Edição 202 - Brasília, 07 de fevereiro a 06 de março de 2016
Literatura
Por Reginaldo de Jesus
Foto: Reginaldo de Jesus
A velha São Luís vista da Praça Gonçalves Dias
Vou a pé pelas ruas do centro da cidade, em companhia de minha mulher, subindo ladeira, descendo ladeira, à procura de Josué Montello. [...] Estas caminhadas por becos e ruas de São Luís não me proporcionam apenas as viagens no tempo, com a restituição de mim mesmo e dos meus contemporâneos. Sinto que minha imaginação se alvoroça, e esboço outros romances, descubro outros personagens, concateno novas cenas, como se o regresso ao chão natal me desse outras forças, outros estímulos para as impaciências da minha pena. (Diário da tarde, de Josué Montello, 20 de janeiro de 1967)
Tudo quanto escrevo, no âmbito da criação romanesca, viria sobretudo de minha vivência maranhense, já que minha província está em mim, com as imagens e impressões recolhidas na terra natal. São Luís pulsa e se derrama na essência de meus romances. De onde concluo que não fui eu apenas, com a minha língua materna, que escrevi O labirinto de espelhos, Os degraus do paraíso, A décima noite, Janelas fechadas – foi também minha terra que os escreveu comigo, com seus tipos, com seus sobrados, com suas ruas estreitas, com suas ladeiras, com a luz inconfundível que se desfaz ao fim da tarde sobre seus mirantes, seus telhados, seus campanários, na Praia Grande, no Desterro, no largo do Carmo, no Cais da Sagração. (Diário do entardecer, de Josué Montello, 28 de janeiro de 1969)
Passeios pelos cenários dos romances maranhenses de Josué Montello
Quando fui fazer minha primeira peregrinação em São Luís, eu já sabia que não seria o primeiro leitor-devoto de Josué Montello a lhe pagar este tributo. Antes de mim, muitos outros leitores, famosos ou não, fizeram esta viagem à Cidade dos Azulejos e/ou a Alcântara, para conferir de perto os cenários dos romances da saga maranhense de Montello. Alguns desses leitores tiveram o privilégio de ser ciceroneados pelo próprio escritor e por D. Yvonne Montello, grande conhecedora do torrão natal de seu esposo.
Se os diários do mestre de A décima noite logo me despertaram o desejo de conhecer sua São Luís, meu interesse para fazer turismo literário, na capital do Maranhão, cresceu ainda mais depois que li seus romances de ambientação maranhense.
Na ocasião da viagem, eu só havia lido os romances presentes na edição da Nova Aguilar - Romances e novelas, de Josué Montello, em três volumes. Só depois leria os romances que fecham as narrativas de inspiração maranhense, como Um beiral para os bentevis, O baile da despedida, Uma sombra na parede e Sempre serás lembrada.
Nos romances da saga, Montello ratifica ter tomado para si a lição de Tolstoi: “Se queres ser universal, cultiva a tua aldeia”. E a crônica sobre a São Luís e a Alcântara de uma época, constante desses romances, é tão viva e bela, que não há como o leitor não se render à vontade de pisar no solo sagrado dessas histórias.
Alguns amigos haviam me advertido de que eu me decepcionaria bastante com o lastimável estado do conjunto arquitetônico do Centro Histórico de São Luís. Mesmo sendo tombada pela Unesco como Patrimônio Histórico da Humanidade, a cidade não vem fazendo jus a este título, uma vez que seu casario está muito deteriorado e em estado de abandono. O que provavelmente esses amigos não sabem é que o próprio Josué Montello já havia denunciado, inúmeras vezes, todo este descaso com sua velha São Luís, em vários de seus romances.
Preparação
Antes de ir a São Luís, passei em revista centenas de páginas do Diário completo de Josué Montello e fiz algumas anotações de logradouros importantes para serem visitados. Mas pequei por confiar apenas em minha excelente memória, quando o assunto era o palco de seus romances de temática maranhense. Não levei comigo os Romances e novelas, de Montello, para recompor alguns desses cenários, pelo evidente desconforto que seria andar carregando tamanho peso. Levei somente um de seus livros, Na casa dos 40, para matar o tempo nas lonjuras da viagem.
Não sei como pude deixar, em meus guardados, uma ferramenta essencial para meus passeios literários em São Luís: um mapa. Talvez porque eu nunca soube muito bem como manusear mapas. No entanto, tinha o mais perfeito deles, um suplemento preparado pela editora Nova Aguilar – A São Luís de Josué Montello – , cenário da coleção Romances e novelas. Este mapa me seria muito útil, não obstante Montello me advertisse:
“A São Luís de hoje, conquanto ainda seja minha São Luís, não é mais a São Luís do meu tempo. A cidade, a despeito da preservação de seu núcleo fundamental, alterou-se de tal modo que, andando eu a pé no perímetro urbano, facilmente me perco nos seus novos labirintos.” (Diário da madrugada, 2 de novembro de 1990).
Embora não levasse comigo esse mapa de São Luís, já conhecia a cidade, por via literária, por intermédio dos romances de Josué Montello. Destarte, o texto literário antecipou o chão verdadeiro por onde eu pisaria. Mesmo assim, não quis estragar a magia de (re)descobrir a cidade olhando algumas fotos dela na Internet. Para mim, era suficiente saber que teria as manhãs de minha estada na capital maranhense para visitar os cenários dos romances montellianos, uma vez que as tardes seriam preenchidas com minhas visitas à Casa de Cultura.
Entretanto, não posso omitir aqui que como o Pedro, de Cais da Sagração, e o Damião, de Os tambores de São Luís, eu também morria de curiosidade para saber como seriam, de fato, o Largo do Carmo, o Largo do Desterro, o Largo dos Remédios, a Praia Grande, o Cais da Sagração, a Rua do Sol, a Rua da Paz, a Rua do Egito, a Rua do Giz...
Cenários dos romances montellianos
O primeiro lugar onde estive, no Centro Histórico de São Luís, foi o antigo Largo do Quartel, hoje Praça Deodoro. Ao entrar num ônibus do aeroporto para o Centro Histórico, eu já sabia que deveria descer na Praça Deodoro, seguir pela Rua do Sol ou pela Rua da Paz até a Praça João Lisboa. Em seguida, eu deveria descer a Rua Humberto de Campos, virar à esquerda e, finalmente, chegar ao endereço em que me hospedaria, na Rua da Palma.
Como se pode ver, já na minha chegada, eu caminharia por cenários muito presentes na saga romanesca montelliana. Por uma questão didática e para ser fiel às minhas descobertas de leitura, escolhi discorrer sobre esses cenários na ordem cronológica em que tais romances foram escritos, tendo em vista que foi assim que os li para perceber, com mais propriedade, o amadurecimento da pena do escritor. Urge acrescer que não tecerei nenhum comentário sobre os logradouros que não tenham uma importância maior no desenrolar do entrecho desses romances e na vida do próprio Josué Montello.
Cenários de Janelas fechadas
O logradouro principal do primeiro romance de Josué Montello é o arrabalde do Anil. Infelizmente, não estive lá para conferir se ainda existe a casa que serviu de cenário para a história da Benzinho. Montello conta, em seu Diário da tarde, 20 de outubro de 1957, que aos onze anos, caminhavam ele e o pai os nove quilômetros que separavam a loja que tinham, na Rua Grande, até essa casa do Anil, onde moravam, na ocasião.
