Edição 206 - Brasília, 19 de junho a 17 de julho de 2016

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Poesia

A catequese de sábado
O percurso poético de Lindolf Bell

Por Cesar Carvalho

Foto: Divulgação

O poeta Lindolf Bell durante leitura pública

Era uma manhã de sábado primaveril e eu estava ansioso para participar de um encontro poético em Santo André, os Sábados Perversos, na Alpharrabio, uma editora e livraria dirigida por Dalila Teles Veras, onde as pessoas se reúnem para ler e discutir poesia.

Claro que cheguei atrasado. Apesar da ansiedade produzida por este tipo de evento, minha dificuldade em levantar cedo é abissal. Quando me dei conta, saímos, eu e minha mulher, a todo vapor. Para evitar erros de roteiro, acionei o Waze, mas, mesmo ouvindo a vozinha da moça − dobre à esquerda em 200 metros, mantenha-se à direita −, errei o caminho.

Felizmente Santo André, ou pelo menos o bairro onde estávamos, não apresenta dificuldades para estacionar. Saímos do carro e, antes de atravessar a rua, vimos do outro lado a livraria e seu mural externo estampando mensagens, fotos e poesias em homenagem ao aniversariante do mês, Carlos Drummond de Andrade.

Entramos. O ambiente com cor e cheiro de livros deixou-me estarrecido. Parei e vasculhei as estantes com olhos gulosos. Não fosse minha mulher puxar-me pelo braço teria esquecido a vida e o evento que acontecia no anfiteatro, localizado nos fundos.

Lá dentro devia ter umas vinte, vinte e poucas pessoas que ouviam o convidado, Rubens Jardim, de cabelos encaracolados e cavanhaque branco, fala eloquente, apaixonada, vigorosa; à sua esquerda, a organizadora do evento, a poeta Dalila.

Mesmo tendo perdido o início, felizmente o atraso não fora tanto assim, logo me inteirei do assunto. E o tema era desenvolvido com tal paixão que a pequena plateia ouvia atenta, sem perder palavra:

− A poesia é uma necessidade concreta do ser humano. Ninguém consegue viver sem poesia, e ela está presente em qualquer sociedade. Ela inquieta, faz o leitor voltar-se para si mesmo, se conhecer. E poesia não é só a que está no livro. Está em tudo que existe: na música, na arte, nos filmes, numa reunião familiar, no rosto da mulher amada, no abraço do amigo, na expressão distraída de uma criança. E o papel do poeta é levar essa inquietação, produzir esse gozo estético, estando em todos os lugares. Essa foi a motivação para Lindolf Bell criar a Catequese Poética.

Ao ouvir a palavra catequese veio-me à lembrança um trauma infantil produzido pela primeira reprovação que tive na vida, a prova do catecismo para fazer a primeira comunhão. Desde então, a palavra catequese sempre esteve associada à religião, nunca a imaginaria ligada a um movimento poético. Estranhado, gaguejei:

− Desculpe, Catequese... Não entendi, Catequese...

− Catequese Poética, movimento que o Bell começou em 1964, logo depois do golpe militar e se propagou pelo Brasil. Para Bell, a poesia era mais importante que tudo. Era seu ofício e profissão. Para viver fazia trabalhos esporádicos e morava em modestos quartos de pensão. O resto do tempo era dedicado ao seu sonho, ouvir e dar andamento aos chamados da poesia. Tinha um comprometimento visceral com a poesia. Vislumbrava nela a possibilidade de extrapolar as paredes, de ocupar as praças, os edifícios, as camisetas, os selos, as consciências. E chegou a ocupar até o corpo de um presidente da República! Quem não se lembra do Collor fazendo cooper com uma camiseta-poema do Bell?

Uma senhora interrompeu o orador e perguntou curiosa:

− É verdade que a Catequese Poética começou numa boate?

O orador, que é poeta e participou do movimento, buscou na memória, alisou o cavanhaque e respondeu:

− Foi na boate Ela, Cravo e Canela em São Paulo que Lindolf Bell inaugurou a Catequese Poética. E essa era a missão: levar a poesia ao conhecimento do grande público nos lugares mais imprevisíveis. Boates, praças, sindicatos, ruas, clubes, escolas, teatros, faculdades, livrarias, bares, becos etc. O poeta podia agir de modo diferente para não ser lido apenas pelo linotipista e por meia dúzia de amigos e familiares.

Nessas alturas, o que achei que seria uma palestra virou um bate-papo. Um senhor, bastante idoso, fez um sinal com a mão e Rubens deu-lhe a palavra:

− Rubens, se você me permite, quero dizer uma coisinha. À época, o Brasil vivia um clima bastante favorável a esse tipo de movimento. A gente entendia que a arte, revolucionária por natureza, teria que ser levada ao povo. O pessoal do CPC – Centro Popular de Cultura – radicalizou essa ideia, você deve se lembrar dos Cadernos do Povo que a Brasiliense publicava. O próprio cinema tinha um pouco essa postura. O Bell pensava como o CPC, levar a arte para o povo?

