Edição 202 - Brasília, 07 de fevereiro a 06 de março de 2016

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Livros

Poesia sem fronteira
A estética de Jeová Santana

Por José Tenório da Silva Neto

 

Poemas Passageiros (Maceió: UNEAL, Poligraf, 2011) é o primeiro livro de poesia do escritor sergipano Jeová Santana. Depois de um longo tempo dedicando-se à prosa, o professor da Universidade Estadual de Alagoas aventura-se no campo da produção poética. Além do livro aqui resenhado, publicou: Dentro da casca (1993), A ossatura (2002), Inventário de ranhuras (2006), A crítica cultural no ensaio e na crônica de Genolino Amado (2014) e O internato como modelo educacional segundo a literatura: um estudo sob a perspectiva da teoria crítica (2015).

Em seus poemas, o poeta nos convida a fazer uma viagem a diversos territórios ainda não explorados ou a revisitar certos espaços sob um novo prisma, um novo olhar, sob o qual os objetos observados, tidos como simples ou destituídos de maiores significados, podem nos dizer mais do que já foi dito. Nesse sentido, o livro constitui-se um verdadeiro mapa poético feito por quem sente e responde aos estímulos impostos pela realidade.

Esse olhar não está circunscrito ao simples contentamento, pois se estende à reflexão sobre a realidade de cada lugar contemplado. Em outras palavras, o convite não é visitação, mas emoção, sentimento e, acima de tudo, pensamento. Uma espécie de traçado da alma que culmina em pensamentos e reflexões tocantes. Jeová Santana, nesse itinerário, trata com imenso desvelo a poesia e sua finalidade sagrada. Antes de tudo, a verdadeira poesia tem como primazia nos levar a sentir e nos fazer pensar. Nesse aspecto, a poesia do autor é precisa. Não há como ficar imune diante das realidades mensuradas neste Poemas Passageiros.

Nele, as imagens são contundentes, por vezes trágicas, instauram uma atmosfera de conturbação e desordem emocional que, inevitavelmente, tocam o leitor. O poeta é incisivo em suas descrições. Suscita em nós uma sensação de mal-estar, pois somos vassalos das realidades que ele explora. Isso só é possível porque o texto poético, em seu cerne, consegue dialogar com o público de seu tempo. O poeta também faz parte dessa engrenagem problemática. Não tem como ficar incólume ao tempo em que vive. Ele também faz parte dessa realidade e, como componente do meio, sente profundamente a pressão que este lhe impõe. Jeová Santana procura fazer de sua poesia a caixa de ressonância de suas inquietações, uma vez que ele adentra com intrepidez o íngreme terreno da quimera social.

A poesia, do registro entre epopeias gregas até hoje, possui um aspecto atemporal, ou seja, ela consegue falar, tocar, mexer e impactar o público de qualquer tempo e lugar. No entanto, esse dialogismo tende a ser mais taxativo e intenso quando lemos um poeta de nosso tempo. Nos poemas “Oração dos meninos do Brasil (I)” e “Oração dos meninos do Brasil (II)” (p. 43,44), por exemplo, é impossível não sermos tocados, uma vez que estamos diante da temática da violência tão cara aos nossos dias:

Oração dos meninos do Brasil (I)

Bala perdida
não ache meu pai.
Deixa ele vir pra casa
uma vez mais.

(Aracaju, 9.4.2005)

 

Oração dos meninos do Brasil (II)

Meu pai é policial
mas é um cara do bem.
Nunca fará nenhum mal
pra ter seu nome
na boca da moça bonita
do jornal nacional.

Cuida dele, Jesus!

(Aracaju, 9.4.2005)


Nos dois poemas, pode-se perceber que há uma substituição das figuras convencionalmente estabelecidas. No primeiro, ao invés da súplica ser direcionada a Deus, o eu lírico direciona sua voz à bala. Traduz de modo contundente não apenas o que sente diante da questão da violência, como também revela, nesses poucos versos, a condição rendida do homem diante da violência. No segundo, o policial, que deveria ser do mal, é associado à figura de homem do bem. Isso nos causa estranhamento. A imagem evidencia o olhar do poeta. Tira-nos do centro por ser forte, atual e reflexiva.

O poeta não se conforma com as concepções do que se convenciona como belo. Ele tem a necessidade de reinventar e propor configurações inéditas. A estética de Jeová Santana é a do estranhamento. É uma atividade singular, com uso consciente do lirismo para desnudar o caos mediante uma linguagem seca, precisa e aguda, como vemos no poema “Curso de madureza”: “Ninguém viu seu choro / naquela noite do cão / ninguém veio lançar / âncora ao barco ébrio.” (p.29).

