Edição 204 - Brasília, 03 de abril a 01 de maio de 2016

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Cinema

Yes, nós temos filme-ensaio
A variedade e a força do documentário brasileiro

Por Carlos Alberto Mattos

Foto: Divulgação

Imagem do documentário Jogo de Cena, do diretor Eduardo Coutinho
 

A partir da leitura de O Filme-ensaio – Desde Montaigne e Depois de Marker, de Timothy Corrigan (Papirus, 2015), resolvi reunir lembranças e anotações sobre filmes brasileiros que se enquadram nessa categoria um tanto maleável. O livro de Corrigan se detém sobre cineastas de diversos países, como Jean-Luc Godard, Dziga Vertov, Agnès Varda, Trin T. Minh-ha, Ross McElwee, Jonas Mekas, Chantal Akerman, Chris Marker, Johan Van der Keuken, Wim Wenders, Werner Herzog, Michael Moore e Alexander Kluge. Afora três rápidas menções a Tire Dié, de Fernando Birri, Chile, la Memoria Obstinada, de Patricio Guzmán, e a Glauber Rocha como um filme-ensaísta de destaque, não há outras referências a produções latino-americanas.

A tradição do nosso continente nesse campo é de fato bem menor que a da Europa, onde a modalidade do filme ensaístico germinou desde os anos 1920, ou da América do Norte, onde floresceu a partir dos anos 1960. Mas as ocorrências no cinema brasileiro são importantes e variadas o suficiente para justificar um estudo mais aprofundado. Não é o caso deste meu texto, que pretende ser apenas a sinalização de um universo a explorar.

Comecemos por destacar algumas afirmações de Timothy Corrigan que distinguem o filme-ensaio do documentário, da experimentação e da autobiografia, buscando situá-lo “em um lugar histórico mais refinado”.

– “O legado literário do filme-ensaio ilumina (…) um envolvimento único entre o verbal e o visual”.

– “Uma subjetividade expressiva, comumente percebida na voz ou na presença efetiva do cineasta ou de um substituto, tornou-se um dos sinais mais reconhecíveis do filme-ensaio”

– “Os ensaios tendem, voluntária e muitas vezes agressivamente, a minar ou dispersar a subjetividade à medida que ela é subsumida ao mundo que explora”.

– “Uma parte essencial do encontro ensaístico, como caracterizado por Graham Good, ‘almeja (…) preservar algo do processo do pensar’. O filme-ensaio, nas palavras de Godard, é ‘uma forma que pensa’ ou, segundo Phillip Lopate, (…) ‘um ensaio é uma busca para descobrir o que se pensa sobre algo'”.

– “Uma das principais características definidoras do filme-ensaio e de sua história passa a ser a obtenção de uma resposta intelectual ativa às questões e provocações que uma subjetividade não resolvida dirige ao seu público”.

– “O título de todo ensaio é precedido, em letras invisíveis, pelas palavras ‘Pensamentos ocasionados por…'” (citando Georg Lukács).

– “O pensamento ensaístico é modelado sobre o formato pergunta-resposta-pergunta iniciado como um tipo de diálogo socrático. Vista no discurso direto de segunda pessoa de muitos filmes-ensaio, a atividade dialógica do pensamento ensaístico também pode ser observada na maneira como o ensaístico assimila e pensa por meio de outras formas, incluindo a narrativa, os gêneros, as vozes líricas etc”.

– “Os melhores deles (filmes-ensaio), creio, trabalham (…) numa tradição que depende do ensaio literário e do ensaio fotográfico, que se funde com eles e que os recria dentro da dinâmica espacial e temporal específica do cinema”.

– “A maioria dos filmes-ensaio atua com um elevado grau de reflexividade, já que, seja qual for o tópico primário, o ensaístico chama a atenção para uma troca representacional entre uma subjetividade presidente, a experiência pública e o pensamento cinematográfico”.

– “Os filmes-ensaio (…) podem ser descritos como ‘inventários autobiográficos de percepções fílmicas” (citando Christa Blümlinger).

Filme-ensaio no Brasil

Um cineasta brasileiro está na origem genealógica do filme-ensaio. Alberto Cavalcanti, com seu Rien que les Heures (França, 1926), citado por Timothy Corrigan, antecipou as sinfonias de cidades que incluiriam Berlim, Sinfonia da Metrópole, de Walter Ruttmann, e O Homem com a Câmera, de Dziga Vertov, este um paradigma do ensaio refrativo (como Corrigan se refere aos filmes-ensaio que interrogam a si próprios ou a outros filmes). Patricia Rebello defende essa condição para o filme de Cavalcanti, alegando que ele “elege como tema um objeto para transformá-lo em ideia” e “inaugura uma reflexão que está no âmago da escrita ensaística”. Ela exemplifica: “E dando sequência à tradição já consolidada no ensaio literário, o filme se desdobra em citações ao próprio cinema, na integração de referências externas, bem como de elementos estrangeiros à materialidade fílmica (como os souvenires no começo do filme, ou a interferência do extracampo, representada pela intervenção da mão)”. E prossegue: “Mais que um documento interessado em organizar um “olhar sobre Paris”, Rien que les Heures se desenvolve como um documentário, uma organização narrativa interessada em “desorganizar” a forma como nos relacionamos com a cidade a partir da imagem, em instalar a dúvida na relação de segurança e conforto que nos acostumamos a manter com ela”. (Sob o risco do ensaio: [de]formações na história do documentário, XXII Compós, 2013)

O Brasil logo teria seus exemplares “sinfônicos”. Humberto Mauro realizou em 1928 o curta Sinfonia de Cataguases, e em 1929 apareceu o longa São Paulo, Sinfonia da Metrópole, de Adalberto Kemeny e Rudolf Rex Lustig. Embora faltem dados sobre o primeiro e sobrem evidências de que o segundo destacava a pujança e a diversidade de São Paulo, é certo que nenhum dos dois extrapolava uma função mais ilustrativa a respeito das respectivas cidades, sem portanto incidirem na forma do ensaio.

O modelo do filme ensaístico não tem ocorrências claras entre nós que sejam anteriores aos anos 1970, a partir das injeções intelectuais do Cinema Novo e da emergência de uma nova consciência crítica a respeito do próprio cinema. Para nos aproximarmos dos filmes-ensaio brasileiros, vamos recorrer a uma taxonomia apresentada por Timothy Corrigan em seu livro.

A exemplo do que fez Bill Nichols em sua Introdução ao Documentário, Corrigan distinguiu cinco “modos ensaísticos”, que poderíamos epitomizar nos seguintes termos: Retrato, Viagem, Diário, Editorial e Ensaio Refrativo. A distinção não deixa de corresponder a certos gêneros de documentário, mas é no uso da retórica subjetiva e na proeminência do pensamento sobre os fatos que o fator ensaístico se afirmará em cada filme.

Talvez falte algum rigor na maneira como absorvo certos filmes na conta do filme-ensaio. Mas a proposta é justamente de elastecer tanto quanto possível essa caracterização, até para fazer jus ao caráter aberto, inclusivo e permeável da forma ensaística.

O modo Retrato

As dessemelhanças entre o perfil de Di Cavalcanti oferecido por Glauber Rocha em Di-Glauber e o do também pintor Carlos Oswald realizado por Régis Faria em Carlos Oswald, o Poeta da Luz podem ilustrar algumas diferenças básicas entre o filme-ensaio e o documentário stricto sensu. O filme de Régis Faria lança várias flechas simultâneas: reporta sobre a vida e a obra do pintor através das vozes de terceiros, aciona as memórias do próprio Carlos Oswald por meio de vinhetas encenadas e promove uma investigação a respeito do paradeiro e do conhecimento de suas obras no Rio de Janeiro. Mesmo com tudo isso, o filme não incorpora uma voz diretamente autoral do realizador nem expande o foco de interesse para além do objeto Carlos Oswald ou, se tanto, do descaso com o patrimônio cultural. Em Di-Glauber, ao contrário, qualquer atenção à biografia ou à afirmação do valor do pintor é dinamitada pela furiosa intervenção verbal e corporal do cineasta. Partindo da morte, e não da vida, Glauber dessacraliza o culto (nos dois sentidos da palavra) e faz um filme que é puro comentário: da morte, da vida, da sua própria filmagem e da repercussão disso tudo na imprensa.

