Edição 205 - Brasília, 15 de maio a 12 de junho de 2016
Literatura
Por Cesar Carvalho
I.
O relógio da igreja deu suas tradicionais doze badaladas. Urik parou de trabalhar, deu um sorriso, hora do lanche e das conversas fiadas na Ficcioneria. Organizou os papéis, desligou o computador e foi ao quarto se vestir. Metódico, escrevia seis oito horas por dia completamente nu com uma lapiseira bem fina. Fazia suas anotações em folhas soltas. Depois, organizava-as e digitava a versão final.
Madrugada quase deserta e a noite estrelada eram um convite para caminhar até a Ficcioneria, um bar frequentado por intelectuais, artistas, prostitutas e gente de todo tipo. Lá a diversão era garantida. Urik adorava as conversas que ouvia e as reaproveitava em suas histórias. Nas ruas, principalmente à noite, assobiava, dançava e acompanhava seus movimentos com o inseparável guarda-chuva. Parecia Gene Kelly.
Num cruzamento, prestes a atravessar a rua, ouviu a sirene do carro de polícia. Parou. A viatura passou, ele continuou.
Uma freada brusca. Em sua frente uma van, com uma equipe de TV. Urik se assustou e deu um pulo até a calçada. Ufa, por um triz!
Passado o susto, continuou sua caminhada quando ouviu um disparo.
- Tiro?!
II.
Essa foi por pouco. Onde estava com a cabeça. É isso que dá ficar pensando em sei lá o quê e não ver a van. Quase morri. Se ele não breca... Que noite! Depois, um tiro. Parece que veio lá pelas bandas do Genésio. Será que ele vai à Ficcioneria hoje? Sei lá, ele é muito imprevisível. Sempre tem histórias boas para contar. Já copilhei dele um monte de coisa. Ele fica até orgulhoso. Um tiro na noite. Vi um filme bem legal, o detetive só tem a gravação de um tiro para desvendar o crime. Esse tiro pode me dar alguma história. Uma de detetive? Mistério? Porra dá para fazer tanta coisa com um tiro. Começa assim. O carinha ouve o tiro, seus passos continuam inalterados. Logo depois, passa um sujeito correndo da polícia. O carinha, não o fugitivo, é preso. Daí a história...
Os pensamentos de Urik se interrompem com os gritos na casa à frente. Reconhece a voz de Marcelo gritando com a mulher:
− Você acha que estou mentindo?
− Está – gritou a mulher batendo a porta.
Urik para em frente ao portão e cumprimenta o amigo:
− Tudo bem?
− Não. Estou preocupado... Não com a Ingrid, mas com um amigo. É procurado pela polícia, se for preso to fu.
− Como assim, questionou Urik. Marcelo respirou fundo:
− É uma longa história.
III.
Ao ouvir a palavra história pronunciada por Marcelo, Urik ficou curioso, pois, além de gostar de uma boa história, adorava ouvi-la de um bom contador, como era a fama do amigo. Mesmo no bilhar, quando perdia, Marcelo dava desculpas bem criativas. Mas, dessa vez parece que ele não queria mesmo falar sobre o amigo ladrão.
Apesar da insistência de Urik, Marcelo continuava hesitando, visivelmente preocupado, mas aceitou o convite para uma caminhada:
− É bom para aliviar.
− Afinal, o que te preocupa tanto, Marcelo? Esse seu amigo é o quê, traficante?
− Não... Ladrão de carro.
− Porra, amigo justo de um ladrão?
− Como ia saber? O cara era gente fina, estava sempre com carro novo. Parecia ter grana, muita grana.
− Se ele tinha grana como está te devendo?
− Propôs um negócio da China. Caí feito pato.
− E como foi parar numa roubada dessas, Marcelo?
− Por causa da Ingrid que conhecia a Patrícia, mulher do Michel que virou meu amigo por causa da Ingrid que ele queria comer.
− Vamos por partes – interrompeu Urik – quem é Michel? Patrícia? A Ingrid eu sei quem é, é sua mulher.
