Edição 208 - Brasília, 24 de dezembro de 2016 a 22 de janeiro de 2017
Cinema
Por Carlos Alberto Mattos
Foto: Divulgação
Cena do filme Belos sonhos
Marco Bellocchio, talvez o mais devotado cultor de síndromes psicanalíticas no cinema, vai ao cerne da questão em Belos Sonhos: como a fascinação edipiana, apunhalada pela morte precoce da mãe, pode se estender como uma carência fundamental pelo resto da vida de um homem. Massimo não aceita a orfandade, contesta o velório da mãe e finge para si mesmo não saber que ela se atirou do apartamento. Mas essa consciência denegada acaba se manifestando no seu interesse pela lei da gravidade e na busca incessante de uma figura feminina que o proteja, seja no mundo real, seja em Belfagor, o seriado de horror que siderava as famílias italianas nas décadas de 1960 a 80. E ainda na crença de que foi deliberadamente abandonado pela mãe. Para um filho pequeno e apaixonado, que outra coisa representa o suicídio materno?
Bellocchio faz circularem diversas idades de Massimo num rodízio magistral, que vai revelando camadas da síndrome, pontuando ressonâncias no tempo e adensando o difícil processo do personagem entre assimilar a verdade de sua condição de órfão e os impulsos destrutivos com que ele pretende chegar mais cedo ao encontro da mãe falecida. Vez por outra, o filme parece dispersar o foco, mas logo em seguida retoma o tema com rigor e vigor cada vez maiores. A intensidade costumeira do diretor, o uso magistral dos closes e das áreas de sombra, a performance do elenco, o recurso ao poder evocativo das canções – em tudo transparece a maturidade do mestre.
Um dado curioso: a figura do psicanalista, tão presente numa certa fase da obra de Bellocchio, aqui desaparece para dar lugar a um padre, que dá as chaves para Massimo superar seu impasse. E um paralelo especialmente interessante: quando testemunha um fotógrafo manipular uma foto na guerra de Sarajevo, ou quando se vê festejado pela resposta adocicada que escreveu a uma carta de leitor do jornal onde trabalha, Massimo constata a frivolidade do sentimentalismo. Belos Sonhos, por mais que trate de emoções primais, não endossa resoluções piegas. Ao contrário, receita a dureza do enfrentamento.
Carlos Alberto Mattos é jornalista e crítico de cinema. Texto publicado originalmente no blog do autor.