Consuelo Lins anotou a gênese desse procedimento de Glauber em Câncer, filmado em 1968 mas montado e finalizado somente em 1972: “A intervenção da voz contundente do diretor no inicio de Câncer inicia uma forma de manifestação artística que será trabalhada nas obras posteriores de Glauber e especialmente em Di-Glauber”. (O ensaio no documentário e a questão da narração em off, XVI Compós, 2007)

O filme sobre Di é ensaístico não apenas porque o autor se impõe de tal maneira, mas por uma boa série de razões. Porque amplia o sentido do fato (a morte do pintor) para uma celebração tropicalista da sobrevivência da arte. Porque cria conexões entre a obra de Di e a do próprio Glauber. Porque incorpora os mais diversos materiais numa estrutura livre e permeável. Porque não fecha sentidos nem busca verdades, usando o que nos documentários é ponto de chegada (afirmações, teses, descobertas) como ponto de partida para uma concepção revolucionária do cinema do luto.

Os retratos ensaísticos estão entre os modos mais praticados no Brasil, juntamente com os filmes-ensaio de natureza editorial, que são os relacionados a questões históricas, sociais e culturais. Uma das características mais marcantes do retrato ensaístico é uma certa fuga do personagem ao projeto de desvendar sua real identidade. Assim como o sujeito do realizador ensaístico está em crise, o seu objeto retratado também escapa às grades do documentário.

Em Pan Cinema Permanente, Carlos Nader, ao mesmo tempo que compila o muito que filmou do amigo e parceiro Waly Salomão, confessa nunca ter conseguido flagrá-lo com a câmera num momento em que ele estivesse fora do seu incansável personagem, fosse recitando seus poemas, cantando suas canções ou improvisando raciocínios surpreendentes sobre o que estivesse ao redor. Esse ensaio biográfico nasce da perspectiva de convivência entre os dois, os quais dividem a narração, mas não logra – nem, a rigor, pretende – atingir a intimidade ou fornecer um perfil totalizante de Waly. O filme, no dizer de Ilana Feldman, “explora a radical opacidade que se instala entre o poeta, a câmera e o mundo, ao mesmo tempo em que parte de uma busca, quase romântica, pela verdade da imagem, uma imagem que terá de ser não-performática – busca que, desde o início, se revelará fracassada” (Ensaios do Real, org. Cezar Migliorin).

Carlos Nader, eminente ensaísta cinematográfico, conviveu também ao longo de muitos anos com o caminhoneiro que protagoniza seu curta O Fim da Viagem e o longa Homem Comum. Neste último, o humilde motorista tem sua história conectada com os personagens do clássico A Palavra, de Carl Dreyer, mediante uma incisiva intervenção do autor, aqui reconfigurado de documentarista em docomentarista. Mesmo sem reduzir o caminhoneiro a mero pretexto, Nader parte dele para relacionar o trivial e o sublime, o prosaico da vida e o transcendental do cinema em seu poder de manipular o tempo e até fazer ressurgirem os mortos.

No curta Esta Não é a sua Vida, Jorge Furtado demarcou as limitações do documentarista na apreensão do seu personagem. Ao escolher como protagonista uma mulher absolutamente comum, ele conduziu o filme como a meditação de um cineasta a respeito de seu ofício. A incapacidade de compreender em profundidade (“Eu não sei quem você é”) e a abordagem do que parece ser o mais banal possível (“Noeli é uma pessoa comum. Mas não existem pessoas comuns”) fizeram com que esse curta reinstalasse a reflexividade no documentário brasileiro em sua época (1991) e o caracterizam como um ensaio sobre o retratismo cinematográfico. Como vários outros filmes-ensaio desse modo Retrato, Esta não é a sua Vida se refere ao cinema, filiando-se também e portanto ao que Timothy Corrigan chama de modo Refrativo.

O personagem em fuga caracteriza três importantes ensaios fílmicos dos anos 2000: 500 Almas, Santiago e Jogo de Cena. Em cada um deles, a obliteração do personagem é discutida ou encenada de uma maneira diferente. Vejamos como isso se dá.

500 Almas foi apresentado pelo diretor Joel Pizzini como um filme “etnopoético” sobre o resgate linguístico, cultural e pessoal do que remanesceu da tribo dos guatós, índios que habitam o Pantanal matogrossense. Pizzini utiliza vozes substitutas de etnógrafos, linguistas, escritores e atores para contestar a hipótese do desaparecimento. No plano do hipertexto, liga o destino dos guatós à tradição protecionista de Rondon, às discussões coloniais sobre a identidade espiritual dos índios (representada por trechos da peça A Controvérsia, de Jean-Claude Carrière), ao interesse romântico dos alemães pela vida natural (Siegfried, Goethe) e até aos arquétipos bíblicos da comunicação (a Torre de Babel). Os poucos guatós ainda existentes, ao mesmo tempo que reafirmam a sobrevivência da nação, representam a grande ausência, o grande apagamento cultural que já tinha levado a tribo a ser considerada extinta.

Em Santiago, o mordomo dos Moreira Salles é um personagem que também ressurge de um desaparecimento, na verdade um duplo desaparecimento. Como empregado, ele sempre esteve na obscuridade do ofício. Mesmo depois de João Moreira Salles ter filmado o seu perfil, o material ficou por 13 anos ocultado até que aparecesse como mote de um filme-ensaio sobre o mordomo e o cineasta. Santiago ilustra à perfeição o que Timothy Corrigan diz a respeito do sujeito ensaístico: “um eu que está continuamente no processo de investigar-se e transformar-se”. Para João Moreira Salles, a retomada do material bruto de Santiago é ferramenta de uma observação de si próprio como documentarista, antes e depois de certas tomadas de consciência. Ele usa um híbrido de voz própria e voz substituta (a do irmão) para refletir sobre o seu projeto inicial. O mordomo, então ainda vivo, era um personagem a ocultar tanto quanto a revelar.

Santiago vence quando confessa o próprio fracasso e reconstitui seus erros fundamentais. Ao discorrer sobre o modo Refrativo, Corrigan vai afirmar: “Esse pensar ou repensar por meio de reconstituições atua para determinar a verdade, falsidade ou simplesmente o significado do acontecimento”. Santiago transforma o que seria um perfil documental em um ensaio sobre a natureza e a ética do documentário.

A operação levada a termo por Jogo de Cena com suas personagens é igualmente complexa. A autenticidade dos relatos escorrega por todos os lados quando o filme confunde as donas das histórias com atrizes que fingem ser elas, ou ainda as histórias interpretadas com as de fato vividas pelas atrizes. A ideia de personagem entra em crise para o espectador, que é forçado a abstraí-la para considerar apenas o conteúdo dos relatos, descolados de seus supostos sujeitos. Embora não haja uma voz ensaística a encaminhar as ideias do filme sobre verdade e representação, uma voz se produz na mente do espectador. Jogo de Cena propõe, então, o espectador ensaístico, seja atuando no subtexto das falas do filme, seja em conjunto com as atrizes quando estas interrompem a representação para comentarem o seu trabalho diante da câmera.

O personagem do filme ensaístico pode estar não exatamente em crise, mas enredado em sua própria caracterização, como é o caso do detetive Jamil Warwar no curta O Inspetor, de Arthur Omar. Detetive e cineasta dividem os comentários sobre um artista do disfarce que protagoniza um ensaio a respeito de violência, simulação e sexualidade. Arthur Omar não persegue a definição do personagem, mas sua desdefinição em meio aos muitos disfarces. O Inspetor vê, através de Warwar, mais uma vez, a impossibilidade de enfeixar em um filme as muitas faces de uma personalidade (“Qualquer filme sobre ele é uma maneira de falsear sua identidade”, admite o docomentarista).

