Edição 204 - Brasília, 03 de abril a 01 de maio de 2016
Literatura
Por W.J. Solha
Foto: Divulgação
O autor Waldemar José Solha
1970. Quando saí do sertão, transferido pra única agência do Banco do Brasil em João Pessoa, na época, a do Varadouro - estava falido. Afundara-se a Cactus Produções Cinematográficas Ltda – que eu, o colega do BB, escritor José Bezerra Filho, e o povo de Pombal fundáramos pra produzir o primeiro longa-metragem paraibano de ficção em 35 mm, “O Salário da Morte”, dirigido por Linduarte Noronha. Sem casa e sem carro, devendo muito, sobrevivi com a família como pude, dependendo de cheque-ouro e de agiotas. Sentindo necessidade enorme de criar, mas sem condições de partir pra outro filme, sequer de gastar com telas, tintas e pinceis, comecei a escrever versos nas costas de papeis já utilizados, trazidos do banco. Fiz uma porção deles, até que, vendo que lhes faltava alguma coisa, uma personalidade própria, deixei-os de lado. Foi quando um de meus chefes, Marcos Aguiar, ao ouvir algumas histórias que eu trazia do sertão, me disse: “Se você escrevesse o que nos conta, eu compraria seu livro”.
Àquilo juntei a fascinada leitura dos contos autobiográficos de Hemingway – “As Aventuras de Nick Adams”, que me haviam impressionado pela extrema simplicidade. Passei, então, a botar no papel tudo que me marcara nos oito anos que passara no sertão, já desenvolvendo algo ficcional nisso, misturando passagens, atribuindo fatos a protagonistas trocados, mantendo o mesmo personagem como fio condutor, alguém... revoltado com a vida, razão pela qual lhe dei o nome bíblico Israel (“O que lutou com Deus e venceu”) e, como sobrenome, pespeguei-lhe Rêmora, peixe tão esquisito quanto o Solha.
Lá pelas tantas, percebi que os poemas que havia abandonado tinham muito a ver com o que agora me saía em prosa e, por influência da montagem cinematográfica que conhecera como produtor de “O Salário da Morte”, peguei – literalmente - tesoura e fita adesiva, intercalando cada capítulo datilografado ( narrado na terceira pessoa ) com um poema devidamente escolhido, de modo que meus versos, sem alteração de um “a”, passaram a ser monólogos do Israel, como efeitos interiores, sempre, do que acabara de ser visto “de fora”.
Certo de que acabara criando uma obra-prima, procurei Jurandy Moura – que fora assistente de Linduarte nas filmagens e gozava de prestígio como intelectual e poeta – pedindo-lhe – no hospital onde ele se tratava de hepatite - que avaliasse o livro. Voltei uma semana depois e ele foi duro: “Seu romance está muuuito ruim” . Mal abri a boca pra fazer minha defesa, ele – calmo como sempre - disse: “Não vamos discutir. Você ainda está muito envolvido pelo que fez, tendo escrito demais em alguns pontos, de menos em outros. O que você tem aí é coisa pra três romances. Anote a data de hoje na capa, vá escrever outra coisa e daqui a exatos seis meses releia o livro”.
Fiz isso. Escrevi “A Canga”, desenvolvendo um conto que escrevera em Pombal, lá mesmo transformara em peça de teatro, que - aqui em João Pessoa - estendera num roteiro de longa-metragem e, como o filme não saira, transformei-o no pequeno romance. Quando o terminei, na data marcada, fui ler os originais do anterior... e fiquei chocado. Saí tirando coisas, tirando coisas, reduzi o calhamaço a um terço do original. Aí me apavorou a ideia de que aquilo não era bem um romance como eu o conhecia. Foi então que conheci Marcos Luís, contista, funcionário da Caixa Econômica, que andava pra todo lado com O Jogo da Amarelinha debaixo do braço. Acabou me convencendo a ler essa obra de Cortázar. E vi que o “Israel Rêmora” era realmente romance. Tão grato fiquei, que mudei o nome da mulher de meu personagem pra Maga e, como Horácio de Oliveira era abandonado por ela em Paris e não a encontrara, mais, fiz o Israel conhecer a gringa no cabaré de Cajazeiras. Mudei o nome do filho dos dois, também, para o do que ela tivera com Horácio: Rocamadur, que também morre em cena.
Pensei em retornar a Jurady Moura, mas resolvi incomodar outro cara que eu respeitava muito: Antonio Barreto Neto. No prazo que ele me pediu, fui buscar o resultado. Recebeu-me com certa frieza, deixou-me na sala e foi buscar meus originais. Aí chegou e me disse exatamente isto: “Olha, tem um concurso novo aí, o Prêmio Fernando Chinaglia, com uma bela grana e a novidade: garantia de edição do romance vencedor pela Record. Mande seu livro. Se não ganhar o primeiro lugar, não acredito mais em concurso neste país”. Ganhei o prêmio e uma menção especial por “A Canga”. Quando fui ao Rio, era 1974, a poeta Stela Leonardos, que me recebeu, perguntou-me “De qual de seus dois livros você gosta mais?” Pergunta estranha. “São muito diferentes um do outro”, respondei. “Bem – ela me contou - “A Canga” foi escolhido por unanimidade, mas como há o direito de publicação, tivemos medo da Ditadura. Por isso transferimos o prêmio para “Israel”, que deveria ficar em segundo lugar”.
Waldemar José Solha é ator, escritor e artista plástico. Atuou em vários filmes, como O som ao redor e Era uma vez eu, Verônica e escreveu diversos livros, entre eles os romances Israel Rêmora e A canga.