Todavia, estive na Praça da Alegria onde Benzinho morava com sua mãe e seu irmão antes de se mudarem para o Anil. Também vi o Colégio Santa Teresa onde ela estudava antes de ficar grávida. Nesse colégio, estudaram também as irmãs Morena e Cristina, de Os degraus do paraíso. Certa vez, Montello deu uma palestra no Santa Teresa e ficou abismado com as transformações sofridas por esse colégio. (Diário do entardecer, 22 de julho de 1977)
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Colégio Santa Teresa
Além disso, passei muitas vezes pela esquina do Largo do Carmo com a Rua do Egito, na calçada do Café Excelsior onde José Augusto se postava para ver Benzinho passar, à hora da saída do Colégio Santa Teresa. À porta do Café Excelsior, que não existe mais, em março de 1936, o adolescente Josué Montello foi abordado pelo poeta Ribamar Pinheiro, que lhe perguntou se queria a passagem para ir a Belém acompanhando um time de futebol. Montello não pensou duas vezes e se mudou para a capital paraense (Diário da manhã, 9 de junho de 1956), que seria só uma ponte para seu objetivo principal: o Rio de Janeiro.
Cenários de Labirinto de espelhos
A casa de Tia Marta no Largo dos Remédios é o principal cenário de Labirinto de espelhos. Esse lugar, também chamado de Largo dos Amores ou Praça Gonçalves Dias, era o logradouro que eu mais desejava conhecer, por dois motivos. O primeiro era por causa da famosa estátua do poeta da “Canção do exílio”, que tantas vezes vi estampada nos livros de literatura; o segundo, porque o próprio Josué Montello considerava esse logradouro “a mais bela vista da cidade”. (Diário do entardecer, 1º de agosto de 1973)
Foto: Reginaldo de Jesus
O autor na Praça Gonçalves Dias
Ironicamente, só fui visitar o Largo dos Amores em meu terceiro dia de viagem. Na passagem pela Rua dos Remédios, parei na altura do número 331 para fotografar a casa onde Montello passou sua infância e juventude e de onde saiu para morar em Belém.
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A casa de Josué Montello na Rua dos Remédios
Ao chegar à Praça Gonçalves Dias, fiquei encantado com a vista e tive certeza de que não encontraria outra mais bela que essa na cidade. Foi emocionante avistar o poeta romântico encarapitado no topo de sua palmeira de mármore, rodeado de palmeiras naturais, olhando para o mar que o tragou.
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Estátua de Gonçalves dias
Na volta, passei na esquina da Rua dos Afogados com Rua do Pespontão para conferir a casa onde nasceu Josué de Souza Montello. É uma casa simples, de duas janelas e uma porta, rente à calçada. Estava à venda.
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A casa onde nasceu Josué Montello
Voltando à casa de Tia Marta, creio não haver dúvida de que era o que hoje é conhecido como Palácio Cristo Rei, baseado nas descrições que o romance faz da casa e pelo que diz Montello, em um de seus diários. Vejamos: “Naquela casa antiga, de largos janelões na fachada de azulejos, com um mirante espaçoso a sair do telhado e a dominar a baía de São Marcos, no sossego do Largo dos Remédios, Tia Marta chorou em silêncio, durante meio século, a amargura de sua viuvez.” (Labirinto de espelhos, capítulo I)
“Esse prédio – a que me refiro pormenorizadamente no romance Labirinto de espelhos – eu o adquiri para a universidade, em 1973, quando fui seu reitor. [...] Com sua torre dominando circularmente São Luís. Duas frentes. As fachadas de azulejos, com vinte e tantas janelas ogivais.” (Diário da madrugada, 13 de outubro de 1990)
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Palácio Cristo Rei
Outro cenário muito presente nesse e em todos os demais romances do mosaico maranhense de Montello é o Largo do Carmo. O trecho seguinte espelha bem o que significou essa praça de São Luís:
“Era ali o ponto de convergência da cidade, desde o raiar do dia até noite alta. Nas horas caniculares, quando o sol parecia arrancar faíscas do lume dos azulejos e levantava do calçamento um calor abafadiço, não raro apontavam guarda-chuvas abertos, que protegiam do rigor da luz intensa criaturas renhidamente empenhadas em conversa ociosa. Com a sombra que se espalhava ao cair da tarde, o largo se tornava mais concorrido. Quando os sinos da Sé e da Igreja do Carmo tangiam pelas ave-marias, era com dificuldade que se atravessavam as calçadas. Depois, ao apontar da noite, a animação esfriava, até morrer de todo ali pelas dez horas, sob o silêncio compacto que tornava mais severos e imponentes os sobradões circunvizinhos.” (Labirinto de espelhos, capítulo XXIII)
Cenários de A décima noite
A décima noite é um dos romances da saga montelliana que mais justificam “o qualificativo de visual” (“Confissões de um romancista”, p.29) que Antonio Cândido viu na pena de Josué Montello, desde seu primeiro romance, Janelas fechadas. O próprio Montello, que quase enveredou pela pintura em vez da literatura, explica como se tornou um pintor pela palavra: “Em verdade, eu vejo os meus personagens e o cenário em que eles atuam, como se se tratasse, no ato de concebê-los e realizá-los, não de uma invenção romanesca, e sim de uma perfeita alucinação.” (“Confissões de um romancista”, p.30)
Da rica paisagem ludovicense evocada nesse romance, não há como não destacar a casa da infância de Abelardo, no Campo de Ourique, como cenário principal da história, uma vez que ele volta a São Luís para tentar resgatar seu passado nessa casa. Contudo, antes de revê-la e tentar reconquistá-la, ele vai morar numa pensão no Largo do Carmo. “Este sobrado [...] é o velho prédio onde foi a Pacotilha. Está acima do Largo do Carmo, com uma boa vista sobre a cidade. Tem a fachada de azulejos e parece uma fortaleza, com paredes de pedra e cal, da largura de uma braça.” (A décima noite – O regresso, capítulo I)
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Prédio da Pacotilha
Grande foi a decepção de Abelardo ao cotejar o Largo do Carmo de sua infância com o que via agora em adulto. Eis seu desabafo: “Antes eu não tivesse olhado!” E em discurso indireto livre: “Onde o largo amplo e rumorejante, que deixara ali? E que fora feito das árvores que estendiam sombras compactas nas calçadas? E como pudera retrair-se e murchar na suavidade de sua colina, a Igreja do Carmo, que havia sido tão grande? E eram aqueles os estirados muros do convento colonial, agora de janelinhas apertadas como os postigos de uma prisão? Deus do céu! Era aquilo?” (Idem)
Outrossim, Josué Montello lamenta a transformação desse largo, numa crônica denominada “Velhas ruas de província”, do livro Janela de mirante: “Quando olho hoje o Largo do Carmo, quase não o reconheço. Não apenas por que lhe faltam as figuras de meu tempo – faltam as gordas árvores, faltam os bancos de ferro, falta o tanque com seu repuxo, faltam sobretudo os cafés e bares acolhedores, onde não era difícil ter uma cadeira cativa. A própria alma da praça como a que se mudou.”
