Edição 208 - Brasília, 24 de dezembro de 2016 a 22 de janeiro de 2017
Crônica
Por Cesar Carvalho
Desde que rascunhei meus primeiros poemas, há algumas décadas, sempre me preocupei com uma questão que Bashô, o grande poeta e inventor do haicai, colocava: escrever poesia é um ato solitário, mas a energia e a riqueza poética vem da convivência com seus pares.
Você pode perguntar, bem, e daí? Esta é uma questão relevante? Talvez sim. Talvez não. Todavia, para alguém que viveu, como este que vos escreve, boa parte da vida morando em cidades pequenas e médias com pouco ou nenhum contato com seus pares e que se pretende escritor e poeta, esta é uma questão de suma importância. Escrever não é apenas colocar as palavras no papel, registrando este ou aquele fato, ou sentimento. Escrever é um ofício e, como todo ofício, depende da prática cotidiana, do conhecimento das técnicas desenvolvidas ao longo dos anos e do aprimoramento de suas habilidades no diálogo com o outro, aquele que faz o mesmo que você. Isso vale para qualquer ofício, como bem lembrou certa vez o cineasta Denoy de Oliveira:
− Como a gente pode fazer um cinema decente se demoramos dez, quinze anos para realizar um? E isso, quando conseguimos!
E Denoy sabia do que estava falando. Apesar de produzir ótimos filmes, inclusive em termos de bilheteria, no final dos anos 70s, início dos 80s, o próximo lançamento demorava anos. Como praticar um ofício só de vez em quando?
Quando voltei a São Paulo, tive um choque. Descobri que os poetas daqui movimentam mais de 60 pontos dedicados a saraus. É sarau em bares, restaurantes, espaços públicos e em bairros periféricos. Aliás, estes últimos acontecem com frequência em grande quantidade e intensidade. Mas, é um número tão grande que ninguém dá conta de acompanhar. E isso sem contar outros tipos de intervenções como, por exemplo, aproveitar o semáforo fechado na Av. Paulista e declamar poesia para motoristas e passageiros.
Além dos saraus, existe outro tipo de divulgação da poesia, que é a exposição em museus e espaços culturais. Como exemplo, cito a de Augusto de Campos, onde se fez uma retrospectiva de sua obra, e a de Arnaldo Antunes, ano passado, na agência central dos Correios e algumas outras espalhadas pela cidade.
Rever foi uma exposição muito interessante e acho até que didática. Mostrou-nos o uso que o poeta Augusto de Campos faz da materialidade da palavra levando-a para os mais diferentes suportes, desde a página impressa ao universo digital com suas infinitas possibilidades. E o visitante pôde se fartar vendo um mesmo poema se mostrando em diferentes meios. Os críticos podem até achar que não, mas Rever é a comprovação plena do projeto concretista de, numa única construção verbal, a palavra se revelar múltipla e deslocar-se da experiência da leitura para a experiência sensorial plena.
A bem da verdade, as exposições de poesia foram várias neste ano, mas a maioria, salvo engano, dedicada a poetas concretas ou por eles influenciados, caso da exposição de Arnaldo Antunes, artista multimídia que tem sua produção poética marcada pela materialidade da palavra.
Mas se as exposições nos dão um panorama do que o poeta produziu ou está produzindo ao longo de sua existência, visitá-las continua sendo uma experiência solitária. Diferente são os saraus, claro. Experiência coletiva. Epidérmica. Neles imperam, em sua maioria, a oralidade da palavra. Poetas e interessados, via de regra, têm o microfone aberto para declamar poemas, sejam de autoria própria ou de alheios. À oralidade, se junta a música tocada por jovens talentosos que ora acompanham a leitura, ora se apresentam como espetáculo à parte. Aliado a tudo isso, as relações que se travam entre os presentes. E aí rola de tudo. Fazem-se novos amigos. Se conversa sobre o último poema escrito, sobre o estado de saúde do amigo, das experiências vividas, das literárias, etc.
Há pouco tempo, participando de um desses saraus, conversei com um jornalista que me informou ser recente, coisa de quatro, cinco anos, essa explosão de saraus em São Paulo. Lembrei-me de uma frase do poeta polonês Czeslaw Milosz – “nos casos de infortúnio que atinge toda uma comunidade, [...] o “cisma entre o poeta e a grande família humana” desaparece e a poesia torna-se um artigo de primeira necessidade, assim como o pão” – e pensei com os meus botões se esse fenômeno não teria a ver com nossos “casos de infortúnio” vividos nos últimos anos.
Até seria interessante investigar as causas que levaram à proliferação de eventos poéticos e literários e ao surgimento de autores, muitos autores, dedicados ao ofício poético. O pesquisador que se dedicar a este tema dificilmente conseguirá discordar do poeta polonês.
