Edição 207 - Brasília, 16 de outubro a 13 de novembro de 2016
Entrevista
Por Júlia Lima
José Edmilson Gomes Figueiredo é do tipo que recebe os visitantes de braços abertos. Logo nos sentimos à vontade em seu apartamento da Asa Sul, onde mora com sua atual companheira. Ele é alto, e seu cabelo é grisalho e ainda vasto. Aparenta estar muito bem para seus 60 anos. De fala articulada e forte, adora conversar, e uma prova disso é que, tão logo fomos apresentados, contou uma longa história em torno de um quadro grande pendurado na parede da sala de estar, pintado e presenteado por um artista amigo, seu conterrâneo, em que mostra uma cena de um pequeno ambiente habitacional na floresta.
José Edmilson nasceu na cidade de Xapuri, no Acre, mas está radicado há décadas em Brasília. É oficialmente divorciado, tem 3 filhos e 4 netos. No momento de minha visita, a neta mais nova estava por lá e fazia a alegria dos avós.
Na explicação sobre a origem do quadro, falou de sua amizade com outro conterrâneo ilustre, o seringueiro Chico Mendes. José Edmilson viveu sua infância em meio a uma sociedade que o aproximou de um assunto que lhe é muito caro: os indígenas.
Cineasta, ele tem várias profissões. “Sou hiperativo, vou da marcenaria à fotografia”. Frequentou o curso de Antropologia e Sociologia da UNB, mas é formado em Rede de Computadores pela UNEB.
Atualmente, trabalha em três documentários, sendo num deles como diretor. O tema: o Memorial dos Povos Indígenas, em Brasília, assunto desta entrevista, na qual faz uma crítica ácida e indignada sobre a forma como os índios e sua cultura têm sido tratados pela sociedade brasileira.
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Como surgiu a ideia do documentário?
Esse documentário do Memorial dos Povos Indígenas surgiu de uma identidade muito grande com a causa indígena, porque sou filho de uma avó que era uma manchineri, um povo indígena. Hoje existem trezentos e quatro povos indígenas identificados, fora os que ainda não foram contatados. A gente se diz um país que fala uma única língua, que é o português, mas, em verdade, somos uma sociedade invasora, porque esse espaço não nos pertencia. Tudo isso aí me motivou a compreender a necessidade de fazer um documentário em função de um espaço, o Memorial dos Povos Indígenas. Ele não surgiu do nada. Vivemos hoje na capital do país, uma esquina de todo o povo brasileiro, na mais brasileira de todas as cidades, porque aqui é um ponto de encontro de todo o mundo, de todos os brasis, e até dos países que mantêm relações diplomáticas com o Brasil. O princípio da ocupação desse espaço se dá dentro de uma ideologia de que isso aqui era um ermo, não existia absolutamente ninguém nessa área. Nesse ermo, um processo de ocupação chegou a se estabelecer. Entretanto, a gente ignora solenemente as populações originarias americanas. Dizem que aqui não tinha ninguém. No entanto, tem vários sítios arqueológicos que datam de oito, nove, doze mil anos atrás, tem pegadas humanas dentro dessa região. É que a compreensão da densidade demográfica, populacional, da questão ligada à economia está ligada à história dos dominadores, dos invasores, que tomaram conta de todas essas áreas. Eles vieram assassinando velhos, crianças, dizimando famílias, culturas. Então, a gente tem que ter uma percepção praticamente avessa. Brasília é uma cidade que tem indícios de várias culturas. Mas ela trabalha com o apagamento de memória, com a eliminação da cultura das populações originárias. Então, o Memorial dos Povos Indígenas vem, de uma certa forma, como uma resposta à necessidade de uma representação desses povos. E contar essa história me instiga muito em função de mostrar todo o desleixo que a historiografia oficial tem com relação a todos esses povos, que são de uma riqueza cultural estupenda, magnífica, repleta de significados. Até mesmo a questão indígena já é uma coisa preconceituosa, é como chamar o movimento negro ao invés de chamar afrodescendente. Temos uma construção cultural atípica, e somos carregados de preconceitos. Em função disso, me chamou a atenção a necessidade de fazer um documentário sobre um espaço que tem uma simbologia muito grande. Comecei a conversar com várias lideranças indígenas, inclusive com a liderança indígena que representa a gestão do Memorial, e comecei realmente a coletar informações e imagens relacionadas ao espaço.
Por que seu interesse pelo tema?
Vi a oportunidade de estabelecer uma relação com esse assunto. Uma forma de dizer que o cinema cumpre, de certa forma, um papel de ser porta-voz dos excluídos, dos que não têm oportunidade de participar dos meios de comunicação. E a ideia de fazer um documentário com esse assunto é poder traduzir isso, ser uma voz desses povos excluídos. Nosso modelo político não leva em consideração uma multiculturalidade do nosso povo, ele leva em consideração um modelo horizontal, como se nós fôssemos a sociedade mais evoluída e mais ridícula do mundo. Chega a ser ridículo quando não conseguimos ter uma percepção das mais diversas correntes culturais que este país tem. Entre essas correntes culturais estão as populações originarias, que continuam a serem massacradas a serem espremidas pela necessidade da exploração econômica. Esses povos só tiveram um representante até hoje, um deputado federal chamado Juruna, logo no processo de redemocratização. Eles não têm qualquer tipo de voz, estão ligados ao aparelhamento de Estado, a uma pseudopolítica de Estado, porque a gestão da Funai, que seria o órgão a gestar a parte de território, é algo deprimente, precisa ser revista urgentemente, a política de saúde e educacional também são outros desastres. E a gente vive aí com um conjunto de povos com alto índice de suicídio. Isso também não é divulgado porque conhecemos pouco, eles são um exemplo do apagamento de memória.