Essa crônica foi escrita anos depois de A décima noite, o que acentua o fato de que o gênero romance é também uma urupema e repositório das confissões do escritor. Aproveito para confessar que não me decepcionei tanto com o Largo do Carmo que meus olhos contemplaram. Gostei especialmente da parte denominada Praça João Lisboa, a despeito de saber que esse largo era outro, em importância e beleza, para a São Luís de antanho.
Foto: Reginaldo de Jesus
Largo do Carmo
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Praça João Lisboa
É bom que se diga logo que o Largo do Carmo tinha a fama, de priscas eras, de ser o maior antro de fofocas da velha São Luís. Não é à toa que o Dr. Paiva, futuro sogro de Abelardo, admite quase não tomar conhecimento do que se diz na cidade por não frequentar esse largo.(A décima noite – A casa) E D. Júlia, proprietária da pensão onde Abelardo morava, corrobora esse fato ao dizer que se em São Luís tudo se sabe, sabe-se principalmente no Largo do Carmo. (A décima noite – O caminho mais longo, capítulo III)
Eu estava hospedado aos pés desse largo. Saía todos os dias da Rua da Palma por duas vias. Às vezes, pelo Beco da Pacotilha, também chamado Beco do Quebra-Bunda ou Beco do Quebra-Costa e cruzava o largo em direção à Rua Grande. Outras vezes dobrava a esquina da Rua da Palma com a Rua de Nazaré, cruzava a Praça João Lisboa, e seguia em direção à Rua do Sol ou Rua da Paz. Seja por que lado eu saísse de minha hospedagem, sempre via a pensão onde morou Abelardo. Saindo pelo Beco da Pacotilha, passava rente à pensão onde ele morou.
Embora Abelardo estranhasse o Largo do Carmo de seu presente, e por extensão, quase toda a São Luís, quando de sua partida da pensão para morar na casa de sua infância, no Campo de Ourique, bateu-lhe uma saudade imensa desse largo.
“Levantou-se da mesa, olhou o Largo do Carmo pela janela escancarada. [...] Aquele cenário, que a vista alcançava sem esforço, em breve estaria proscrito de seus olhos, do ângulo da janela que ainda lhe pertencia. Vê-lo-ia de outros pontos; na calçada da rua, por exemplo. Mas não dali.” (A décima noite – O caminho mais longo, capítulo III)
No entanto, é a casa do Campo de Ourique que lhe traz a cidade de seu passado. Esta cidade que ele procurava por toda parte sem conseguir encontrá-la felizmente estava ali. Se não a buscou antes, foi com medo de maior desapontamento.
Infelizmente não fui conferir esse cenário. O Campo de Ourique localiza-se na atual Praça Deodoro. Fica por trás da Biblioteca Pública Benedito Leite, antigo quartel. Daí também o nome Largo do Quartel, como essa praça era conhecida.
Enfim, não poderia deixar de mencionar aqui a morada de Madame Fleury, a mestra de piano da infância de Abelardo, cognominada Madame Pompon, pelos moleques de rua. Ele a reencontra casualmente na Rua de Santaninha, quase esquina com Rua do Alecrim. Mas ela morava na Praça da Alegria.
Numa lírica página de diário, Montello recorda que, passando uma vez de carro pela Praça da Alegria, teve a impressão de que ali residia alguém que ele conhecia, mas não lembrava quem era. De repente: “Ali morou madame Pompon!” E concluiu: “Quer isso dizer que lhe dei tal vida, tirando-a de minha imaginação, que dela me recordo como se a figura desvairada houvesse realmente existido. Longe, já na Rua do Passeio, ouço ainda o seu piano. O piano de madame Pompon! (Diário de minhas vigílias, 18 de março de 1990)
Cenários de Os degraus do paraíso
O cenário principal de Os degraus do paraíso situa-se na Rua do Sol, esquina com a Rua da Cruz. É o sobrado de Mariana, ex-esposa de Ernesto, mãe de Morena, Cristina e Teobaldo. No meu segundo dia em São Luís, fiz o reconhecimento do Largo do Carmo, incluindo aí a igreja do Carmo, e fui em busca da casa de Mariana, palco de episódios muito tristes.
Em três páginas consecutivas de seu Diário da tarde, nos dias 3, 4 e 5 de março de 1962, Josué Montello registra suas visitas a alguns cenários de Os degraus do paraíso, enquanto ainda o escrevia. Esse é mais um romance em que ele confirma seu credo de que “um personagem para quem o cria, não é uma figura de papel – é um ser humano.” (Diário da tarde, 10 de janeiro de 1964)
Nessas páginas de diário, Montello nos diz, entre outras coisas, que conseguia ouvir o cavalo de Ernesto galopando na direção do Largo do Carmo. Já no largo, na esquina da Rua do Sol com a Rua do Egito, ele viu Ernesto tentando entrar no Café Excelsior montado a cavalo, pela porta exígua, do lado da Rua do Egito.
Outra visita feita por Montello foi ao prédio da Rua de Nazaré onde a Chicó tinha o seu prostíbulo. É lá onde Ernesto vai perder o dinheiro do dote da filha que vai ser freira. Eu andei apenas um trecho dessa rua, mas acabei não indo conferir esse cenário, tão presente noutros romances da saga.
O fim dessas visitas de Montello se dá na Rua do Sol, esquina com a Rua da Cruz, ou seja, no sobrado de Mariana. “Ainda bem que fui reconhecido pela senhora que atendeu ao rumor de minhas palmas. Disse-lhe que estava ali para rever as dependências do sobrado na condição de romancista. Como leu A décima noite, autorizou-me a subir os dois lanços da escada. Gentilíssima. Pude reconhecer que a casa corresponde à que eu tinha na memória. À saída, disse-me a senhora, com receio da insistência de meus olhos: “Só lhe peço que não me ponha no romance.” (Diário da tarde, 5 de março de 1962)
Passei pela Rua do Sol incontáveis vezes, não somente por causa do sobrado da Mariana, mas também porque essa rua abriga outros logradouros importantes para a história do Maranhão. Numa dessas vezes, resolvi entrar no tal sobrado de Mariana, onde hoje funciona o IPAM (Instituto de Previdência e Assistência do Município). Evidentemente teria sido mais emocionante se ainda fosse uma residência.
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Sobrado da Mariana
Situam-se também na Rua do Sol o suntuoso Teatro Artur Azevedo, segundo teatro mais antigo do Brasil; a casa em cujo mirante Aluísio Azevedo escreveu O mulato, e aí mesmo teria sido escrito outro romance maranhense, A carteira de um neurastênico, de Antônio Lobo; o Museu Histórico e Artístico do Maranhão, fundado por Josué Montello; sem deixar de mencionar que Orígenes Lessa, da experiência de sua infância em São Luís, escreveu Rua do Sol, um belo romance infanto-juvenil.
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Casa de Aluísio Azevedo
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Museu Histórico e Artístico do Maranhão
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Rua do Sol
Outro cenário marcante de Os degraus do paraíso é o caminho percorrido pelo garoto Teobaldo para ir sozinho à missa na Igreja do Carmo. Ele disse à sua mãe que seguiria pela Rua do Sol, subiria a Travessa do Teatro, entraria na Rua da Paz, atravessaria essa rua e entraria na igreja. E foi o que tentou fazer. Todavia, em parte desse trajeto, ele viu a fonte do Ribeirão e foi até ela, atraído pela história de uma serpente que vivia ali, conforme lhe contou sua irmã Morena.