Um sarau bastante diferenciado dos demais é o que acontece no último domingo do mês. Poetas, músicos, artistas em geral se reúnem em frente ao prédio da Justiça Federal, transformado em cenário e se divertem. É o Sarau da Paulista.
Nasceu há poucos meses. Alguns poetas reuniram-se. Conversaram. Se deram conta de que entre as atrações domingueiras na Avenida Paulista faltava a poesia. Resolveram experimentar o sarau. Fizeram os dois primeiros com um megafone. A partir do terceiro usaram uma caixa de som comprada com a contribuição de alguns poetas. Depois de um semestre e seis apresentações, prometem a retomada do Sarau da Paulista para o ano que vem.
A dinâmica do grupo é diversificada e parece levar a sério o lema da Catequese Poética, movimento realizado durante os anos de chumbo, de que o lugar da poesia são todos os lugares. Durante o sarau, um dos poetas anima a festa. Provoca os transeuntes declamando poemas breves em seus ouvidos. Estende o corpo sob a figura humana desenhada na calçada. Escreve provocações poéticas com o giz branco. Depois, reúne os poetas e, abraçados, declamam trechos de poemas criando um fluxo sonoro de pura poesia. Um cut up sonoro. Dos retalhos de múltiplos poemas, um novo poema.
As pessoas passam. Param. Ficam algum tempo. Outros mais. O poema flui. As pessoas fluem.
Entre uma brincadeira aqui, outra ali, o Sarau da Paulista desperta a criança de poetas de várias gerações.
Aos poucos, se conhece um e outro. Descobre-se suas publicações. Livros com edições bem cuidadas. Algumas luxuosas. Em todos, ou pelo menos em grande parte deles, os poemas estampam o compromisso da poesia com a família humana (ideia que roubo descaradamente do poeta polonês, C. Milosz).
Abaixo, uma pequeníssima amostra de alguns deles.
O Primeiro Inferno 10
Cedo ou tarde
a emoção trará a morte.
E o indivíduo que incursionar
no paraíso de Lúcifer ou no
paraíso de outros deuses
viverá mais.
O homem
que não alimenta emoções
é filho de rã.
É merda que se acha
nas rodas dos carros
(Celso de Alencar)
Gelo eu
Não estamos sós?
O medo que se instala
Não é do indivíduo?
O frio que percorre a espinha
Não marca uma linha no infinito?
O rugido que explode na mente
Não encontra somente ecos desabitados?
(Claudinei Vieira, do livro Yuri, Caberê. SP: Patuá, 2015)
Haicai na Gandaia
Cheguei às cinco
Te esperei até às seis
Fui pintar o sete
(Claudio Laureatti)
República das Bananas
No Brasil é assim mesmo,
Banana dá em rama, jerimum dá em pé de jaca,
Uva dá em pé de manga,
Caju dá em terra arada,
O povo é todo dando
E em Brasília,
Tudo dá em qualquer lugar
(Daniel Perrone Ratto, do livro Marmotas, Amores e Dois Drinks Flamejantes. SP: Patuá, 2014)
o menino à frente dos carros
é hábil no manejo
dos malabares
duas estacas nas mãos
e outro que sobe, rodopia e desce
o mais impressionante
é o seu equilíbrio
na minha da miséria
(Fabiano Fernandes Garcez, do livro Em meio aos ruídos urbanos. SP: Patuá, 2016)
meus olhos te verão
fim
do inverno
o sol
se levanta
finda
a temporada
no inferno
um rouxinol
canta
(Paulo César de Carvalho, do livro Amor: Uma Palavra & Muitas Letras. SP: Edição autoral, 2014)
À força
Ou a forca?
Nossa opção
(entre cedilha e c)
Sem cartilha
Na mão!
(Rubens Jardim, do livro Cantares da Paixão. SP: Manuela Editorial, 2008)
Pois é, caro leitor, dizem que a internet nos aproxima. Não deixa de ser verdade. Muitos dos poetas que hoje conheço pessoalmente estavam em minhas listas nas redes sociais. Mas, nessas mídias onde os falsos eus se revelam, muitas verdades se escondem, entre elas, o potencial desse tipo de poesia que vive à margem da indústria cultural.
Ignorados pela grande mídia. Ignorados pelos críticos. Desculpe! Escrevi bobagem. Como os críticos podem ignorar algo se eles mesmos, críticos, são ignorados e estão ausentes dos veículos de comunicação? São figuras à margem. E perseverantes. Espalham, junto com outros artistas, seus ventos poéticos sobre os fantasmas que se escondem sob as vendas da Justiça.
Como bradam os poetas no Sarau da Paulista:
− A poesia não compra sapatos, mas ninguém vive sem ela.
Cesar Carvalho é poeta e escritor.