centro Pompidou. Depois, foi num almoço para a delegação brasileira ao Salão do Livro de Paris, na casa em que Josué estava morando, ao seu tempo de embaixador na Unesco (1987). A terceira vez foi em outro almoço, este oferecido pelo editor Sérgio Lacerda, da Nova Fronteira, num restaurante no Bois de Bologne - João Ubaldo e Lygia Fagundes Telles também estavam lá.” E noutro email: “Recordo um encontro com Josué na Feira do Livro de Frankfurt de 1994, quando ele me mostrou um folheto sobre a Casa de Cultura. Trocamos dois dedos de prosa, alegremente. Depois não o vi mais por lá.
Reginaldo de Jesus é professor de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira do IFS - Campus São Cristóvão. Contato: [email protected]