Um caso peculiar neste subgênero é o do curta Entre Imagens – Intervalos, de André Fratti Costa e Reinaldo Cardenuto. Para jogar luz sobre uma figura pouco conhecida – o artista plástico e ativista político Antonio Benetazzo, morto pela ditadura -, eles investiram nos conceitos de lacuna e incompletude. Partiram de uma única imagem em movimento disponível de Benetazzo, figurante em poucos segundos no longa Anuska, Manequim e Mulher, de 1968, e, mediante um texto de narração digressivo e meditativo, caminharam pela escassez de imagens, o desmentido de versões e o mistério da obra inacabada. O princípio da colagem, caro ao trabalho do artista, e a ideia de ocultamento, tipica do militante, fornecem o eixo formal para relembrar o homem e resgatar sua obra sem o aparato do documentário convencional.

Retratos de família

Documentários de cunho familiar, muitos deles de caráter confessional ou investigativo, podem adquirir feições ensaísticas quando investem mais em perguntas que em respostas, pautam-se pelo discurso da subjetividade inquisidora, abarcam ideias que extrapolam o círculo daquela família específica e/ou incorporam certa diversidade de materiais numa escrita audiovisual característica do ensaio.

Tomemos o curta Seams, de Karim Aïnouz, finalizado em Nova York, em 1993. O objeto central da documentação são sua avó e quatro tias-avós, pelas quais o diretor foi criado no Ceará. Entrevistadas por Karim, as velhas senhoras falam sobre sua vida afetiva, o baixo conceito em que têm os homens e o casamento, o desdém com que veem a noção de amor romântico. O salto de Seams para o campo do ensaio se dá pela costura (“seams”) desses depoimentos a uma dissertação do autor a respeito do machismo que domina as relações de gênero no Nordeste brasileiro, enunciada pela voz substituta, em inglês, do ator Fernando Alves Pinto e ilustrada por imagens de arquivo e fotos familiares. E ainda pela inserção de vinhetas encenadas para uma história contada pela avó. Assim, ao supostamente se dirigir a um espectador estrangeiro em tom ironicamente didático, Karim toma uma falsa distância do tema e da sua própria confissão de homossexualidade, deixada para a última frase do comentário.

O sujeito ensaístico na relação com a família tem um exemplo luminoso em Elena, de Petra Costa. A fragmentação do eu é explicitada no espelhamento entre as três mulheres do filme: Petra, a irmã que tirou a vida muito jovem e a mãe – sem contar a Ofélia simbólica que também o frequenta. Elena cria uma trama em que os traumas familiares, o desejo de representação, a superação pela arte e a resistência à ditadura militar se entrelaçam da mesma maneira como as cenas domésticas se mesclam à busca atual e aos ecos de Elena realojados em Petra. Não se trata somente de relembrar Elena, mas de conduzir essa memória num fluxo mental em que as subjetividades se confundem e o lembrar é tão forte quanto a necessidade de esquecer.

A relação entre pais e filhos já deu margem a alguns exemplos interessantes de documentários que se avizinham do formato ensaístico. Em Rocha que Voa, Eryk Rocha recolhe os vestígios da passagem de Glauber por Cuba em 1971-72 e faz disso uma exploração sobre a energia comum que circulava nas veias de uma cultura terceiro-mundista e aproximava o Cinema Novo brasileiro do cinema que emergiu da Revolução Cubana. Em lugar da exposição metódica de ideias, temos um jorro que de alguma forma lembra o estilo glauberiano. A narrativa assume um aspecto de colagem barroca, cheia de imagens desfocadas, tremidas ou estouradas no grão da película ou no pixel do vídeo, que parecem reivindicar um valor tanto poético quanto de informação. A edição é rica em associações críticas e paralelos elucidativos. À época do lançamento, surpreendeu em Rocha que Voa justamente a ausência de uma voz em primeira pessoa. Não era um filme sobre um filho que recolhe as memórias da presença do pai famoso num território de exílio, mas apenas o resultado desse trabalho. No entanto, era sim um filme pessoal e ensaístico no qual o corpo e a voz do autor eram substituídos por uma presença constitutiva: a forma pessoal como Eryk tecia os fios do tapete. Como bem notou Consuelo Lins, Rocha que Voa “retoma, de certo modo, a postura ensaística de Di-Glauber e intensifica a mistura, a montagem, a colagem, que agora abarca diferentes suportes.” (Filmar o Real)

Numa conduta oposta, Flavia Castro e Tata Amaral, respectivamente em Diário de uma Busca e O Rei do Carimã, adotavam a plena presença no quadro, na condição de protagonistas, para investigar o destino dos seus pais já falecidos. Apesar do título, Diário de uma Busca não se caracteriza como um diário, mas como a crônica de uma procura. Flavia constrói seu filme a partir de uma série de perguntas sobre a vida e as circunstâncias da morte de seu pai, um militante comunista, durante a ditadura. Essa subjetividade em busca de dados que a preencham vai confrontar-se com a insuficiência do cinema para tal. Não só do cinema, mas de qualquer investigação que almeje suturar perdas para além de uma dimensão fragilmente simbólica.

Em O Rei do Carimã, Tata Amaral revolve o passado do pai e se propõe a redimi-lo judicialmente de uma acusação de estelionato. O filme empreende duas pesquisas em paralelo: uma objetiva, sobre a história não revelada do pai; e outra subjetiva, sobre a forma como um filme poderia dar conta de tarefa tão incomum. Para essa segunda pesquisa, ela conta com a interlocução do crítico Jean-Claude Bernardet numa consultoria artística que acaba deslizando para uma espécie de psicanálise do documentarista envolvido num projeto de cunho familiar.

Carlos Nader desenvolveu um interessante raciocínio poético a respeito da hereditariedade no vídeo Concepção. Ele escalou a si próprio, a sua mãe, a mulher e o filho recém-nascido para investigar o mistério da concepção no sentido de que ela faz o interior transcender para o exterior e o entranho passar a ser estranho. Que aproximação pode ser feita entre a concepção de uma vida e de um vídeo quando se filma no extremo da intimidade, que é a câmera invadindo o próprio corpo das pessoas? Esse trabalho dialoga com outro vídeo do autor, que leva o seu nome, Carlos Nader, e trata de identidade. A imagem de Nader falando para a câmera – e prometendo contar o maior segredo da sua vida – se junta à de outras pessoas comentando sobre a percepção de si mesmas, uso de máscaras, transformações de identidade, etc. Nesses ensaios curtos, Nader opera como numa galeria de espelhos, enfrentando a multiplicidade de perspectivas que a condição contemporânea oferece ao indivíduo.

Ainda no domínio do retrato ensaístico de família, Diário de Sintra, de Paula Gaitán, ocupa um espaço de destaque pela variedade de recursos que mobiliza. Deixarei, porém, para examiná-lo mais adiante no âmbito do modo Viagem, que pode ocasionar uma leitura mais fértil.

Prefiro concluir esse segmento com algumas anotações sobre filmes de Julio Bressane, que caracterizam o retratismo ensaístico ficcional, categoria ainda mais rara no cinema brasileiro. Em filmes como Tabu (Lamartine Babo e Oswald de Andrade), O Mandarim (Mário Reis), São Jerônimo e Dias de Nietzsche em Turim, Bressane faz os personagens célebres subsumirem ao universo de suas respectivas ideias e cria o que podemos chamar de documentários da imaginação. Nesses perfis ou narrativas de encontros ou viagens, é frequente que o fluxo de pensamentos predomine de longe sobre a função narrativa.