− Urik, essa história é longa.
− Então vamos tomar uma cerveja aí você me conta.
IV.
Na Ficcioneria, Marcelo e Urik escolheram uma mesa isolada no fundo do bar. A curiosidade de Urik aumentou e ele estava ansioso para o amigo continuar sua história, um pouco esquisita, é verdade, de um fulano que além de ladrão lhe deve dinheiro. Estranho isso. Mas Urik teria que esperar alguns minutos mais, pois Marcelo fora ao banheiro e sua atenção se voltou para a TV onde a âncora, uma morena mais sexy do que jornalista, noticia o fechamento do cerco policial a um dos ladrões mais procurados pela polícia, Michel Piccard, um francês que vive no Brasil há mais de vinte anos.
Quando Marcelo voltou, Urik serviu-lhe cerveja e os dois brindaram. Marcelo bebeu, colocou o copo sobre a mesa e com os olhos fixos no nada lamuriou:
− Essa mulher acabou comigo, sabe. Cara, nunca vi! Louca por dinheiro. Ela conhece Patrícia há um tempão. Quando a Ingrid soube que o marido dela, Michel, estava num negócio que dava lucro rapidinho, e era seguro, não me deu mais sossego. Armou tanto que acabei conhecendo o tal do Michel. Pior, fiquei amigo dele. Amigo mesmo sabe, daqueles de você botar a mão no fogo. E tudo culpa dessa mulher...
O telefone toca
–... Dá licença, preciso atender... É ela.
V.
Apesar do som alto da TV e Marcelo diminuído a voz ao atender a mulher ao telefone, Urik não deixou de ouvir:
− Já te falei meu xodozinho, consigo o dinheiro e te pago, prometo... (...) ta, ta bom, mas o prazo é muito curto. É muita grana. Não precisa gritar (...) xodozinho, pelo amor de Deus, não grite, vai acordar os vizinhos. Eles vão reclamar, você vai ver, mas deixa pra lá. (...) Tá, tá bom, arrumo o dinheiro.
Urik, meio incomodado, levantou-se acenando para Marcelo ficar à vontade e aproximou-se do aparelho de TV onde a âncora, mais sexy que jornalista, detalha a vida do ladrão de carros mais procurado nos últimos tempos. Poucas horas antes, próximo da residência do bandido, os policiais ouviram um tiro. O autor do disparo não foi encontrado. Acredita-se que o tiro tenha sido para avisar o ladrão, que fugiu.
Urik viu o amigo desligar o telefone e, sem esperar o final da reportagem, pediu uma cerveja ao garçom e sentou-se à mesa:
− Estava vendo o noticiário. Você ouviu algum tiro hoje, pouco antes da gente se encontrar?
Marcelo dá um sorriso amarelo:
− Só ouvi os berros de Ingrid
− Foi lá pelos lados do Genésio.
− Pode ser mesmo, Genésio vive reclamando que é vizinho de um traficante.
VI.
O relógio da igreja deu suas tradicionais doze badaladas. Genésio terminou de assistir TV, levantou-se do sofá, calçou os chinelos e dirigiu-se à varanda para fumar. Estirou-se na cadeira de balanço fixando os olhos na casa do vizinho que detestava. Tinham-se conhecido numa festa de bairro. Poderiam até ter sido amigos, não fosse o fato de Genésio presenciar o vizinho passando a mão na bunda de sua mulher, que estava a certa distância. Queria socar o fulano, mas desistiu ao ouvir um amigo que acompanhou a cena:
− Deixe quieto, esse cara é perigoso. Dizem que é traficante.
Mas, se coragem tinha pouco, ciúmes tinha em excesso. Sabatinou a mulher à exaustão, queria saber se ela se excitara. O resultado: a mulher silenciou corpo e voz por dez dias.