Neste poema, há uma proximidade sonora entre “madureza” e “mar-dureza”. Este leva o leitor a enxergar seu mar de cada dia e a dureza de seu curso em direção ao conflito, pois se movimenta violentamente contra os navegantes. Instaura-se, assim, a imagem trágica do sujeito que não suporta o peso de suas responsabilidades, oscila entre as exigências sociais e o intenso desejo de se libertar delas por meio da morte. O poema revela-nos o quanto a poesia de Jeová Santana desloca-se para o espaço de reflexão entremeando lirismo e sonoridade. Ela adentra o campo da crítica social, flerta com a filosofia, busca verdades.

O realismo visceral dessa poética categoriza o poeta como “pós-moderno”. A ênfase no cotidiano dialoga com textos do passado mediante outro olhar, marcado pelo humor, como é o caso dos poemas “Canção do asilo”, um trocadilho com o poema “Canção do exílio”, de Gonçalves Dias; “A divina colmeia”, com A Divina Comédia, de Dante; a utilização deliberada da intertextualidade em “Diante do esplendor de Luana Piovani”: “A carniça / baudelariana / sobe-me / ao nariz”, que faz referência à imagem contundente no poema “Uma carniça”, de Charles Baudelaire: “Lembra-te, meu amor, do objeto que encontramos / Numa bela manhã radiante: / Na curva de um atalho, entre calhaus e ramos, / Uma carniça repugnante” (Tradução de Ivan Junqueira).

A questão da efemeridade da vida, a tensão entre o homem e o meio, entre outros temas, caracterizam Jeová Santana como poeta de nosso tempo. Um poeta moderno, com sua poesia engajada e ferrenha no campo da crítica social. A literatura tem uma perspectiva contínua por acompanhar de perto as constantes transformações sociais e históricas. A leitura que o poeta faz desse contexto é plataforma de sua produção. Que tipo de sociedade temos hoje? Podemos encontrar a resposta em Poemas Passageiros, mais precisamente nos poemas aqui já citados e, particularmente a meu ver, “Reflexão para esses dias tristes”, “Apelo às Câmeras nossas de cada dia” e “Tirem os adultos da sala". Neste último, o poeta apresenta uma lista de palavras aparentemente desconexas, remetidas ao universo da violência exposta na TV, uma vez que o título do poema faz menção à sala, espaço onde se encontra o aparato tecnológico que oferece ao homem moderno uma enxurrada de lixo global. Afinal, quem consegue tirar os adultos da sala?

A ideia de trânsito no livro é diluída na perspectiva de cada poema. O sentido perpassa o sentido habitual. Não se refere ao simples deslocamento, mas sim ao conceito de futilidade, efemeridade e acúmulo de responsabilidades que constituem a realidade densa, pesada e hostil à sobrevivência do homem moderno. O trânsito percorrido pelo poeta acontece em dois planos: no físico, visto o deslocamento que faz por ser produtor e apresentador de um programa de rádio em um estado e professor universitário em outro. Impossível não imaginar o poeta antes de produzir seus poemas, dentro de suas comodidades locomotivas, transitando de um lugar a outro, colhendo imagens e, por fim, materializando-as no papel. O outro é o plano subjetivo de suas imaginações, pensamentos, reflexões e experiências sinestésicas. Nele, o deslocamento acontece sem necessariamente o poeta sair de sua casa, de sua escrivaninha. Na poesia de Jeová Santana não há fronteiras, os contínuos deslocamentos poéticos, de Aracaju a São Paulo, Campinas, Maceió, Rio de Janeiro encurtam a distância entre os lugares indicados no final de cada poema, garantindo a nossa passagem ao embarque dessa viagem.

Jeová Santana nos convida a fazer esse percurso pela poesia. Ao ler o livro nos tornamos passageiros em diversas áreas, não apenas geográficas, mas também nas do conhecimento humano. Todavia, vale ressaltar que há somente um único requisito para embarcar nesse bonde: “despir-se”. É necessário ficar nu de quaisquer concepções em torno do objeto aqui apresentado. Despir-se de dogmas, conceitos e sublimações do que consideramos perfeitamente intactos. A leitura de Poemas Passageiros engendra um processo de desconstrução. Para tal, é preciso coragem para encarar a própria realidade. Sem mais delongas, basta viajar e sentir as palavras.

 

José Tenório da Silva Neto é graduando do Curso de Letras-Português na Universidade Estadual de Alagoas-UNEAL. É formado em Teologia pela Faculdade de Filosofia e Teologia de Alagoas-FAFITEAL, (2002) e professor na Escola Educandário Maria José Alencar-EMJA, em Ibateguara (AL).