Está encontrando dificuldades para a realização do documentário?
Ah, um sem-número, um sem-número. O filme trabalha basicamente com uma linguagem em que dialogo com dez lideranças indígenas. Só que não preciso que essas lideranças estejam aqui transitando ou submersas na linha de miséria em que as grandes populações originais estão. Eu preciso de lideranças que possam dialogar com nossa sociedade e compreender como essa sociedade está organizada, uma sociedade cruel, assassina, opressora e que os impele a ficar nos pontos mais ermos, que são verdadeiras ilhas de proteção, verdadeiros santuários, reservas dessas populações originarias.
Quais resultados espera conseguir com esse trabalho?
O principal resultado que espero conseguir com relação a esse documentário é primeiro encontrar um mecanismo para que essas populações tenham a mínima condição de divulgar suas culturas, porque nossa sociedade tem uma parcela significativa de ignorantes a respeito de determinado assunto. Eu acredito que, ao produzir um documentário, estabelecerei um diálogo com essas pessoas, para poder mostrar que essas culturas existem, que esse espaço precisa ter um reconhecimento. Se você vai, por exemplo, ao Memorial JK, que fica em frente ao Memorial dos Povos Indígenas. O processo de ocupação do Memorial JK tem um investimento da sociedade local, da alta sociedade, da elite econômica de Brasília que injeta recursos naquele espaço, para que cada dia mais se transforme em ampla modernidade, com quantidade de recursos multimídia para contar a história do fundador de Brasília. Mas dos povos que foram massacrados, aquilo é um desleixo absurdo.
O senhor já visitou uma tribo? Como foi a experiência?
Sim. Recentemente fui até convidado para ir a um Quarup, um evento que acontece na comunidade do Xingu. Eu já tive a oportunidade de visitar e conhecer algumas tribos, que seria o contato com determinadas civilizações. Sou de uma região onde esse contato com diversos povos indígenas já acontece no interior da nossa própria sociedade.
Em sua opinião, de que forma a sociedade brasileira pode colaborar para a proteção dos grupos indígenas?
Eu estava vendo, outro dia, num livro de Eduardo Galeano que ele fala a respeito da questão do mito. Ele disse que o mito é como se você visse o horizonte e caminhasse para esse horizonte, e você nunca chega. Você tem um horizonte para alcançar, mas cada vez que você se aproxima do horizonte, mais distante ele vai ficando. Acho que vivemos numa sociedade retrógrada que precisa de passos largos e tem condição de evoluir. Mas, para evoluir, ela precisa na verdade se conhecer. Você não pode fazer uma revolução externa se você não se conhece. Você não vai ter convicção daquilo que você está pautando na tua vida. Hoje a desvalorização da educação começa a partir dos professores, que são os elementos essenciais desse elo entre a cultura e a distribuição dela na sociedade. Hoje vivemos num momento que já está sendo chamado de antropoceno. O que significa o antropoceno? Significa que é a era do homem no planeta. Do mesmo jeito que teve o mioceno e os esquemas todos de todas as eras geológicas, hoje a era geológica é a humana. E é a pior era. Por quê? As florestas e os animais estão sendo dizimados. Para qual mundo a gente está indo?
O documentário tem alterado, de alguma forma, sua visão sobre o tema?
Aí eu volto na verdade à história do Galeano. Quanto mais você caminha com relação ao horizonte, mais o horizonte se amplia. Então, temos que reformular conceitos a cada segundo, a cada momento. Às vezes, por exemplo, um conceito que você acha que seria totalmente definitivo, que você poderia efetivamente defender, você analisa e diz “ah, mas eu acho que estava equivocado”. É como se você chegasse, desse um passo com relação ao horizonte e precisasse reformular suas ideias. Então as ideias precisam efetivamente ser reformuladas. Você não pode caminhar com uma ideia sólida, totalmente sólida.
Se o senhor fosse um indígena, que mensagem daria aos homens brancos?
Primeiro, eu me sinto indígena, eu acho que sou indígena. Apesar de meu biotipo, tenho sangue indígena. Minha avó era índia, então eu me sinto no direito de dizer “me identifico enquanto ser um indígena”. A mensagem que pretendo dar com relação a esse presente momento é a cobra grande do mangueiral. Dar uma contribuição de uma certa forma para que as pessoas tenham a possibilidade de compreender a complexidade desse tema. É um novo olhar sobre uma história totalmente antiga. Então, de que maneira eu poderia expressar enquanto indígena em relação a isso? É dessa maneira, construindo um documentário de que modo ele tenha condição de mostrar essa multiculturalidade, da importância em se ter um espaço daquele dentro do Distrito Federal, dentro de Brasília, no coração do Eixo Monumental. O que temos recente na história dos indígenas em Brasília? A gente tem um grupo de jovens que tocou fogo num índio porque achava que aquilo ali era uma grande brincadeira. O índio estava dormindo numa parada de ônibus e eles resolveram tocar fogo. Imagine que coisa fantástica! A gente tem o Recanto dos Pajés que está sofrendo uma pressão absurda no setor Noroeste. A gente tem esse espaço do Memorial dos Povos Indígenas que está totalmente vilipendiado, totalmente jogado, levado às brecas. Nós temos vários sítios arqueológicos dentro da região de Brasília que sequer estão sendo estudados e identificados da forma que deveria. A mensagem que eu deveria dar? Acorda sociedade! Acorda comunidade acadêmica! Acorda Brasil! A gente precisa despertar para um assunto tão grave e importante como esse.
Júlia Lima é estudante de jornalismo no UniCEUB/Brasília.