Na Fonte do Ribeirão, Teobaldo tem a revelação, através de um menino de rua, de que não há nenhuma serpente na fonte. Resolve retomar seu caminho para a Igreja do Carmo e, na curva da Rua da Paz, um carro o apanha em cheio e o atira morto à calçada do Convento do Carmo. Ao contrário de Teobaldo, fui ao Largo do Ribeirão para conferir os sobrados geminados, primeiro endereço da Casa de Cultura Josué Montello e, é claro, para apreciar a Fonte do Ribeirão.
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Fonte do Ribeirão
Há ainda, nesse romance, mais dois cenários que precisam ser mencionados. As residências de Ernesto e de Dr. Luna. A primeira ficava no Desterro, zona proibida da cidade por ser um reduto de prostituição; a segunda, para os lados do Jenipapeiro, numa ruazinha adiante da Igreja dos Remédios.
Deixarei para comentar sobre o Desterro quando estiverem em discussão os cenários do Largo do Desterro. Porém, aproveito logo o ensejo para dizer algo sobre a Igreja dos Remédios. Tanto esse romance quanto o anterior ressaltam a festa de Nossa Senhora dos Remédios como a maior festa católica de São Luís, merecedora de uma crônica antológica de João Francisco Lisboa. Entretanto, é em O mulato, de Aluísio Azevedo, que essa festa é descrita detalhadamente.
Cenários de Cais da Sagração
Visitei apenas os cenários deste romance em São Luís. Pelo título, é evidente que o Cais da Sagração é um dos principais cenários juntamente com a Praia Grande. Eis o que diz Mestre Severino a Pedro, seu neto, assim que chegam ao cais: “Quando eu tinha a tua idade, este Cais da Sagração era bem diferente. Tinha outra vida, outro movimento.” (Cais da Sagração, capítulo XXIX)
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Cais da Sagração
“Antes de alcançar a rampa para descer ao barco, anteviu a morte do Cais da Sagração – prolongamento natural da Praia Grande. Certo, sobreviveriam as casas, o passeio, as árvores da avenida, a muralha de cimento e pedra rente ao mar; mas os barcos que vêm de longe não ancorariam mais naquela enseada.”
[...]
“Assim, o cais do Pedro seria no Itaqui, do outro lado de São Luís, enquanto o dele, Mestre Severino, continuaria sendo aquele, sobre as águas do rio Anil. Praticamente já quase não existia o Cais da Sagração.” (Cais da Sagração, capítulo XXXIII)
Em minha visita a esse cais pude comprovar a profecia de Mestre Severino. E aqui uma curiosidade: a noite de autógrafos desse romance se deu no próprio Cais da Sagração, no dia 20 de outubro de 1971, conforme registro de Montello em seu Diário do entardecer.
No que concerne à Praia Grande, o narrador onisciente nos oferece o olhar evocativo de Mestre Severino em suas caminhadas por esse bairro, que já foi o mais importante de São Luís: “Num relance, ao confrontar o passado com o presente, a memória recompõe ali os dias de outrora, não muito distantes, e uma sensação opressiva de decadência como que se desprende dos casarões imponentes.” [...] Logo, o desabafo inevitável do Mestre: “A Praia Grande está acabando” (Cais da Sagração, capítulo XXXI).
Em “Velhas ruas de província”, Montello observa: “A Praia Grande, que serviu de cenário à boa parte de O Mulato, tem agora menos movimento que ao tempo de Aluísio Azevedo. E é aí que se erguem os mais belos sobrados de azulejos de São Luís – majestosos, imponentes, guarnecidos de sacadas de ferro, com seus mirantes abertos para o mar”. (Janela de Mirante, p.41)
Dois cenários de Cais da Sagração não podem deixar de ser mencionados, pelo modo hilário das descrições feitas pelo personagem Davi, enquanto ciceroneava Pedro, pelas ruas e bairros de São Luís. Um é a Praça Benedito Leite:
“Esta praça já foi mais bonita, toda cheia de flores. Parecia um sonho. Dava gosto vir aqui, principalmente de tardinha, quando as flores ficam mais cheirosas. Eu vinha sempre. Agora, custo a vir. Aquele velho de bronze, ali no meio, virado para a Sé, está de braços cruzados, debaixo do sol, para tomar conta do relógio da igreja – esclareceu após uma risadinha. – Antigamente, aquele sobrado da esquina, no começo de minha rua, era uma pensão de raparigas. Como o velho, que foi Governador daqui, era muito sisudo, achavam melhor virar a cara dele para o lado da Sé, dando as costas para o sobrado, enquanto as meninas se esbaldavam. Bons tempos! Bons tempos! Ai, ai, meu Cristo, olhai para isso!” (Cais da Sagração, capítulo XXXII)
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Praça Benedito Leite
A pensão de raparigas a que Davi se refere é a Pensão da Chicó, na Rua de Nazaré. Eu estava hospedado bem perto da Praça Benedito Leite e, consequentemente, da Catedral da Sé. Achei-as muito belas.
O outro logradouro descrito por Davi é o Largo do Carmo. “Vais conhecer agora o lugar mais perigoso de São Luís – anunciou. – Cuidado. Muito cuidado. Te afasta de mim. Estamos chegando ao Largo do Carmo. Entro aqui sabendo que estou num ninho de cobras. Tenho mais medo desta praça do que o diabo da cruz. Palavra de honra. [...] Se dependesse de mim, este largo mudava de nome: passava a ser Largo da Vida Alheia. Não ria não, que estou falando sério. Não se passa nada nesta São Luís que não seja comentado aqui. [...] Te prepara, meu irmão. Cada um de nós tem aqui seu calvário.” (Idem)
Davi aproveitou o ensejo da passagem pelo Largo do Carmo para dizer a Pedro que “São Luís é a única cidade no mundo onde a inveja tem uma rua. É a Rua da Inveja.” Imagino o que pensou Pedro sobre o nome dessa rua, uma vez que já havia se perguntado: “Por que havia uma Rua do Sol, se o sol se alastrava por todas as ruas?” Segundo Humberto de Campos, escritor maranhense que já foi considerado o maior escritor brasileiro de seu tempo, a Rua da Inveja, onde primeiro morou em São Luís, “devia ter, por força, inveja das outras.” (Diário secreto, vol. 1, de Humberto de Campos, 4 de novembro de 1928)
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Rua da Inveja
Outro cenário marcante desse romance é o Beco dos Barqueiros. Deixemos que as evocações do narrador justifiquem o porquê: “Ah, Beco dos Barqueiros, quem te viu e quem te vê! Que é feito das velhas pedras pontudas de teu calçamento colonial? Subias do Cais da Sagração à Rua do Egito, por entre casas antigas, dando a impressão de que te torcias para alcançar o viso da ladeira. Parecias guardar nas tuas pedras, na calçada estreitíssima, nos muros de teu caminho, algumas relíquias da cidade primitiva, a cidade que viu passar por ti os jesuítas que Pombal mandou expulsar de seu convento. Como que ressoam no ar os sinos das igrejas. Pelas frestas das rótulas espiam semblantes espantados. E lá se vão eles, os velhos padres, encolhidos nas suas batinas, calçando as alpercatas de couro, tangidos de São Luís como malfeitores, por esse mesmo Beco dos Barqueiros que Mestre Severino desce agora, de cabeça baixa, quase a chorar.” (Cais da Sagração, capítulo XXXVI)
Cenários de Os tambores de São Luís
O romance Os tambores de São Luís, por si só, cobre quase todos os cenários dos demais romances da saga maranhense. No presente narrativo, o negro Damião percorre os espaços que vão do Largo de Santiago, que hoje não existe mais, à Camboa. Mas no passado narrativo, são incontáveis os lugares por onde ele passa. Na homenagem que fiz aos 40 anos desse romance, já me reportei a alguns de seus cenários. Falarei de mais alguns.