São Jerônimo, um dos mais brilhantes trabalhos do realizador nesse campo, cuida para que toda informação sobre o doutor da Igreja reverta para ilustrar uma metafísica do conhecimento, aqui tomado enquanto voz e luz. A intercessão da luz pela matéria, ocasionadora dos eclipses, é frequentemente citada como metáfora dos eventos que obscurecem e em seguida restituem ao mundo sua clareza. Bressane vê o trabalho do santo tradutor como o fim de um longo eclipse, que iria formar o imaginário do homem tal qual hoje nos conhecemos. E também como o padroeiro das traduções ambiciosas, que repudiava a literalidade medíocre e perseguia não a versão das palavras, mas o espírito da obra. Tradução, aqui, dizia respeito também à conversão entre mídias praticada pelo próprio cineasta: da literatura e da música para o cinema. Ser fiel a alguma coisa não é limitar-se aos seus contornos, mas buscar todos os seus ecos e emanações, mesmo os mais longínquos. A adaptação ensaística seria um conceito interessante para esses procedimentos.

É o que se vê em Dias de Nietzsche em Turim, em que Bressane explora a associação nietzscheana entre caminhar e pensar. A partir das anotações do filósofo durante a sua estada de nove meses na cidade italiana, Bressane concebeu um travelogue intelectual e arquitetônico para sugerir o processo de construção das ideias nietzscheanas. A estrutura do filme parece obedecer ao princípio de que, ao caminharmos, nosso fluxo de pensamentos não guarda relação direta com nossos passos. Tudo funciona, então, como se víssemos um filme e ouvíssemos outro. A relação entre os dois só ocasionalmente é contínua. No mais das vezes, o sentido está no meio. Quando Nietzsche entra numa biblioteca, por exemplo, escutamos o som do vento – o vento das ideias, como mencionará o filósofo logo adiante.

Os ensaios ficcionais bressaneanos se caracterizam por colocar em cena o pensamento e a obra de seus retratados, mas também por propor uma releitura constante dos seus temas através das ferramentas do audiovisual. E ainda por estabelecer pontes imaginárias entre personagens estrangeiros e um Brasil que não pode faltar como lugar de onde parte esse olhar. São Jerônimo e os lajedos do Nordeste, Nietzsche e o Rio de Janeiro – é o cinema brasileiro se apropriando daqueles signos num hipertexto ageográfico e atemporal.

O modo Diário

A forma do diário e da correspondência está nas origens mesmo do ensaio literário, uma vez que ele se posiciona como uma reflexão do autor desenvolvida ao longo de determinado tempo ou dirigida a alguém. É nessa acepção diarística que Timothy Corrigan insere Rien que les Heures, os diários fílmicos de Jonas Mekas, os filmes em série como 7 Up até 49 Up, de Michael Apted, e Caro Diário, de Nanni Moretti. Ele define o diário ensaístico como “o registro do sujeito disperso e reflexivo ao longo de uma paisagem temporalmente disposta em camadas”. Logo, enquanto no modo Retrato o foco está no personagem, no modo Diário está no tempo.

Esta é uma das modalidades menos praticadas entre os realizadores brasileiros. Embora diversos filmes se atribuam o título de “diários”, poucos se apresentam como ensaios construídos no – ou a respeito do – tempo. A duração de uma gravidez demarca Otto, de Cao Guimarães, meditação poética sobre o encontro entre Cao e sua mulher Florência. O filme cobre desde a concepção da criança, durante uma viagem à Turquia, até o parto em Belo Horizonte. Em lugar de uma documentação de fatos, temos uma sucessão impressionista de microperformances, vinhetas íntimas e imagens alusivas à germinação e à gestação. As intervenções esparsas da voz de Cao descrevem Florência e o ciclo temporal compreendido entre o primeiro encontro dos dois e o nascimento do filho Otto.

Em linha semelhante, Arthur Omar realizou em 1999 o vídeo Notas do Céu e do Inferno. Diante da possibilidade de não ver a chegada do ano 2000, devido a um delicado problema de saúde, Arthur se lançou à realização de um “vídeo-diário”, no qual incorporou livremente cenas domésticas com a mulher, Ivana Bentes, filmagens do próprio corpo e do tratamento médico, imagens colhidas de sua janela, uma visita à antiga casa da família e flashes da sua obra. O ano 2000 era visto como uma efeméride em vários níveis: seu filho faria 20 anos, sua mulher 30, sua mãe 80, sua avó 100 e o Brasil, 500. Como o breve instante fotográfico que eterniza uma imagem, Arthur articula o momento fugidio e o fluxo do tempo, o minuto e o milênio, o passado de sua família e o horizonte do futuro que ele talvez não lograsse alcançar. Eis um exemplo da “obsessão com o timing da subjetividade como definição da experiência”, que Timothy Corrigan cita a respeito de Elephant, de Alan Clarke. O tempo histórico é submetido ao tempo da experiência subjetiva, resultando daí um pensamento que se expressa através do aparato audiovisual.

Uma particularidade do diário ensaístico é a utilização menos convencional de material doméstico, como fotos e filmes caseiros. Otto e Notas do Céu e do Inferno são típicos filmes caseiros “de artista”. Um caso radical desse dispositivo é o curta A Festa e os Cães, em que Leonardo Mouramateus recupera as fotos feitas com uma pequena câmera analógica, desde o primeiro click no ato da compra. São imagens de bastidores de filmagem, festas com amigos, cenas urbanas noturnas e os cães da sua rua. As vozes do diretor e de três amigos situam essas fotos impressas, que vão sendo colocadas uma a uma, manualmente, diante da câmera. Aos poucos, o comentário vai se distanciando delas e reconstituindo uma vivência individual e coletiva maior, da qual as imagens passam a ser, elas sim, o comentário. Ao fim e ao cabo, o curta especula sobre os vestígios de memória que as fotos podem reter de um cotidiano jovem marcado pela dissipação e o esquecimento. O tempo cronológico do filme se limita à vida útil da tal câmera fotográfica.

Kiko Goifman tratou a busca cinematográfica da identidade de sua mãe biológica como um diário de investigação em 33. Foram, ao menos nominalmente, 33 dias de ação, entre conversas com parentes, conhecidos e detetives, e interação com o público e a mídia através das redes sociais e da televisão. O documentário fazia-se contaminar por uma estética e um tom definidos de filme noir, ao mesmo tempo que se abria para intervenções não inteiramente controladas pelo realizador. 33 pode não ser um filme-ensaio na plena acepção da palavra, uma vez que se aferra a uma investigação específica, mas contém elementos que o aproximam da expressão ensaística, tais como: a subjetividade do diretor está empenhada numa busca a respeito de si mesmo, envolvida em hesitações, dúvidas e suposições; o filme permite diversas ilações a respeito de adoção e status familiar numa sociedade habitualmente tradicionalista como a mineira; e por fim, as avenidas que Goifman abriu para um modelo de investigação documental expandida, transmídia e cinematograficamente híbrida.

Projeto semelhante foi o de Sandra Kogut em Passaporte Húngaro, no qual ela transformou o seu périplo em busca da dupla cidadania numa ampla diligência a respeito de diversos temas correlatos. As conversas com parentes, no Rio e em Budapeste, principalmente com sua avó imigrante, lhe permitiram abordar a chegada e assimilação de estrangeiros no Brasil durante a II Guerra, sem que para isso tivesse que cumprir um trajeto convencional de entrevistas e materiais de arquivo alheios. A pesquisa no Arquivo Nacional, por sua vez, trouxe à luz a memória desses aportes humanos na história do país. E a jornada da diretora por consulados em três países descortinou os bastidores burocráticos do que se entende por nacionalidade. A fragmentação do sujeito ensaístico se dá nessa condição pendular entre pátrias, heranças identitárias e lugares de residência. Em parte importante de sua obra, Sandra trabalha na tensão entre sua nacionalidade brasileira e sua vida e produção fílmica estrangeiras. Seus trabalhos, numa fronteira tênue entre ficção, realidade, videoarte e performance, lançam um olhar descentrado sobre lugares e pessoas.

