Edição 205 - Brasília, 15 de maio a 12 de junho de 2016
Ficção
Por Eduardo Haak
Soube que a vaga era de vigia noturno quando vim conversar com o zelador.
Não gosto de passar a noite em claro, desde que servi exército me acostumei a dormir e acordar cedo, não tem coisa melhor do que respirar o ar frio da manhã. O negócio é que não está fácil arrumar serviço, então topei trabalhar de noite mesmo.
Os moradores aqui do prédio até que são bacanas. Tem só um sujeitinho folgado que mora no quarto andar, o doutor Fábio, o veado faz questão de ser chamado de doutor. Tem também a dona Débora, a síndica, ela gosta de me aporrinhar, principalmente quando está bêbada.
Doutor Fábio me interfona e diz, Ezequiel, uma amiga minha está chegando, descola uma vaguinha pra ela.
Na garagem só pode um carro por apartamento. Pelo menos duas vezes por semana alguma mulher vem visitá-lo e ele sempre faz porque faz até que eu deixe elas entrarem com o carro, eu já disse pra ele que a dona Débora ameaçou me mandar embora e ele se limitou a dizer, fica frio, deixa que depois eu converso com a coroa.
A mulher que ele está esperando chega e, enquanto tenta manobrar, bate na lateral do carro do seu Haroldo, do apartamento cinquenta e três. Vou à garagem por causa do barulho. A fulana, observando o amassado, diz, caralho-puta-merda, e logo toma o elevador.
Dona Débora aparece e me diz, eu avisei, não avisei? Tchau.
Não foi minha culpa, digo.
Claro que foi, crioulo imbecil. Você é responsável por quem entra e quem sai.
Ela pega o telefone para fotografar o carro.
Eu poderia meter dona Débora na cadeia. Não é a primeira vez que ela me xinga assim, algumas vezes eu até gravei no meu celular. Ou então eu podia pedir indenização, o problema é que o dinheiro iria sair dos outros moradores, de pessoas legais como a dona Jussara que sempre me traz lanche de manhã, seria sacanagem fazer isso.
A senhora é uma bêbada inútil, digo, pensando, que se dane, já estou demitido mesmo.
O quê?
A senhora não está parando nem em pé. Precisa de uma ducha fria.
Vou ao hidrante e giro a torneira. Aponto a mangueira para dona Débora. A água vem com uma pressão violenta, que a derruba. Mantenho o jato em sua direção. A dentadura de dona Débora cai e rodopia pela garagem, como se fosse um carro desgovernado.
Desligo a água, volto à guarita e pego minhas coisas. Saio para a rua. Meu ônibus só volta a circular às cinco da manhã. Eu poderia matar o tempo no prédio em que o Vanderlei, meu compadre, é vigia, mas acho que prefiro andar. Às vezes eu gosto de ficar por aí, só andando e pensando, andando e pensando.
Eduardo Haak é paulistano, nascido em 1971. Foi cronista do portal de conteúdo feminino do UOL, "iTodas", durante três anos. É autor do livro Tem uma coisa sobre mim que acho justo você saber, lançado em 2011 pela editora KBR. Blog do autor: http://eduardohaak.blogspot.com.br/