Edição 205 - Brasília, 15 de maio a 12 de junho de 2016

Youtube Twitter

Cinema

Toque de humanismo
Documentário mostra drama de refugiados

Por Paulo Lima

Foto: Divulgação

O pequeno Samuele Pucillo, em cena do filme

A princípio, a palavra “personagem” remete ao universo da ficção – do romance, do conto, da novela etc. Poderia ser empregada também para o cinema-documentário? Me inclino a dizer que sim. Um filme é um filme é um filme. O bom documentário pode ter o mesmo apelo de uma película ficcional. Esse apelo se apoia numa combinação bem sucedida de elementos, mas, sobretudo, na descoberta de bons personagens.

O documentário italiano Fogo no mar (Fuocoammare), do diretor Gianfranco Rosi, tem a meu ver um desses personagens marcantes. Trata-se do menino Samuele Pucillo. O tema do filme é a situação dos refugiados africanos e sírios que chegam em embarcações precárias à cidade de Lampedusa, na costa italiana. O que poderia ser uma narrativa pesada (em alguns momentos é), vitimizando homens e mulheres numa jornada dramática em condições de vida limítrofes, acaba por surpreender o espectador com momentos de lirismo e simplicidade.

As aventuras de Samuele, cometendo pequenos expedientes no cenário idílico de Lampedusa, são um dos plots do filme. E é esse plot que nos permite respirar e até sorrir em meio ao drama abordado. Samuele tem um quê de Tom Sawyer, personagem do romance famoso de Mark Twain. Ao contrário do norte-americano, porém, estabelece um grau maior de empatia, pois sabemos que é real, e não literário.

Há cenas majestosas em sua singeleza. Samuele, o pai e a avó, sentados à mesa na hora do almoço, comendo em silêncio um spaghetti, previamente preparado pela nona – os preparativos do prato também são mostrados - é uma delas.

A religiosidade típica dos italianos também aparece nos deslocamentos de uma antiga moradora de Lampedusa pelo interior de sua casa, com as imagens sacras pontuando as cenas.

O clima bucólico, da vida que passa devagar no interiorzão da Itália profunda, também recai sobre a rotina de um locutor de rádio à frente de seu programa. Os ouvintes ligam e fazem pedidos de músicas.

O documentário é atravessado por situações e personagens cujas atividades expressam a essência do humanismo perdido, caso, por exemplo, do médico que atende os imigrantes e protagoniza um dos mais belos momentos do filme, ao expor sua visão de mundo dedicada aos humilhados e ofendidos.

O filme de Gianfrancesco Rosi rende ainda momentos de rara poesia. Da boca de um refugiado da Costa o Marfim, ao narrar a fuga dramática que teve de empreender ao lado dos companheiros, sai esta inacreditável pérola poética:

“Na vida é arriscado não se arriscar, pois a vida é um risco.”

Deixamos a sessão com um estranho sentimento, mistura de comiseração e alívio, proporcionado, por um lado, pela situação desumana dos refugiados, e, por outro, pela vida apartada do tempo em Lampedusa, retratada pela liberdade juvenil do pequeno Samuele Pucillo

 

Paulo Lima é editor da revista Balaio de Notícias.