O modo Viagem

Tanto Passaporte Húngaro e 33 quanto Diário de uma Busca e 500 Almas, já citados aqui, são filmes que se realizam em grande parte como viagens de seus diretores à procura de informações, vestígios ou realizações pessoais. Timothy Corrigan cita os “encontros experienciais” nos “espaços do mundo” como os que “testam e remoldam mais geralmente o sujeito ensaístico”, esse “eu que está continuamente no processo de investigar-se e transformar-se”.

Entre as viagens ensaísticas realizadas pelo cinema brasileiro seria interessante considerar os exemplos de Pachamama, de Eryk Rocha, Diário de Sintra, de Paula Gaitán, e os vídeos Framed By Curtains e Neptune’s Choice, de Eder Santos, e The Eye Land, de Cao Guimarães. Em cada um deles, o travelogue atende a objetivos diferentes, mas sempre submetendo a subjetividade do realizador ao processo do deslocamento e da desterritorialização.

“Não há limite entre viagem e filme”, diz a voz de Eryk Rocha logo no início de Pachamama. A ideia de movimento é reiterada desde as imagens de abertura (asfalto em velocidade) e através de estradas, serras e cidades do centro-oeste e norte brasileiro, do Peru e da Bolívia. Eryk empunha a câmera e comenta sobre aquilo que procura e o que encontra: “saber o que estava acontecendo no Peru e na Bolívia” em janeiro de 2007. Ele recolhe sinais de uma América do Sul em transformação a partir da chegada da esquerda ao governo de alguns países. Não há destino fixo predeterminado, mas um dispositivo que se lança no simples ato de viajar. A trajetória também se realiza no tempo, pontuando possíveis vínculos entre o presente em mutação e o passado ancestral e mítico do continente.

Quando se move, Pachamama é dominado pela exuberância da natureza. Quando se detém, são os rostos que falam, com palavras ou silêncios nos quais se podem ler muitos significados. A edição sonora de Aurélio Dias forja ritmos e atmosferas mobilizadoras, abrindo o campo de representação das imagens para além do visível. Como em Rocha que Voa, Eryk mantém-se oralmente discreto, limitando-se à narração introdutória e a uma crise respiratória que o acometeu no interior de uma mina na Bolívia. De resto, são os encontros do caminho que vão forjando um pensamento sobre a atualidade do continente e identificando resistências à retomada de suas raízes e aspirações populares.

Uma viagem de retorno a Portugal é o que constitui Diário de Sintra, de Paula Gaitán – que, junto a Glauber e Eryk Rocha, formam talvez a família mais ensaística do cinema brasileiro. Na verdade não há diário, mas basicamente um travelogue por Lisboa, algumas aldeias e Sintra, a cidade onde Paula e Glauber viveram com os filhos nos últimos meses da vida dele. A voz meditativa da diretora introduz frases esparsas e trechos de poemas, mais numa invocação que numa evocação do “passado extinto, real ou imaginário”. Essa voz vai aos poucos se mesclar com a de Glauber em áudios de Sintra, ajudando a trazer de volta os fragmentos de memória, que vão se dispondo em camadas de tempo, de imagens e de sons, como que manipulados pelas mãos da diretora que substitui o seu rosto dentro do quadro. Soma-se também a voz de Maíra, filha de uma união posterior de Paula, como mais uma indicação do acúmulo de temporalidades. Às cenas típicas de viagem vão se juntar filmagens domésticas da família na Sintra de 1981, feitas por Paula em Super 8 quase 20 anos antes, além de “instalações” em que fotos de Glauber e da família, assim como livros e escritos, são postos em cena na natureza, vivificados pelo vento e a luz de Portugal. E vemos ainda a apresentação dessas fotos a pessoas da região em busca da lembrança ou do desconhecimento delas a respeito de Glauber.

São essas as “atividades intelectuais e subjetivas que mapeiam o drama da viagem ensaística”, a que se refere Timothy Corrigan em seu livro. Um drama de verdade, pois ao mesmo tempo que mobiliza o aparato cinematográfico em direção àquelas memórias (a casa, a paisagem, as pessoas), Diário de Sintra assume-se como tentativa de apreensão fadada ao fracasso. Tudo no filme foge quase simultaneamente a seu aparecimento, sem que as mãos de Paula consigam reter. Por mais que os tempos se sobreponham, há uma barreira intransponível entre eles. E um ponto de inflexão bem demarcado, que é a morte de Glauber, magnificamente representada nas cenas finais. Mesmo a voz de Paula é uma voz à deriva, um tanto desencarnada, ou, como definiu Cléber Eduardo, “uma primeira pessoa que se dissolve ao ver e falar” (Diário de Sintra – Reflexões sobre o filme de Paula Gaitán, org. Rodrigo de Oliveira).

Mais identificados com o ensaio experimental poético, as “video letters” de Eder Santos procuram interpretar os fluxos das duas cidades a partir de elementos históricos ou míticos, conjugados com metáforas audiovisuais. Em Framed By Curtains, gravada em Hong Kong, Eder explora os muitos sentidos da palavra “frame” (fotograma, videograma, moldura, enquadramento, incriminação, nominação e, em última instância, colonização). A megalópole em 1999, prestes a ser devolvida à China, é vista principalmente através dos seus meios de transporte, num movimento constante que, paradoxalmente, é composto de quadros, pequenas prisões que aludem a sua história colonial. Neptune’s Choice, por sua vez, é ambientada em Amsterdã e calcada no papel da água na fundação e constituição da cidade. Nos dois vídeos, as imagens, alheias a qualquer intenção descritiva, parecem aspirar à mesma natureza abstrata da trilha musical. O impulso ensaístico se dá através de um olhar estrangeiro que é expresso não em narração, mas em frases inscritas na tela, como um pensamento poético que organiza impressões em torno de palavras polissêmicas: “frame”, “water”, “war”, “gold”.

Eder Santos já havia abordado a pressa das imagens de turismo no vídeo experimental Europa em Cinco Minutos. Mais recentemente, Marcelo Pedroso enfocou o tema no curta Aeroporto, de alguma forma tributário do agenciamento de fotos fixas de La Jeté, de Chris Marker. Uma moça toma café num aeroporto e observa os passantes. Daí emergem diversas impressões de viagem ilustradas por fotos (e alguns poucos filmes) de locais no Brasil, Peru, Califórnia e Austrália. As vozes dos viajantes compõem uma diversidade de experiências do que seja estar fora de seu lugar de origem, ou como turista de poucos dias, ou como residente temporário.

Cao Guimarães inicia seu The Eye Land com uma longa epígrafe de Nathaniel Hawthorne sobre a sensação de não pertencimento daqueles que passam muito tempo em terra estrangeira e não conseguem mais reconhecer as qualidades do seu “ar nativo”. Seguem-se imagens em fuga de deslocamentos aéreos e da cidade de Londres, sempre com definição precária e acompanhadas do aúdio de recados de amigos distantes em secretária eletrônica e criações sonoras de O Grivo. Também aqui, a subjetividade do autor está alocada no olhar lançado aos lugares, sem qualquer outra asserção pessoal. Em dado momento, o próprio Cao é visto caminhando com os olhos vendados, num eco de seu projeto Histórias do Não Ver. Nesse trabalho, Cao pedia a pessoas que o levassem de olhos vendados para algum local desconhecido e lá fazia fotografias “cegas”, que depois foram expostas em videoinstalação e livro.

Os filmes-ensaio de viagem têm, portanto, uma organização bastante distinta dos filmes de viagem convencionais, que se pautam pela enumeração serial e os sensos de objetivo, descrição ou desfrute. Timothy Corrigan os vê como “digressões perambulantes”, mapeamentos de uma viagem incompleta, “de uma maneira que também descreve ou sugere como a excursão alterou e desestabilizou fundamentalmente o sujeito viajante”.