“Quem desce a rua sinuosa, na direção do centro da cidade, depois de passar pela igreja de São Pantaleão, vê um bando de construções primitivas, todas acachapadas, com beirais salientes e batentes de cantaria. Para identificar a Casa-Grande das Minas, não é preciso quebrar a cabeça. De dia, ali por perto, qualquer pessoa dirá onde ela fica; de noite, bastaria guiar-se pelo bater dos tambores.” (Os tambores de São Luís, capítulo XXV).
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Casa das Minas
Visitei a Casa das Minas no mesmo dia em que fui conhecer Alcântara e pude confirmar o que diz o texto acima, exceto no que tange aos tambores, pois esses, lamentavelmente, não rufam mais. Ao entrar na Casa, lembrei-me de que na minha infância ouvi muito o bater dos tambores de um terreiro de candomblé que ficava relativamente próximo à minha residência. Contudo, a lembrança mais forte foi mesmo a da presença de Damião e Genoveva Pia naquele chão que eu pisava.
Aproveitei a ocasião de estar no bairro de São Pantaleão e visitei outros logradouros, como a igreja de São Pantaleão, o Cemitério do Gavião, a Praça da Alegria e a Rua de Santana. Deixarei para comentar algo sobre a Igreja de São Pantaleão quando o enfoque for o romance Pedra viva. Admito que fui visitar o poeta romântico Sousândrade, personagem desse romance, não na Quinta da Vitória, mas no Cemitério do Gavião, pois é lá onde ele mora há muito tempo.
Não tive problemas para encontrar seu túmulo encravado na extremidade de uma parede, graças aos cuidados da Academia Maranhense de Letras que o reformou. Josué Montello não teve a mesma sorte, quando visitou o poeta de “O Guesa”, em sua morada eterna, em 21 de janeiro de 1967, segundo depoimento em seu Diário da tarde. Ele não encontrou praticamente nada que identificasse o túmulo do bardo. Precisou do auxílio do administrador do cemitério.
No caso do túmulo de Aluísio Azevedo, deu-se o contrário. Enquanto Montello não teve problemas para achá-lo, eu quase desisti de fazê-lo. O mais hilário da situação é que a sepultura do autor de O Mulato está num lugar muito fácil de ser encontrada. Montello sempre viu esse túmulo bem deteriorado e até fez reparos nele, quando foi secretário-geral no Maranhão, em 1946. Mas o tempo acaba tudo. Eu, felizmente, encontrei a morada eterna de Aluísio já bem digna dele, dessa vez graças ao Governo do Estado do Maranhão.
Quem passa pela Praça da Alegria e não sabe nada sobre ela, jamais desconfiará, pelo nome, que no passado já fora palco de muita tristeza: chamava-se Largo da Forca Velha. “A designação primitiva, ajustada ao patíbulo, acabou substituída por outra, que lhe deu o povo: Praça da Alegria. A nova denominação inspirou-se na circunstância de que os pobres condenados, vistos de longe, pareciam pular de contente, logo que eram soltos no espaço com a corda no pescoço.” (Os tambores de São Luís, capítulo XVII)
A Rua de Santana, com seus sobrados aristocráticos, ladeia a Praça da Alegria. Nessa rua morou Ana Amélia Ferreira Vale, o grande amor de Gonçalves Dias. O episódio que causou grande infelicidade ao maior poeta brasileiro de seu tempo é contado aqui. O poeta se apaixonou por Ana Amélia e foi correspondido. Pediu, por meio de uma carta, sua mão em casamento à Dona Lourença, mãe da moça, mas esta a negou numa carta curta e seca. Isso aconteceu, segundo a versão corrente, porque Gonçalves Dias era mestiço e filho bastardo. No entanto, como Josué Montello descobriria depois, em conversa com um parente de Ana Amélia, o Dr. Carlos Fernandes Ribeiro, médico da família Vale, futuro barão de Grajaú, alertou um irmão de Ana Amélia para a saúde ruim do poeta e esse alerta chegou aos ouvidos de D. Lourença. Assim, este pode ter sido o real motivo de sua recusa. (Diário da tarde, 2 de fevereiro de 1963; crônica “A paixão de Gonçalves Dias”, do livro Uma palavra depois de outra, 1969). O fato é que Ana Amélia estava disposta a fugir com Gonçalves Dias, mas o bardo, humilhado, não quis fazer isso. Resultado: ambos se casaram com outras pessoas e foram infelizes.
Um cenário tétrico de Os tambores de São Luís é o da Cafua de Escravos na Praia Grande. Ali funcionou o mercado de escravos de São Luís, uma verdadeira praça de leilões de negros. O espaço era subumano. O episódio no romance envolvendo a cafua se dá quando Damião leu num jornal que havia chegado uma leva de escravos do Turiaçu, exatamente da fazenda onde ele foi escravo. Pensou logo que encontraria sua irmã entre esses negros. Foi à cafua, encontrou Leocádia, mas não pode tirá-la de lá. Enquanto procurava um meio para libertar sua irmã, ela foi levada por quem a comprou. A propósito, estive na Cafua das Mercês, que é hoje o Museu do Negro.
Foto: Reginaldo de Jesus
Cafua das Mercês
Cenários de Noite sobre Alcântara
Deste fabuloso romance da decadência de uma cidade senhorial destacarei três cenários: o Largo da Matriz, o Largo do Carmo e as ruínas dos dois Palácios do Imperador. Em “Confissões de um romancista” Montello declara:
“Depois de Os tambores de São Luís, voltei a Alcântara, com minha mulher, na companhia de dois amigos, Pedro Neiva de Santana e Domingos Vieira Filho. Na Praça da Matriz, diante das ruínas da Igreja de São Matias, sentei-me na borda da calçada, com uma larga folha de papel estendida no chão, e tratei de desenhar o que ia vendo – um sobrado em frente, as árvores, os restos da igreja.
[...]
- Agora, achei o romance de Alcântara. Isto aqui é o cenário mais importante do livro.”
Foto: Reginaldo de Jesus
Igreja de São Matias
“Ali estão os escombros da Igreja de São Matias, sobre a qual desabou um raio em noite de temporal. Da nave ampla, nada mais resta. Só ficaram a frontaria e o campanário retangular. Em frente à fachada de pedra nua, o pelourinho com as armas de Portugal.
[...]