Genésio terminou o cigarro, levantou e apoiou-se no parapeito. Da casa do vizinho odiado vinham gritos. Chamaria a mulher para ouvir a briga, não estivesse ela tão ressentida. Continuou no parapeito, em silêncio. Viu o suposto traficante obrigar a mulher a entrar no carro, viu o carro sair da garagem, passar em frente a seu prédio e, ao fazer a curva, uma luz piscar no seu interior seguido de um estampido.
− É isso, mataram o traficante!
VII.
Genésio saiu da varanda e entrou na sala, onde sua mulher, no sofá, bordava e assistia TV:
− Maria, você ouviu?
− O quê?
− O tiro. Mataram o cara, acho. Bandido sacana.
− Vi uma foto parecida com ele na TV. Será que é o ladrão procurado?
− E você duvida?
Genésio não esperou resposta, foi ao quarto e trocou de roupa. Na sala, ao curvar-se para beijar a mulher, ela estranhou:
− Aonde vai?
− Ora, Maria, encontrar Urik. Ele deve estar na Ficcioneria, como sempre. Volto logo.
A mulher mostrou-se indiferente, afinal acostumara-se às escapadelas noturnas do marido para encontrar amigos, bebericar e conversar fiado. Depois, meio bêbado, voltava carinhoso. Genésio saiu.
Ansioso, queria passar pelo local onde o carro estaria, ou, pelo menos, deveria estar. A luz, o estampido. Não havia dúvidas, era um atentado. Precisava checar. Mas, decepcionou-se. A rua, como todas as outras àquela hora da noite, estava deserta.
Pouco depois ouviu a sirene. A viatura policial passou por ele a toda velocidade seguida por uma van com uma equipe de TV. Sem dúvida estão atrás do bandido, e para ter TV deve ser gente importante. Ah, certeza, era ele o bandido procurado. Se não morresse, seria preso.
VIII.
Adriano, o cinegrafista da equipe, encostado na van, conversava com Joleno, motorista e assistente de produção durante as reportagens. Aguardavam Hélio Canabiserra, o repórter que descobriu o chefe de uma quadrilha de ladrões e ganhou notoriedade. Hábil na construção de narrativas, suas reportagens logo ocuparam os principais horários da emissora. Era sua chance de crescer na empresa, galgar postos, ser apresentador do jornal no horário nobre! Mas isso dependeria de Ana Mourato, editora da TV, sua chefa.
No interior da delegacia, enquanto sua equipe o aguardava, Hélio levava uma descompostura do delegado, enraivecido com a divulgação da foto do suposto bandido.
− Se vendo na TV ele sabe que foi identificado. Aí foge e eu te processo por cumplicidade.
Lá fora, Joleno ouvia as reclamações de Adriano:
− Não aguento mais mano, noite e dia atrás desse bandido. E tudo por causa dessa piranha, a Ana. Jornalista... Prá mim ela é mais séquici que jornalista.
− Uai, achei que o chefe era o seu Hélio?!
− Tu num manja nada, mano. Eles até transam, mas, quem manda? Ana, essa piranha.
Joleno foi ao banheiro. Adriano continuou encostado na van.
Hélio saiu da delegacia apressado.
IX.
Hélio consultou o relógio, meia-noite. Aproximou-se de Adriano, que o questionou:
−Afinal, a gente vai ou não vai prender esse mano?
− Temos que esperar o delegado receber o endereço do Michel. Um detetive tá cuidando disso. Daqui a pouco sai a viatura e a gente encerra essa temporada. Cadê o Joleno?
− Banheiro.
− Porra, logo agora. A gente tem que grudar na viatura. Vamos entrar no carro.
Passaram-se alguns minutos. Nem Joleno nem os policiais apareceram. Hélio angustia-se cada vez mais. Reclamou da ausência do motorista:
− Se perder esse flagrante por causa do Joleno mando ele de volta pro Ceará.
Adriano, sentado no banco da frente, o tranquilizou:
− Calma, mano, de vez em quando o Joleno tem dessas coisas, sai correndo pro banheiro.