O modo Editorial

Timothy Corrigan situa os filmes-ensaio editoriais numa “herança que remonta aos sermões e avança pelos editoriais de jornais e blogs da internet”. São “investigações sobre a verdade e a ética dos acontecimentos e do comportamento contemporâneo”. Diante deles, o espectador não recebe informações organizadas nem simplesmente testemunha uma investigação, mas é estimulado a ser um “sujeito pensante”, fazer julgamentos e promover “uma ação intelectual e concreta no desenrolar histórico dos acontecimentos”.

Com sua forte tradição no documentário social e de intervenção, o Brasil tem, naturalmente, alguns grandes exemplos de ensaios do gênero. Um dos mais antigos que me ocorrem é O País de São Saruê, concluído por Vladimir Carvalho em 1970. Ao abordar as raízes profundas da miséria nordestina e o caráter utópico da sensibilidade popular, Vladimir adotou uma série de procedimentos inovadores que o afastaram do âmbito do cinejornalismo. A estrutura do filme é dividida em atos, que se referem aos ciclos dos animais, do algodão e dos minérios. A narração é disseminada pelo narrador historiador-etnógrafo, os entrevistados, as canções, os aboios e os poemas, todos eles substitutos da voz do diretor. Vladimir, entretanto, assim como seu irmão Walter Carvalho – então assistente de câmera – entram em cena em algumas ocasiões para borrar os limites entre documentário e ficção.

O País de São Saruê expande seu objeto imediato (a penúria do homem do campo) para uma reflexão histórica, mítica e lírica sobre a estagnação econômica, o imobilismo social e a colonização ideológica da região. Evidencia ainda o contraste entre os delírios de fartura e a realidade de exploração. Além disso, o filme tinha uma dimensão estética que também podia se dizer ensaística. Na linha de Aruanda e Vidas Secas, propunha de maneira ainda mais radical uma linguagem do sertão, marcada pelo rústico, o lento e o desestetizado, em paralelo a uma oralidade rica e musical.

Outra experiência muito sugestiva de Vladimir Carvalho é Brasília Segundo Feldman, em que as imagens filmadas por um visitante americano durante a construção de Brasília foram comentadas posteriormente por um artista e um operário que viveram o processo. Trata-se aqui da apropriação ensaística de um material que originalmente se prestava a outro propósito. As cenas registradas 20 anos antes ganhavam uma instabilidade no seu sentido original ao serem submetidas ao olhar retrospectivo e também à consciência de classe dos dois homens. Isso ilustra bem o que Corrigan chama de “o passado assimilado por intermédio de uma perspectiva pessoal”. Nesse caso de imagens recuperadas, segundo ele, “o filme-ensaio geralmente ativa ou reativa subjetivamente os acontecimentos da história como ‘uma estética de ruínas’ e uma ‘contra-história'” (citando Adrian Danks, The Global Art of Found Footage).

 

No âmbito do documentário político, alguns trabalhos de Silvio Tendler possuem traços ensaísticos destacáveis. Um deles é o panorâmico Utopia e Barbárie, movido pelo inconformismo do diretor para com os rumos que o pensamento utópico tomou na atualidade. Embora lide principalmente com depoimentos e materiais de arquivo sobre o destino das ideias de esquerda desde a II Guerra Mundial até os dias de hoje (2009), Tendler impregna essa compilação de uma carga pessoal de esperanças e decepções, sobretudo nos poucos momentos em que coloca a si mesmo como instância enunciadora. O caso de Encontro com Milton Santos – O Mundo Global Visto do Lado de Cá é um tanto diverso, uma vez que são as falas do geógrafo que conduzem a análise. Tendler toma o discurso de Milton Santos não como produção individual de um intelectual, mas como eixo de uma ampla reflexão sobre o estado das coisas na América do Sul. Em vez da biografia de Milton, temos uma “biografia” da ideia de globalização, desde sua infância na era colonialista até a maturidade atual.

O que em parte compromete a qualidade ensaística nos filmes de Tendler é o teor de certezas explícito ou subjacente. À falta de um caráter mais especulativo sobre os temas em pauta, ficamos na fronteira entre o ensaio e a tese. Algo semelhante acontece com os vídeos políticos de Luiz Rosemberg Filho, eivados de um discurso acusatório contra os males do capitalismo, do consumo, da televisão, do espetáculo, da religião, da moralidade e da ordem. Ainda assim, esses pequenos editoriais pessoais, frutos de um período em que o cineasta esteve afastado da produção cinematográfica, contêm uma significativa contribuição para o filme-ensaio brasileiro.

Rosemberg parte geralmente de textos seus, que são lidos por ele mesmo ou por vozes substitutas (com frequência femininas, o que gera um inevitável distanciamento) e ilustrados por imagens da TV, pelas colagens gráficas que ele cria habitualmente, por notícias de jornal e outros ícones alusivos ao cinema e às categorias contra as quais se insurge. O princípio da colagem é constitutivo desses trabalhos, aí incluídas as abundantes citações a seus heróis intelectuais e artísticos, entre os quais Godard, Welles, Glauber, Benjamin, Foucault, Picasso, etc. Os textos às vezes transbordam da banda sonora para as inscrições na tela. Todo esse aparato se presta, no fundo, a uma crítica da imagem contemporânea, apontada como um instrumento de acomodação ao sistema industrial capitalista militar. O termo aparece obsessivamente nos títulos de seus video-ensaios, já a partir do filme experimental Imagens, de 1972: Imagens e Imagens, Nossas Imagens, O Discurso das Imagens. Nesse último, uma atriz fala como “a imagem” em primeira pessoa, hoje vulgarizada e desconstruída pelo dinheiro, mas orgulhosa de já ter servido a Rembrandt e Visconti.

A imagem do Brasil, em projetos de filme-ensaio totalizante, pode ser examinada através de dois títulos de ficção bastante afastados entre si, no tempo e na proposta: A Idade da Terra (1980), de Glauber Rocha, e Brasil S.A.(2014), de Marcelo Pedroso.

Operístico, muralístico e selvagem, A Idade da Terra trazia a voz de Glauber à frente do cortejo de imagens alegóricas sobre o espírito da nossa nacionalidade. Religião e revolução, mito e sensualidade, gestos e gritos cortavam a paisagem do país para aludir ao passado e ao futuro. Encenações e discurso direto se mesclavam para falar de imperialismo, massacre dos índios, catolicismo popular, militarismo revolucionário, terrorismo de estado, prostituição da alta burguesia e rebelião das mulheres, entre outros itens. A ausência de linha narrativa, as repetições exaustivas e todos os excessos e deficiências do filme como que retiravam o espectador da acomodação dramatúrgica para sintonizá-lo, quando possível, com o pensamento do diretor. Glauber rejeitava até mesmo as condutas experimentais de seus filmes anteriores, mas que ainda guardavam um vínculo com a ideia de relato, para abraçar, como em Câncer, a livre articulação de ideias, a veia da ficção ensaística que põe em cena um fluxo de pensamentos audio-e-visuais.

Passando a Brasil S.A., vamos ter, ao contrário, um filme sem palavras, de mise-en-scène rigorosamente organizada, mas em que as ideias sobre o país também são veiculadas alegoricamente e almejam à multitemporalidade. Pedroso oferece uma leitura crítica do modelo de desenvolvimento adotado pelo Brasil, já a partir da inscrição de “ordem e progresso” na bandeira e na nossa história republicana. Estão na mira, entre tantos alvos, o orgulho e a vaidade de um “Brasil grande” que se perpetua no tempo como sintoma independente, a terceirização da vida por uma classe média indolente e consumista, o eclipsamento da realidade pelo nacionalismo e o entorpecimento das vontades através da religião. O ensaístico em Brasil S.A. se manifesta na pura articulação crítica de suas imagens, que satirizam a grandiloquência da propaganda política e do audiovisual institucional.