No Largo do Carmo, duas ruas adiante, contemplo as ruínas do Palácio do Imperador, com seus portais de cantaria lavrada. Começaram a erguê-lo para nele hospedar Dom Pedro II, na sua visita ao Maranhão. Mais além, na volta da rua, amontoam-se as ruínas de outro palácio erguido para o mesmo fim. Como Sua Majestade mandou dizer que não vinha, os casarões ficaram por terminar. E quando a cidade principiou a morrer, já os dois palácios, inconclusos, estavam preparados para morrer com ela.” (Noite sobre Alcântara – A travessia)
Foto: Reginaldo de Jesus
Largo do Carmo
Montello conta, na página de seu Diário da tarde, de 5 de novembro de 1964, como foi sua primeira visita a Alcântara. Diz que não foi uma travessia suave, pois o mar estava muito agitado. Quando foi informado de estar no Largo do Carmo, procurou logo pelo banco onde Aluísio Azevedo, muito moço, teria sentado em companhia de seu amigo Virgílio Cantanhede, a quem contara o enredo de O mulato, que ia começar a escrever.
Também minha travessia de São Luís para Alcântara foi muito turbulenta. No Largo do Carmo, não precisei me dar ao trabalho de procurar o tal banco do episódio em torno de Aluísio Azevedo, porque infelizmente já não havia mais bancos.
Cenários de A coroa de areia
Em São Luís, o cenário principal de A coroa de areia localiza-se na Rua dos Craveiros, 27. Trata-se de uma meia-morada de sacadas de ferro, com mirante por cima do beiral, entre a Rua do Alecrim e a Rua dos Afogados, perto do Largo do Carmo. Nesta casa moravam Dona Blandina e suas filhas Aglaia e Maria do Carmo. É para lá que vai o herói dessa história, João Maurício. Passei por lá algumas vezes.
Outros espaços dignos de menção nessa história são a Pensão da Eponina, na Rua de Santana; o Sebo do Polari, na Rua do Sol; o túmulo de Aluísio Azevedo, no Cemitério do Gavião, e o Teatro Artur Azevedo. Foi na Pensão da Eponina que Aglaia ficou difamada, apesar de não ter cometido nenhum delito. Mesmo assim foi expulsa da Escola Normal. No Sebo do Polari, João Maurício, tal qual o próprio Josué Montello, comprou parte de sua rica biblioteca. Montello fala deste sebo, que não existe mais, nalgumas páginas de seu Diário da Manhã. Vejamos uma delas:
“De vez em quando, gosto de tirar da estante um volume qualquer do velho Camilo Castelo Branco. Não me canso de ler as Memórias do Cárcere, na edição que veio comigo de São Luís e que comprei com o meu primeiro ordenado de professor (tinha eu 15 anos) numa loja de livros velhos da Rua do Sol, o Sebo do Polari.” (5 de abril de 1953)
Em determinado episódio do romance, o narrador montelliano põe João Maurício escondido no Cemitério do Gavião, enquanto espreita o inimigo. “Por trás do túmulo de Aluísio Azevedo, amparando-se na grade de ferro que cerca o mausoléu, conseguiu acomodar-se em posição privilegiada. Dali podia ver e ouvir, quase sem ser observado. Dispersos por entre os túmulos, à luz da tarde ainda alta, os integralistas não pareciam mais duzentos ou trezentos, com o mesmo uniforme e a mesma fisionomia severa. Pareciam, agora muito mais, aglomerados em redor da cova que ia tragar o caixão, e alastrando-se por toda a quadra, unidos e disciplinados. (A coroa de areia – As voltas do mundo, capítulo VIII)
Foto: Reginaldo de Jesus
Túmulo de Aluísio Azevedo
Mas foi no Teatro Artur Azevedo que apareceu um líder importante dos integralistas. “Do Rio de Janeiro, ali chegou, alto, vistoso, ombros largos, o escritor Gustavo Barroso, de camisa verde, capacete na cabeça, condecorado no peito, e toda a cidade se alvoroçou com o garbo e o porte marcial do Chefe das Milícias Integralistas. Vinha à frente de uma caravana, pregando o novo credo político, a ameaçar banqueiros e judeus. À noite, no Teatro Artur Azevedo, deu uma boa prova de sua fibra combativa, ao resistir galhardamente às provocações dos adversários, até que as palmas estrondaram, abafando os assobios e as pateadas que desciam das torrinhas.” (Idem)
Foto: Reginaldo de Jesus
Teatro Artur Azevedo
Cenários de Largo do Desterro
Foi num passeio pelo Largo do Desterro, na manhã do dia 25 de julho de 1977, conforme registro em seu Diário do Entardecer, que Josué Montello, acompanhado de sua esposa Yvonne, viu passar um velho que o inspirou a escrever A vida eterna do Major Taborda (Largo do Desterro). Montello pôs o macróbio Major Ramiro Taborda num sobrado com vista para a Rua da Palma e também para a igreja de Desterro, no largo homônimo.
Foto: Reginaldo de Jesus
Casa do Major Taborda
Eis como o Major Taborda apresenta sua morada a Tininha: “Deste lado – disse ele, após um silêncio – é a Rua da Palma. Vai até a Avenida Maranhense, com sobrados de um lado e do outro. À minha esquerda é o Largo do Desterro. Não é bonita a pracinha, com a igreja ali defronte, e esta paz, e este silêncio?” (Largo do Desterro – A volta, capítulo X).
Para chegar ao Largo de Desterro, eu só tinha que seguir a Rua da Palma em linha curva, pela minha esquerda e, em poucos minutos estava no cenário principal do romance. Fiz isso pelo menos duas vezes. Consegui, inclusive, entrar na Igreja do Desterro, em horário em que ela se encontrava fechada.
Foto: Reginaldo de Jesus
Interior da Igreja do Desterro
Eu tinha que conhecer essa igreja por dentro, sobretudo porque foi lá onde houve o lançamento desse romance, com as presenças, entre outras, de Sérgio Lacerda, editor de Montello pela Nova Fronteira, e de seu filho, Pedro. A respeito da visita de pai e filho à sua terra natal, Montello reconhece:
“Tanto lhes falei de São Luís, nos meus romances, nos meus artigos, nas minhas conversas, que neles agucei ainda mais a curiosidade para conhecerem estas ruas, estas ladeiras, estes sobrados, este povo esperto e bom, que se orgulha de falar a língua portuguesa obedecendo pelo ouvido às lições de seus poetas.” (Diário do entardecer, 3 de março de 1982)
E no dia do lançamento do romance, “Yvonne, que tudo admira em São Luís, não se contém até mostrar aos dois a casa de esquina, caiada de novo: ‘Olhem bem aquela casa.’ A restauração do Largo do Desterro foi estendida à casa de dois pavimentos, por ter morado ali, com seu drama e seus 152 anos, um de meus personagens, o major Taborda.” (Diário do entardecer, 5 de maio de 1982)
Outro cenário importante desta história é a residência de Calu Malafaia: “O sobrado da Rua Formosa, na esquina da Ladeira do Quebra-Costa, olhava para o Largo do Carmo. Dali, sem precisar sair de sua cadeira de embalo, com os pés num tamborete, Calu Malafaia dominava a Rua Grande, quase todo o Largo do Carmo, a igreja, o Convento, as árvores verdes, o bondezinho que vinha do Largo do Palácio, puxado pela parelha de burros.” (Largo do Desterro – Calu Malafaia, capítulo I)
Seria um pecado não mencionar a Igreja de Santaninha, um logradouro muito importante na história do Major Taborda. O romance já começa com o Major tentando ir a essa igreja, em pleno carnaval. Deixemos que ele mesmo a apresente a Tininha: “Hoje vais conhecer a igreja em que fui batizado, em que me casei, em que a Celeste foi batizada, e em que foi rezada a missa de ação de graças pelo meu centenário.” (Largo do Desterro – A volta, capítulo IV)
No entanto, ao chegar ao lugar onde ficava a tal igreja, “o Major parecia abismado na sua angústia, com a certeza de que, de repente, toda a sua lucidez se esvaíra e que, agora, continuaria a confundir tudo – nomes, datas, lugares, até sobrevir a noite que o esmagaria.”(Idem) E é um pedinte velho que vai aliviar o Major, dizendo-lhe que puseram abaixo a Igreja de Santaninha, a Igreja da Conceição, o Quartel do 24, além de levarem dali o chafariz.
