Edição 204 - Brasília, 03 de abril a 01 de maio de 2016
Ficção
Por Marcus Borgón
Um mês e pouco, já balbuciava. Fazia porcaria com a saliva. A avó, mestra das simpatias, colocava um copo no muro para pegar água da chuva. “Filho homem tem que falar cedo”. Sem saber, vaticinava. Aos seis meses, ele formava as primeiras frases. Dicção limpa, encantava os parentes. Quando não estava mamando, falava. Desembestado, manemolente. Alguém notou que arremedava as chamadas do rádio. De futebol a autopeças. De pastores eufóricos a programas do governo. Repetia todas as vozes dos veículos de comunicação. A história do bebê falador se espalhou pela vizinhança. Apareceu médico, padre, delegado. Não demorou muito, o prefeito. Aquela casinha acanhada na saída da cidade nunca vira tanta gente. No aniversário de um ano, o menino subiu na cadeira e discursou. Esse menino é um potinho de ouro, disse o tio. No dia seguinte, pai, mãe e filho embarcavam num Itapemirim. Bilhetinho em punho, deixavam para trás aquele horizonte seco, olhando-o com precoce nostalgia. O portador da esperança, de olhos puxados e plaquinha na mão, atendia por Geraldo. O pai nunca tinha visto seu nome em letras tão graúdas. Ganharam roupa nova. Os olhos da mãe cintilavam de sonhadora alegria. Estranharam a quantidade de luz e de gente afobada. E o sotaque enjoado do pessoal que os ciceroneava. O pequeno captou as declinações, os erres, o tom italianado. A frívola apresentadora começou elogiando a beleza do infante. Não era bem isso que interessava. O menino se antecipou. Chamou atenção para seus bracinhos finos. A cabeça que mal se equilibrava num toquinho de pescoço. “É um gênio, esse garoto!”
Fizeram todo o circuito de tevês. Programas humorísticos, matinais, educativos, jornais de meio-dia. Geraldo os agenciava. Negociava cachês, combinava as perguntas. Não deixava faltar nada no frigobar do apart hotel. Avião não fazia mais medo. Despachavam mala, realizavam check-in. O aniversário de dois anos foi no Palace. De modo jocoso, o menino imitava o inglês cambaleante dos aeroportuários. Para gáudio de uma penca de subcelebridades, aspirantes a artistas e pelegos de primeira ordem. A família cruzou o país. Em cada local que chegava, o pirralho se apoderava do falar. Parecia um nativo, ninguém acreditava. Em Buenos Aires, conversou sobre tango, montoneros e Maradona. Castelhano castiço. “Es una bravuconada” – gritou um bonachão no fundo do auditório. Foi vaiado e expulso a pedido do menino.
Nos Estados Unidos andou por universidades. Princeton, Harvard. Reverberava as palestras. Impressionou estudiosos, cientistas e gente do governo. Os pais não desgrudavam dele. Seguiam a reboque, na verdade. Não mais parecia aquele trio de retirantes que desembarcou no Tietê. Acumulavam bagagem. Os problemas com o idioma, o pequeno resolvia. Atravessaram o oceano. Sentiram frio na torre, sobre a Cidade-Luz. “Une merveille”, disse, com as mãozinhas no vidro do elevador. Romeno, húngaro, finlandês. O pequeno falante não se apertava. Em poucas horas, exibia fluência de orador. Cumpria agenda de astro pop. Pagavam caro para ouvir sua tagarelice em várias línguas. Hebraico e javanês sem tropeços. Japonês e mandarim sem tartamudear. O oriente também se rendeu.
A mãe gostou de Madri. O pai preferia Montreal. Decidiram não ter residência fixa. Ao saírem na rua, um séquito se formava. O assédio crescia. Aumentava também o medo de que sequestrassem seu prodigioso rebento. Ainda faltava o continente negro. Um filólogo estava preocupado com dialetos em extinção. O menino poderia traduzi-los, divulgá-los. Enfim, salvá-los do desaparecimento. Foi uma viagem sofrida. Atravessaram o Saara na carroceria de um caminhão. Estiveram com tribos distantes, quase sumidas. O menino varou o continente completamente calado. A gente esquelética se esforçava nas explicações e gestos. O pequeno ouvia atento. Nada respondia. Irritado, o pesquisador abortou o projeto.
Dias passaram, e ele permanecia em silêncio. Contratos foram cancelados. Em pouco tempo esvaziaram suas últimas economias. O menino não dizia mais uma palavra. Em qualquer idioma. Sofreu ameaça, castigo, palmada. Não dava um pio. Nem sequer chorava. Venderam as roupas num brechó de Lisboa e voltaram para casa. Procuraram Geraldo, mas não foram recebidos. Ele passou a agenciar um engolidor de objetos do Amapá. Gastaram os últimos vinténs com psicólogos, fonoaudiólogos, curandeiros, psiquiatras. O menino permanecia acabrunhado. Sentida por ter sido deixada, a avó foi quem desatou a falar. Uma ladainha aborrecida e caudalosa. A velha deu água da chuva, botou passarinho pra cantar na boca do netinho. Nada dava certo. A cada tentativa frustrada, aumentava o tom das imprecações. A sogra bem que podia dar uma voltinha pela África, pensou alto o pai do garoto. E resolveu retornar à lavoura. A mãe arrumou trabalho na padaria.
Um dia, ao voltarem para casa, perceberam uma aglomeração em sua porta. Ao ouvirem a voz do menino, estamparam aquele velho sorriso que andava esquecido. Os vizinhos, cada um com um bicho. Cachorro, galinha, porco. O menino os imitava com precisão. Todo mundo aplaudia. O filho voltara ao centro das atenções. De malas prontas, foram ao zoológico da capital. Queriam ampliar o repertório do guri. Macaco, flamingo, leão, hipopótamo. Indefectíveis imitações. Até que chegaram à ala das girafas. E o menino novamente emudeceu.
Marcus Borgón é autor da novela juvenil O Pênalti Perdido (P55 Edições, 2016). Colaborou com a extinta revista eletrônica Verbo21, fazendo resenhas de livros de autores contemporâneos. Participou, com o conto “Um Pesadelo entre os Dentes”, da coletânea Casa de Orates: contos sobre loucura, a ser lançada ainda este ano pela editora Mondrongo.