Rubens deu um sorriso de satisfação:

− Para Lindolf Bell, o poeta é uma espécie de porta-voz do povo. Quando ele, sozinho, lançou a Catequese Poética, sabia não estar fazendo nada novo. Num país como o nosso, muitos não sabem ler, a maioria não tem acesso à cultura. Bell superou isso e foi além, restabeleceu o vínculo da poesia com a oralidade. E ele sabia que não estava inventando nada. Muitos buscavam essa sintonia fina.

Neste momento, deixei de acompanhar o rio caudaloso do discurso de Rubens e entrei num igarapé. Todos esses movimentos artísticos simplesmente desapareceram. Hoje, o escritor, o artista, produz sua obra sem estar filiado a qualquer escola e os critérios definidores da arte se perderam. A arte, incluindo aí a poesia, ficou meio indefinida, ganhou novas cores, novas nuances. Para mim a arte hoje se assemelha ao mcguffin, um objeto para caçar leões na Alemanha que um viajante carrega na mala. Mas, se você contestá-lo dizendo não haver leões na Alemanha, ele não se apoquenta e responde: − Então isso não é um mcguffin! Esse paradoxo, me parece, foi inventado por Hitchcock. O Enrique Vila-Matas começa seu livro Não há lugar para a lógica em Kassel com ele. Posso estar equivocado, mas para mim, hoje, a arte é um mcguffin. Estava distraído, navegando nesse igarapé, e só voltei à realidade quando uma jovem levantou a mão e meio acanhada perguntou:

− Rubens, como era o Lindolf Bell? Na foto ele é bonito – e riu sem graça. Aqui e ali uma risadinha solidária da plateia. Rubens respondeu:

Era um poeta! Alto, loiro, olhos azuis – deu um sorrisinho e continuou entusiasmado – e se projetava com uma força e originalidade fora do comum. Lembro da primeira vez que o vi. Nunca havia presenciado nada semelhante. Aquilo era algo ainda inusitado, singular, único. Parecia um Evtuchenko brasileiro. Figura impressionante. E tinha enorme compromisso com a liberdade. Ouçam esse poema:

“Deixem-me calado na dor e no amor, deixem em paz minha desordem, meu canto rouco, meu viver interior, meu delírio, meu submundo, as águas da minha incerteza constante. Deixem em paz a ferrugem de meus planos abandonados, o quadro negro de meu existir traçado a giz, não me ensinem códigos, não me ponham sininhos no pescoço, eu quero ter a certeza de ser livre.”

− Ou então esse outro – e o declamou ainda mais eloquente do que o anterior:

“Não é a palavra fácil que procuro. Nem a difícil sentença, aquela da morte, a da fértil e definitiva solitude. A que antecede este caminho sempre de repente. Onde me esgueiro, me soletro, em fantasias de pássaro, homem, serpente. Procuro a palavra fóssil. A palavra antes da palavra. Procuro a palavra palavra. Esta que me antecede e se antecede na aurora e na origem do homem. E porque o minifúndio se faz na terra da palavra, enterrem-me na palavra.”

Os aplausos foram inevitáveis. Assim que as palmas silenciaram, um senhor alto, de meia idade, com um chapéu panamá na cabeça, levantou-se e, sem pedir licença, leu com euforia:

“Aqui se cruzam os caminhos de épocas remotas e atuais. Neste espaço finco os beirais desta casa onírica. Meu ninho é esta escrita em pergaminho. São as fantasmagorias banais, os sons obsessivos das vogais e as libações efêmeras do vinho. Não falo de casas em burburinho, nem de monumentos e catedrais. Registro, apenas, nesta escrivaninha o invisível poema em redemoinho, capturando o lido e o olvido e os ais escutados na partição dos caminhos.”
Novos aplausos entusiásticos. O senhor aguardou e esclareceu:

− Este é do Rubens Jardim, chama-se O invisível poema e está aqui, na antologia dos cinquenta anos da Catequese Poética. É lindo, não?!

O bate-papo durou mais alguns minutos. Rubens respondeu a algumas perguntas da plateia esclarecendo este ou aquele aspecto da vida e obra do fundador do movimento. Logo depois Dalila encerrou o evento, mas o bate-papo continuou no café. Foi quando tive acesso ao livro organizado pelo Rubens Jardim, Lindolf Bell: 50 anos de Catequese Poética. Não tive dúvidas, comprei-o e pedi um autógrafo.

Voltei feliz para casa, pois precisei ouvir o Rubens falar sobre a Catequese Poética para perceber o quanto minha compreensão da palavra catequese estava limitada pelo meu trauma infantil. Agora me sinto mais confortável, mas, confesso, prefiro a poética.

Depois daquele sábado catequético, com certeza iria me inteirar melhor sobre esse movimento. Figuras fantásticas, esses poetas.

 


Cesar Carvalho é escritor. Publicou Viagem ao Mundo Alternativo, UNESP; e as edições independentes: Proesia, poemas, e Toca Raul, crônicas e histórias sobre Raul Seixas. Contato: [email protected]