Cenários de Pedra viva
Sobre o cenário principal de Pedra viva, em São Luís, lemos nas primeiras linhas do romance: “O Beco do Silva é este pedaço de rua velha, calçado de pedras antigas, entre o Largo do Palácio e o Cais da Sagração, e que escorrega em ladeira na direção do mar.”
E mais adiante: “Esta morada-inteira, na esquina do Beco do Silva com o Beco dos Barqueiros, recebe a luz do lampião do patamar da escadaria, destacando-se das moradas humildes que a circundam com as suas janelas baixas e a sua porta sobre a calçada. Parece que a luz quer exibi-la, e mostrar-lhe a data na grade de ferro por cima da bandeira da porta: 1890.” (Pedra viva – Iniciação conjugal, capítulo I)
A Ponte do São Francisco, ligando a velha São Luís à nova, é outro cenário importante deste romance. Esta ponte era um velho sonho de Marcelino Cantanhede, pai de Aspásia, a protagonista desta história. “Mas os anos passavam, e só o Cantanhede, de sua janela no Beco do Silva, via a ponte com que sonhava. Até que acabou por suspirar, desapontado: ‘Não querem saber do progresso, e é este silêncio, e é esta pasmaceira, como se São Luís fosse ter também o destino de Alcântara.’” (Idem)
Foto: Reginaldo de Jesus
Ponte de São Francisco
Marcelino faleceu com a certeza de que seus filhos, Eufrásio e Aspásia, nadariam em dinheiro, no futuro, com a valorização das terras do São Francisco que lhes deixava, assim que fosse construída a Ponte do São Francisco. “E Aspásia, sem se entusiasmar: ‘Ouço falar nessa ponte há tanto tempo que, nem depois de construída, eu acredito nela.’
Todavia, Dr. Aníbal retruca: ‘Precisa acreditar. Desta vez são favas contadas. Ou se faz a ponte, abrindo caminho à expansão de São Luís, ou se põe a cidade abaixo, para fazer outra, no mesmo lugar, trocando os sobrados pelos arranha-céus, e isso seria uma calamidade. Se tal coisa acontecer, mudo-me daqui. De coração sangrando.’” (Pedra viva – Os dois postais, capítulo II)
Depois de 15 anos morando no Rio de Janeiro, Aspásia resolve voltar para São Luís e houve as seguintes palavras do Embaixador Paulo Carneiro: “Vai ter esta surpresa: em vez de uma única São Luís, com a Praia Grande, o Largo do Carmo, o Largo dos Remédios, o Largo do Quartel, vai encontrar duas: a antiga e a nova São Luís. Esta última com ar de cidade grande. E tudo por obra de duas pontes: uma, do Cais da Sagração para a Ponte do São Francisco; outra, do São Francisco para a Camboa. A ilha está cortada de grandes estradas. E repleta de casas modernas, com suas ruas largas, e um grande comércio, sobretudo no São Francisco, que era apenas mato e mangue (...) e é, hoje, uma nova cidade, com grandes avenidas, mansões de luxo, um grande hotel, e mais a vista da velha São Luís, que parece ainda mais bela, olhada de lá.” (Pedra viva – A volta, capítulo I)
Cheguei a passar de carro pela Ponte do São Francisco, quando fui conhecer as cidades de Raposa e São José do Ribamar. A agência de turismo que contratei tinha que buscar alguns hóspedes na São Luís moderna.
Outro cenário de destaque, neste romance, é a Igreja de São Pantaleão. “Enquanto esperavam que a porta da velha igreja se descerrasse, Eufrásio levou Aspásia pelo braço para a Rua da Cotovia, contornando o templo de paredes escalavradas. Parou adiante, na borda da calçada. E erguendo a bengala, apontou para a abertura na parede de pedra, em cujo interior se destacava uma caixa de madeira, aberta num dos lados, e firmada em dois eixos de ferro, em cima e embaixo, permitindo-lhe o movimento giratório. ‘Sabe o que é aquilo? – perguntou-lhe, observando-a. – É a Roda dos Expostos. Ali são deixados, à noite, os recém-nascidos que as mães não querem criar. Põe-se o neném lá dentro, gira-se a caixa de madeira, na casa paroquial da igreja bate um sino, e uma freira recolhe o enjeitado.’” (Pedra viva – A curva do caminho, capítulo III)
Foto: Reginaldo de Jesus
Interior da Igreja de São Pantaleão
Depois de estuprar a irmã, Eufrásio lhe revela que não cometeu incesto porque Aspásia saiu da Roda, na Igreja de São Pantaleão.
Cenários de Perto da meia-noite
Perto da meia-noite, um romance centrado nas reminiscências da juventude de Josué Montello, tem no Liceu Maranhense seu cenário principal, quando a ambiência é São Luís. Logo no início do capítulo II, da Primeira parte, diz o narrador homodiegético: “Nesses dias distantes, o Liceu era o Liceu. Tão importante em São Luís, quanto o Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro. Com um primoroso elenco de professores, recrutados em concursos renhidos.
[...]
A meio caminho entre o Desterro e a Praia Grande, o Liceu ocupava a metade de um quarteirão da Rua Direita entre a Rua da Estrela e a Rua do Giz. Beiral saliente, janelas de sacadas de ferro, portal de pedra, a escada também de pedra, dois pátios internos, a sala da secretaria, a sala do diretor, e a vasta varanda circular abrindo para um dos pátios.
[...]
No dia em que vesti pela primeira vez o dólmã cáqui e a calça comprida da farda do Liceu, senti que deixara de ser menino – o menino de calça curta da Escola Modelo.”
Foto: Reginaldo de Jesus
Liceu Maranhense
Um episódio marcante nesta história foi, sem dúvida, o casamento de Glorinha na Igreja de Santo Antônio. “No momento da Marcha nupcial, quando a Glorinha e o Daniel, de costas para o altar, deviam percorrer de volta a passadeira vermelha, que se estirava entre as duas orlas de bancos, na nave principal, precisamente nesse instante, um trovão estalou por cima da igreja, depois que um clarão se abriu nas sombras do Largo de Santo Antônio, e a luz elétrica se apagou de repente, tanto na rua quanto no templo. E isso fez que a cerimônia adquirisse de improviso uma feição estranha, com a iluminação da igreja reduzida ao clarão dos círios do altar. (Perto da meia-noite – Segunda Parte, capítulo II)
Outra cena que não poderia ficar de fora é a que se passa no Sebo do Polari, na Rua do Sol. O narrador-personagem descreve o livreiro e se surpreende com um novo acervo que ele pôs à venda: a biblioteca do professor Daniel. Este tivera que vender sua biblioteca inteira para pagar o tratamento de Glorinha em Friburgo.