Adriano viu os policiais entrarem na viatura:
− Vixi, meu Deus! Cadê o Joleno? E saiu correndo em direção ao banheiro gritando o nome do motorista. Joleno, segurando as calças, correu ao seu encontro.
− Se liga, mano, quer perder o emprego? A viatura tá saindo. Corre.
Sob os berros de Hélio, terminou de afivelar o cinto da calça e entrou no carro:
− Liga essa merda logo. A viatura já saiu. Merda. Sai logo. A gente tem que grudar nela. Se perder esse flagrante te mato. Caralho.
X.
Suando frio, Joleno ligou o motor da van, deu uma arrancada brusca e quase bateu num carro estacionado à frente. Hélio, preocupado em não perder a viatura, nem sequer percebeu a barbeiragem e continuou gritando com o motorista, cujo suor escorria farto.
No primeiro cruzamento, o semáforo avermelhou-se. Joleno parou. Hélio desesperou-se:
− Cê tá louco? Põe essa merda pra andá. A gente vai perder a viatura. Santo Deus.
− Mas, seu Hélio, se eu for multado o patrão desconta do meu bolso!
− Que se foda. Melhor pagar a multa do que ser mandado embora. Acelera. Acelera.
Não sei onde foram arrumar esse motorista. Incompetente. E onde está esse carro da polícia? Caralho. Meses nessa porra pra morrer na praia. Nem pensar. Hoje filmo a prisão desse bandido, nem que a vaca tussa.
− Joleno – gritou – a viatura, a viatura, ali na frente. Acelera. Acelera.
Aproximaram-se. Hélio, mais calmo, parabenizou Joleno por diminuir a distância. Num cruzamento, a viatura dobrou à direita. A van, a poucos metros, dobrou à direita.
− Cuidado, gritou Adriano. Joleno freiou bruscamente.
O transeunte, assustado com a van à sua frente, pulou para a calçada, ileso.
Joleno engatou a marcha e acelerou.
XI.
A van continuou disparada para reaproximar-se da viatura policial. Hélio, indignado, reclamou do motorista:
− Porra, Joleno, preste atenção. Quase atropelou o cara. E acelera senão a gente perde a viatura. Acelera.
− Manera, mano, o Joleno não tem culpa – disse Adriano, sentado no banco de passageiro, ao lado do motorista − o coroa babaca não viu a gente. E o jeitão dele, no mundo da lua, com aquele guarda-chuva?! Coisa mais fora de moda.
Hélio insistiu, naquela madrugada teria o desfecho de sua investigação. Se perdesse o flagrante perderia o principal, e sua reportagem ficaria incompleta. Adriano o questionou:
− Cara, tamo junto faz um tempão. Tô gravando tudo, desde o começo, mas, mano, como você chegou no bandido. Cê num tinha pista nenhuma. Como foi isso? Mágica?
Hélio ficou em silêncio por algum tempo. Depois, sem tirar os olhos da viatura à frente, respondeu:
− Isso que me preocupa. Tudo indica que esse cara, o chefe da quadrilha, é esse francês, Michel Piccard. Mas não chequei, não deu tempo. A Ana ficou tão excitada com os índices de audiência que resolveu divulgar a foto sem meu consentimento. Tomei uma baita bronca do delegado. Mas, agora, com o francês preso tudo se resolve.
XII.
A viatura policial parou na entrada de uma viela. O delegado, de arma em punho, acompanhado dos policiais, dirigiu-se a uma casa às escuras. Joleno parou a van próxima à viatura e Adriano correu para pegar a câmera, enquanto Hélio ajustava o microfone. Estavam prontos.
Ao se aproximarem, o delegado, enraivecido, dirigiu-se a Hélio:
− Pode voltar, não tem nada aqui. Óbvio, o cara fugiu. E a culpa é sua. Não tinha porque divulgar a foto.
O celular do delegado tocou. Ele atendeu, ouviu e, sem falar nada, desligou.