Exemplar como ensaio de editorialização de um episódio de violência urbana é o já clássico Ônibus 174, de José Padilha. Através de uma investigação factual, sociológica e semiológica, o fait-divers (o sequestro de um ônibus por um jovem delinquente, com seu desfecho trágico) ganhou contornos de diagnóstico do abismo social brasileiro e dos desejos de uma adolescência encurralada na ausência de perspectivas. Consideramos aqui a vertente ensaística que investe no esforço de compreender uma realidade aparentemente absurda. Os vários dispositivos acionados por Padilha (depoimentos analíticos e testemunhais, reexame dos materiais gravados publicamente, busca de antecedentes) empenham-se na dissecação da ocorrência, na busca de seus sentidos profundos, invisíveis no consumo de atualidades ou denegados pela consciência de quem assistira ao sequestro como mero espectador.

Outro fato relativamente corriqueiro – os donos de um depósito de lixo davam prioridade aos porcos sobre os seres humanos na cata das sobras – teve seu caráter absurdo revelado no curta Ilha das Flores, de Jorge Furtado. Utilizando um processo retórico mnemônico e reiterativo, baseado no princípio do desdobramento lógico a partir da vida útil de um tomate, Furtado levou seu raciocínio a uma conclusão implacável, dirigida a um suposto espectador extra-terrestre: os seres humanos da Ilha das Flores são inferiores aos porcos porque não têm dinheiro, nem dono.

Em linha de construção semelhante, o curta Memória, de Roberto Henkin, promoveu uma série de associações de ideias para denunciar, ao mesmo tempo, a hipocrisia eleitoral e a incúria com a memória cinematográfica. As campanhas eleitorais de Jânio Quadros à prefeitura de São Paulo e de Fernando Collor à presidência da República depunham sobre o esquecimento do passado político e a facilidade com que o eleitorado se deixava levar pelas mentiras do presente. As vassouras construídas com películas de filmes e as vassouras de Jânio faziam o elo entre os dois setores, tendo ainda os cegos como personagens de ligação simbólica. Em toda a sua extensão, Memória transcendia o valor intrínseco de suas imagens para dar forma a um fluxo de pensamento incisivo e original.

Enquanto Ilha das Flores e Memória se filiam à linha do diagnóstico social, oferecendo análises conclusivas, o curta Mato Eles?, de Sergio Bianchi, se abre numa postura irônica e eminentemente indagatória, já a partir do título.

Mato Eles? possui uma agenda dupla: é um documentário de denúncia da situação precária dos remanescentes de tribos indígenas do Paraná em 1982 e ao mesmo tempo uma sátira ao cinema etnográfico. A inquirição de um índio sobre os interesses financeiros do diretor do filme podem ter levado Bianchi a enveredar pelo caminho reflexivo, inserindo seus procedimentos de encenador na montagem final e concluindo com um chamado à exploração intelectual e comercial dos índios, “antes que eles acabem”. Além de entrevistas propositadamente afetadas, algumas encenadas mesmo, há trechos de uma aula sobre as tribos do estado, questões de múltipla escolha dirigidas ao espectador e pequenos filmes-etnográficos-dentro-do-filme, sendo um pré-existente de 1957 e dois outros paródicos da lavra de Bianchi.

A diversidade de abordagens e o tom permanente de interpelação afastam Mato Eles? da condição de simples documentário e o aproximam do espírito ensaístico. A propósito desse tipo de conduta, Corrigan cita Paul Arthur: “Os ensaios tendem a inscrever uma consciência mediadora central, que está, ela própria, envolvida no questionamento ativo de materiais e do processo de seu ordenamento, capazes de assegurar apenas verdades provisórias no final” (The Resurgence of History and the Avant-Garde Essay Film).

Se em Mato Eles? o espectador é confrontado com uma sucessão de perguntas, em Orestes ele se vê literalmente na posição de jurado. Relacionando a tragédia Oréstia de Ésquilo com o caso do Cabo Anselmo, agente infiltrado que colaborou para a morte de vários militantes de esquerda nos anos 1970, entre eles sua companheira Soledad Viedma, o filme de Rodrigo Siqueira estabelece uma discussão em vários níveis.

No nível das opiniões, vários interlocutores envolvidos com o assunto basicamente divergem de uma defensora de vítimas de violência que procura justificar os sentimentos de vingança com o discurso de salvaguarda da inocência. No nível das emoções, sessões de psicodrama (ou sociodrama) envolvem os mesmos personagens, com destaque para a filha de Soledad e suas terríveis dúvidas quanto a sua paternidade. No nível jurídico, enfim, um julgamento encenado por dois grandes advogados põe em debate a culpabilidade de um Orestes fictício – baseado no caso de Anselmo e Soledad – e por extensão o perdão aos torturadores facultado pela Lei da Anistia.

Em lugar de provar isso ou aquilo, Orestes quer levantar questões na consciência do público através do acirramento contínuo das questões entre os “atores”. Aqui cabe citar o que diz George Lukács, citado por Timothy Corrigan: “O ensaio é um julgamento, mas o elemento essencial, determinador de valor a seu respeito, não é o veredito (como ocorre no sistema), mas o processo de julgar” (On the Nature and Form of the Essay).

O modo Refrativo

Vários filmes já abordados nos modos anteriores, como Mato Eles?, Santiago, Rocha que Voa e Brasília Segundo Feldman, filiam-se também ao modo Refrativo por tratarem diretamente ou mesmo questionarem o próprio cinema. Timothy Corrigan destaca uma característica fundamental: “Em vez de atuar como comentários artísticos, o que eu denomino cinema refrativo reconstitui a arte como crítica aberta”. Esse tipo de filme-ensaio tomaria o cinema como objeto de debate teórico ou questionamento ético, ou ainda retomaria certos materiais cinematográficos na procura de reconfigurações de sentido. A intervenção do diretor-ensaísta sobre o material pré-existente (próprio ou alheio) constitui a ferramenta principal do ensaio refrativo.

Um caso bastante radical é o de Congo, o curta de Arthur Omar que nasceu junto com seu famoso texto O Antidocumentário, Provisoriamente e antecipou condutas questionadoras assumidas no seu longa Triste Trópico. O autor definiu melhor do que ninguém sua proposta ensaística: “”O filme antidocumentário teria muito mais uma função de examinar a impossibilidade de se conhecer do que tentar fornecer um conhecimento novo. Ele é um filme que alude muito mais do que propõe. Não estou propondo uma nova visão da congada, o Congo, objetivamente, não é o tema do filme, o tema é a tensão entre o conhecimento erudito e uma prática popular que está colocada em outro nível de realidade e que em última instância não se comunica. Eu quero questionar a estrutura do documentário como sendo produtor da satisfação do conhecimento, porque na verdade você só vai ter a sensação de conhecer quando aquele objeto estiver longe de ser apreendido. Eu não trato desse objeto. Trato da maneira como esse objeto é tratado por um determinado discurso. Isso é o antidocumentário – é quase um filme epistemológico.”

A postura crítica de Arthur Omar em relação ao documentário assinala uma das características mais relevantes do filme-ensaio, como repercutido no paralelo feito por Patricia Rebello: “Se o ensaio é, como afirma Adorno, uma forma literária que se revolta contra a obra maior e resiste à ideia de “obra-prima” que implica acabamento e totalidade, podemos pensar que é contra a maneira clássica de se fazer documentário que os filmes ensaísticos se constituem” (opus cit).