Apressou os policiais:
− Vamos, vamos, tem uma denúncia. Localizaram o cara.
− Quem fez a denúncia, perguntou Hélio.
− E o que isso importa? Parece que foi uma mulher, vam´bora.
Viatura e van saíram em disparada. Algumas quadras depois, o delegado ordenou:
− É aquele carro. Fecha a passagem, assim ele não foge.
O suspeito, encurralado, saiu do carro, sacando a arma, mas foi alvejado logo que deu seus primeiros passos e caiu.
A mulher que o acompanhava também saiu e ficou encostada no carro, observando. Ela se aproximou do moribundo, olhou-o fixamente e, sem qualquer outra reação, passou suavemente os dedos sobre os lábios. Antes de fechar os olhos, ele balbuciou:
− Traidora.
XIII.
Um dia antes da briga com Marcelo, Ingrid estava em sua casa. Nervosa, querendo ficar a sós, dispensou a empregada. Na área de serviço pegou o material de limpeza e foi para a sala. Tirou os móveis de lugar, pegou a vassoura, passou-a algumas vezes sobre o piso e desistiu. Encostou a vassoura na parede, sentou-se no sofá, arrastado para o meio da sala, e chorou.
O telefone tocou. Levantou-se preguiçosamente e atendeu tentando controlar a voz embargada:
− Mãe, é você?!
− Filha, que voz é essa? Chorando?
− Nada não, mãe.
− Não me venha com historias. Conheço você muito bem. Por que está chorando?
− Ah, mãe, por favor... Tá, tá bom. É o Marcelo.
− Como sempre. Bem que te avisei...
− Eu sei, a senhora tem razão, sempre teve, mas que vou fazer? Gosto dele.
− O que ele aprontou dessa vez?
− Está sendo procurado pela polícia, roubo de carros. Além disso, sumiu com meu dinheiro. Disse que era para um negócio, mas é mentira, com certeza.
− Quer saber? Livre-se dele. Conta tudo para a polícia, senão quem se sairá mal é você.
− Como vou fazer isso? Eu gosto dele.
− Pense bem. Não quero te visitar na cadeia por ser cúmplice de um bandido.
Ingrid desligou o telefone. Seus olhos fixaram-se no nada.
XIV.
No bar, Urik ouvia a história de Marcelo sobre o francês, Michel Piccard, ladrão de carros que lhe devia muito dinheiro. Urik questionou:
− Se sabia que era ladrão, por que se envolveu?
− Ele é um tipo fascinante. E sua história com Patrícia, sua mulher? Coisa de maluco. Um dia foram viajar. A polícia identificou o carro roubado e o perseguiu. A mulher apavorou. Para tranquilizá-la disse que estava sem documentos. Deu sorte. Conseguiu despistar a polícia.
− E a mulher acreditou?
− Evidente. A coisa complicou quando ela encontrou uma arma na gaveta. Ele inventou nova história. Como viajava muito, a arma garantia sua segurança.
− E ela acreditou?!
− Não muito, mas deixou pra lá. Sabe como são as mulheres apaixonadas, né?
A conversa é interrompida com a chegada de Genésio que, depois de cumprimentar Urik, dirigiu-se a Marcelo:
− Estou te procurando faz tempo. Fui até sua casa. Cara, teus vizinhos me contaram tantas histórias diferentes que ninguém sabe qual a verdadeira. Que anda acontecendo?
− Ah, Genésio, vizinhos adoram fofocas.
Genésio bebeu um gole da cerveja, olhou para os amigos e mudou de assunto:
− Sabem aquele traficante, meu vizinho? Acho que o mataram.
XV.
Sentados à mesa, no fundo do bar, Marcelo observou dois policiais entrarem. Genésio, em sua frente, lhe serviu de escudo, movimento que passou despercebido tanto a Genésio quanto a Urik. Este, curioso com a pergunta de Genésio, comentou:
− Quando estava vindo para cá ouvi um tiro e, logo depois passou um carro de polícia seguido por uma van da TV que quase me atropelou. O tiro veio lá dos lados de sua casa. Mataram seu vizinho?