Em Congo, a impossibilidade de um filme dar a conhecer a congada se concretizava pela ausência de uma imagem sequer do folguedo. Tomadas “neutras” alusivas ao Brasil negro colonial eram entremeadas por intertítulos que situavam personagens e oposições dentro da luta que deu origem à congada. Uma voz de criança lia um texto de Mario de Andrade, enquanto cantos africanos, música clássica e ruídos de trabalho compunham a banda sonora. A única referência concreta ao cinema era uma foto de Os Inconfidentes, de Joaquim Pedro de Andrade, certamente como alvo de crítica a um cinema mais próximo do oficial. Congo se afirmava, assim, como um ensaio (fílmico e literário) sobre a negação tanto da apropriação ilustrativa das manifestações históricas e populares quanto do fetiche etnográfico de filmar in loco, diretamente.

Não filmar é um dispositivo frequentemente utilizado nos ensaios refrativos quando estes se compõem da compilação de cenas de outros filmes. Em São Paulo, Sinfonia e Cacofonia, o crítico e ensaísta Jean-Claude Bernardet reuniu cenas de filmes paulistas de várias épocas, nas quais a cidade é componente de destaque. O filme foi construído a partir de linhas de continuidade temática e gráfica, em blocos que ilustram o dinamismo, o caos e as neuroses urbanas, pessoas em deambulação, encontros, monólogos, o submundo, a noite, a morte. O espírito dos filmes-sinfonia dos anos 1920 era retomado numa perspectiva conjunta de cinema e cidade. No entanto, a intenção não era apresentar São Paulo ou o cinema paulista, mas identificar de que maneira a primeira afetou o segundo, produzindo uma série de padrões que se repetem e situações de exacerbação na vida dos seus personagens.

Em vez de uma cidade, Joel Pizzini escolheu uma atriz para o seu Glauces – Estudo de um Rosto. Nesse curta, pequenos trechos de filmes compõem uma espécie de atuação póstuma de Glauce Rocha. Ela contracena consigo mesma e tem sua imagem sampleada de modo a ressaltar sua incrível persona dramática. Glauces estaria na fronteira da simples compilação com o ensaio se não expandisse poeticamente sua visão da atriz para o campo da mitologia. Um parênteses meio longo: (Helena Zero, também de Pizzini, fez algo parecido com a atriz Helena Ignez, mas incluindo algumas poucas filmagens contemporâneas. A protagonista se narra entre memórias, citações literárias e musicais, além de muitas cenas dos filmes em que atuou. Cabe citar aqui os retratos ensaísticos de Paula Gaitán sobre/com as atrizes Maria Gladys e Marcélia Cartaxo – Vida e Agreste, respectivamente. São todas biografias de invenção, retratos ensaísticos em que as personagens aparecem como performers de si mesmas em meio a digressões poéticas e fantasmagorias cinematográficas).

Marcelo Masagão é autor de dois longas representativos de certa faceta do filme refrativo desprovido de filmagens próprias. Imagens icônicas do século XX, coletadas na internet e pontuadas por letreiros entre o sério e o jocoso, deram forma a Nós que Aqui Estamos por Vós Esperamos. Os mortos do século XX viravam personagens reais ou inventados numa espécie de novo “texto” cinematográfico criado a partir de velhas “palavras”. As imagens perdiam seu caráter cronológico e narrativo original e passavam a ícones de um ensaio lúdico sobre as pequenas e grandes tragédias que o cinema testemunhou.

Já em Ato, Atalho e Vento, Masagão compilou trechos de 143 filmes de ficção de épocas e procedências as mais diversas, de Méliès a Lars Von Trier. Os blocos se sucedem: viagens, aprendizados, desejos, medos, vertigem, desespero, solidão, morte… A ideia de frustração está muito presente, justificando o slogan do filme: “As coisas não saíram como havíamos planejado”. A sombra de Freud e seu O Mal-estar na Civilização está no background das intenções do diretor.

O mal-estar do telespectador brasileiro foi mensurado por Eduardo Coutinho no seu protofilme (nunca divulgado amplamente) Um Dia na Vida. O filme consiste numa seleção de trechos da programação da televisão aberta num único dia (1/10/2009). Coutinho praticava para um futuro filme sobre pilhagem e plágio, feito apenas de citações. Ao se decidir por apresentá-lo nesse estágio, ele nos ofereceu um zapping de autor, uma espécie de ensaio sem voz, ou com uma voz oculta a nos falar dos horrores do circo televisivo.

Antes de concluir, quero abordar um dos realizadores mais empenhados na aliança entre a experimentação e o ensaio, que é Carlos Adriano. Sua filmografia atesta dois campos de interesse: a investigação de personagens célebres e de procedimentos do chamado primeiro cinema. Autor de alusões ensaísticas a artistas como Vassourinha, Miécio Caffé, Militão Azevedo e R. F. Luchetti, Adriano tem uma síntese de suas procuras no único longa-metragem que fez até agora (2016), Santos Dumont: Pré-cineasta?. A partir do achado de um filmete de mutoscópio mostrando Santos Dumont no ato de explicar o funcionamento de um balão, o cineasta articula uma série de conexões poético-científicas sobre o desejo de ver e de voar.

O ponto de interrogação no título do filme explicita a intenção de especular sobre pontos de intercessão entre a aviação e o cinema, invenções praticamente simultâneas e que se namoraram intensamente durante as primeiras décadas do século XX. A curiosidade despertada pelo mutoscópio conduz à escalação de teóricos e especialistas para debaterem a found footage. A questão da nacionalidade também aparece através da história de Santos Dumont e da presença do realizador em Paris. Por fim, o aspecto afetivo entre cineasta e personagem se desdobra nas homenagens óticas prestadas ao companheiro e produtor de Adriano, Bernardo Vorobow, falecido durante a finalização do filme.

Santos Dumont: Pré-cineasta? é, portanto, um ensaio refrativo em diversos sentidos. Remonta e disseca em profundidade um material fílmico raro; analisa aspectos do próprio cinema refrativo; e tematiza poeticamente as ideias de memória, desaparição e reaparição, tão intrínsecas à matéria do cinema.

Nota final

Os modos sugeridos por Timothy Corrigan cobrem parte significativa do universo do filme-ensaio, mas não esgotam suas manifestações. Eles estão relacionados com os temas dos filmes (pessoas, vivências, viagens, fatos, cinema) e, pela sua lógica, é dos temas que decorreriam certas condutas formais. Naturalmente, como toda taxonomia, esta não atende a todas as variações encontradas, sobretudo num campo tão fértil e livre quanto o do ensaio fílmico. Para um estudo ainda mais completo, seria necessário examinar a maneira como os filmes manuseiam seus diversos materiais, como os autores se posicionam em relação aos temas e como o filme-ensaio avança para além do espectro abarcado pelos documentários não ensaísticos.

No cinema brasileiro, além dos mencionados aqui, vários outros filmes se enquadram ou se aproximam o suficiente para serem assimilados pela categoria de ensaios. Alguns deles não cabem nas modalidades levantadas por Corrigan. Cito, apenas por citar, os curtas O Som ou Tratado de Harmonia e Música Barroca Mineira, de Arthur Omar, ensaios exploratórios de imensa liberdade e alcance. O primeiro pode ser visto como um pequeno tratado sobre a voz, esse elemento tão importante na elaboração do filme-ensaio, e sobre um certo “desejo de som” que ajudaria a constituir a identidade das pessoas. O segundo, como um ensaio de contaminação da linguagem pelo tema (acúmulo, repetições, descontinuidades, volutas, asceses e esplendores do barroco).

Ainda outro exemplo de ensaio de difícil classificação é o curta Dreznica, de Anna Azevedo, em que imagens de Super 8 dos anos 1970 convivem com lembranças e reflexões de pessoas cegas. Da relação tênue e poética entre os discursos visual e verbal nascem uma percepção distinta do mundo e uma ideia distinta do que seja a percepção. Dreznica escapa aos rótulos de Retrato e Viagem, embora tangencie os dois. Seria o caso de se pensar num modo ensaístico que se referisse às experiências que a arte e a vida nos oferecem. Um modo Experiencial, talvez?

 


Carlos Alberto Mattos é jornalista e crítico de cinema. Texto publicado originalmente no blog do autor.