− Acho que sim. Mas é estranho, logo depois passei pelo lugar e não tinha nada, Você ouviu o tiro, Marcelo?
Mas, antes que pudesse responder, o celular de Marcelo toca. Mesmo falando baixo, ambos puderam ouvi-lo:
− Polícia?! Estou indo. Desligou o telefone e levantou-se para despedir-se dos amigos.
Urik, preocupado:
− Aconteceu alguma coisa? Precisa de ajuda?
Marcelo agradeceu. Ao despedir-se, Genésio o abraçou e sentiu um volume em sua cintura que lhe pareceu uma arma:
− Você está armado, Marcelo?
Sem graça, Marcelo desconversou e saiu. No meio do caminho, vendo os dois policiais no balcão, tomando café, abaixou a cabeça apressando os passos.
Genésio comentou com Urik, em voz baixa:
− Ele está armado. Que está acontecendo? Ele falou de polícia, não falou?
XVI.
Depois que Marcelo saiu Genésio não se conteve:
− Você viu, ele está armado! Está com problema, tenho certeza.
Urik, que estava chamando o garçom, dirigiu-se ao amigo:
− Tem alguma coisa acontecendo. E me contou uma história estranha... Um amigo dele... Ladrão de carro...
− E você acreditou?
− E por que não?
− Você não conhece o Marcelo. É um dos maiores mentirosos da praça.
− Ora, Genésio, como pode dizer uma coisa dessas?
− Não existe ladrão de carro, nem francês, nem inglês, nem porra nenhuma. Essa história que ele conta é do Acossado, um filme do Godard, o cineasta francês. Ele é obcecado por este filme e volta e meio inventa a história de que é amigo do Michel Piccard, um personagem que só existe no cinema.
− A história me parecia tão real.
− Esse é o Marcelo. Quando foi convocado para servir o exército aprontou uma inacreditável. Fingindo ser major, telefonou para o tenente do quartel dizendo que chegaria o recruta Marcelo, campeão de artes marciais, que poderia representar o exército nas competições, mas deveria ser poupado de qualquer esforço físico, pois estava com problemas de saúde. Claro, o tenente seguiu as ordens à risca. E ele serviu o exército sem fazer porra nenhuma.
XVII.
Urik, após o almoço, voltava para casa quando viu Genésio andando de um lado para o outro. Olhava para as janelas, aproximava-se da porta, tocava a campainha, voltava a olhar as janelas. Urik aproximou-se:
− Que novidade é essa, Genésio?
− O Marcelo morreu. Foi baleado.
− Como assim?
Genésio gaguejava e tremia. Urik convidou-o a entrar.
− Calma, vou preparar um café e você me explica o que aconteceu.
Na cozinha Genésio sentou-se à mesa. Seus dedos tamborilavam na madeira:
− O Marcelo era chefe de uma quadrilha de ladrões de carros. E, pior, foi sua mulher que o denunciou.
− A mulher?!
− É, a Ingrid. Conversei com ela agora a pouco. Pirou. Disse que se arrependeu, por isso, ontem à noite, telefonou para avisá-lo. Resolveram fugir, mas a polícia os encurralou.
− Espera. Se ele era o procurado, por que a foto com o nome de Michel Piccard, que nem existe, apareceu no noticiário?
− Obra do Marcelo. Sabia que era procurado, então, para desviar a atenção, mandou a foto do meu vizinho para a TV com nome falso. Não deu certo porque a mulher o denunciou. E meu vizinho, que eu pensava ser bandido, é inocente.
− Bem, Genésio, Marcelo, pelo menos, realizou sua obsessão, morreu como o personagem do filme.
Fim.
Cesar Carvalho é escritor. Publicou Viagem ao Mundo Alternativo, UNESP; e as edições independentes: Proesia, poemas, e Toca Raul, crônicas e histórias sobre Raul Seixas. Contato: [email protected]