Cenários de Um beiral para os bentevis
Foto da web
Rua do Trapiche
A Rua do Trapiche, na Praia Grande, é o cenário principal de Um beiral para os bentevis. Andei muito pela Praia Grande, até porque ela é um cenário cativo na saga montelliana, e eu estava hospedado em suas imediações. Eu diria mesmo que esse romance é uma verdadeira declaração de amor à Praia Grande, mesmo sem ocultar-lhe os problemas. É o que vemos na conversa entre Magda e sua tia Francisquinha:
“Vou ser franca contigo, Magda. Se eu soubesse que a Praia Grande era isso que eu vi nessa tarde de domingo, não tinha saído de casa. Não, não tinha. Sair para quê? Para ver paredes pichadas, rótulas partidas, casas destruídas, sobrados entregues ao mato e às ratazanas? Ruas esburacadas? Ralos entupidos? Os pés de mamona e as trepadeiras crescendo nos telhados? Lixo nas calçadas?’’
Entretanto, Magda vaticina: “Tudo isso existe, reconheço. Mas vai acabar. Vai. Para ressurgir a Praia Grande de antigamente. E ainda mais bonita. Como deve ser.” (Um beiral para os bentevis – As boas notícias, capítulo I) Eu mesmo pude confirmar o começo da concretização do vaticínio de Magda, quando constatei melhorias na Praia Grande feitas pelo Projeto Reviver.
Foto da web
Praia Grande
E o sonho de Magda em relação à Praia Grande vem à tona, nesse mesmo capítulo: “Olhe daqui. Que maravilha! Aqui, sim, é que devia ser o campus da Universidade, com as escolas, as residências de estudantes e professores, o teatro, o cinema, o clube de regatas, as praças de esportes. Não quiseram? Quero eu.”
No capítulo final, Montello faz referência a si mesmo, metalinguisticamente, pela voz de seu narrador, quando evoca seu sonho de transformação da Praia Grande: “Um reitor imaginoso, da Universidade Federal do Maranhão, sonhara transformá-la em campus universitário (...) aproveitando as construções de pedra e cal que vinham de outros séculos; mas a ideia grandiosa só ficara no sonho e na promessa...”
Esse sonho de Montello fora antes registrado numa página de seu Diário da tarde, datada de 29 de janeiro de 1967, por ocasião da instalação da Fundação Universidade do Maranhão.
Cenários de O baile da despedida
Se o sobrado de azulejos verdes no Largo do Carmo onde funcionou, no passado, a Pacotilha, esquina com o Beco do Quebra-Bunda, é o cenário de boa parte de A décima noite, Montello elegeu o sobrado na extremidade oposta a esse, no mesmo largo, para pôr ali dona Catarina, a maranhense que garante ter ido ao baile da Ilha Fiscal. Eis o que diz, sobre este logradouro, o jornalista que vai no encalço de tal história em São Luís:
“Depois, ao sair à rua, atravessei a Praça Benedito Leite, entrei na rua de Nazaré, saí no Largo do Carmo, em companhia do Gil e de sua imensa máquina, até que o Gil parou, servindo-me de cicerone, na esquina fronteira à do sobrado que se alongava para a ladeira da rua, com cinco janelas de frente, nove de fundo, todas fechadas: ‘É aí que mora a senhora do baile – sussurrou-me.’” (O baile da despedida, Primeira parte, capítulo 5)
Foto: Reginaldo de Jesus
Casa de D. Catarina
E Gil ainda disse mais sobre o sobrado de dona Catarina: “Não é igual aos outros, aqui do largo. De janelas retangulares, fachada sóbria, e com ar de ser mais velho que os outros.” (Idem)
Para quem ainda não leu este romance, não se deve imaginar, pelos trechos transcritos acima, que o jornalista desconhece São Luís. Pelo contrário. Ele é ludovicense, embora morasse no Rio e não pisasse em sua terra natal há muito tempo. Montello pôs muito de si na composição dessa personagem, assim como o fez com os narradores homodiegéticos de Antes da meia-noite e de Uma sombra na parede, como veremos em seguida.
Outro cenário que vale a pena ser mencionado aqui é o caminho percorrido pelo jornalista quando estudava no Liceu. Este mesmo itinerário fora percorrido pelo personagem-narrador de Perto da meia-noite, pelas razões óbvias já apontadas. Então fiquemos com uma dessas evocações montellianas, na pele do jornalista:
“Da Rua Direita, onde ficava o Liceu Maranhense, à rua dos Remédios, onde passei minha juventude, o caminho não era pequeno. Para juntar os dois pontos, eu subia a Rua dos Afogados até a Rua do Ribeirão; quebrava à esquerda, entrava na Rua do Sol, atravessava o Largo do Carmo, entrava na Rua Formosa, chegava à Rua Direita, e ali encontrava, num imenso prédio de dois pavimentos, a algazarra do meu ginásio, com seu pátio repleto, à espera de que o bedel badalasse a sineta para a entrada na sala de aula.” (O baile da despedida, Primeira parte, capítulo 7)
Cenários de Uma sombra na parede
O sobrado em frente à Escola Modelo, no Largo de Santo Antônio, é o cenário principal de Uma sombra na parede. Ali mora Ariana, a protagonista deste romance. “De um dia para o outro, o largo tranquilo, de poucos transeuntes, ganhou vida nova com o alvoroço da escola, no prédio fronteiro ao sobrado. O casarão levara anos e anos para ser reformado. Agora, ali estava, repleto de meninos e meninas, com a bulha da tabuada, os gritos da hora do recreio, a cantoria do Hino nacional e do Hino maranhense, o alegre bater da sineta para o início das aulas.” (Uma sombra na parede, Parte 1, capítulo 4)
Fui conhecer este largo por causa, principalmente, da histórica Igreja de Santo Antônio e da Escola Modelo. Nesta igreja, Ariana deixou dois noivos esperando em vão por ela; alguns séculos antes disso, ecoou nesta mesma igreja, a voz do maior pregador barroco luso-brasileiro e o romance em voga confirma isso:
“O seminário, antigo Convento de Santo Antônio, à direita da igreja, desce a ladeira que leva ao Cais da Sagração. O mar, antes da muralha do cais, galgava o aclive do terreno, à hora da preamar. Do púlpito da igreja, em 1654, pregou aos peixes o padre Antônio Vieira, e esses peixes se teriam aproximado, ao longo da orla da praia, para ouvir o jesuíta, que assim os aconselhava: ‘Peixes, quanto mais longe dos homens, tanto melhor; trato e familiaridade com eles, Deus vos livre.’” (Uma sombra na parede – Prelúdio)
Foto: Reginaldo de Jesus
Igreja de Santo Antônio
Infelizmente, não havia mais o púlpito onde pregou Vieira. Dele, só vi uma estátua do lado de fora da igreja e com os dedos de uma das mãos quebrados. Porém, visitei o túmulo de Donana Jansen, na Capela Bom Jesus dos Navegantes, que fica na lateral da igreja de Santo Antônio. Esta personagem da história do Maranhão ficou bastante popular por suas crueldades com os escravos e pela vasta fortuna que amealhou enfrentando o patriarcalismo de sua época de cabeça erguida. Sobre ela, diversos romances da saga montelliana repetem a frase que virou uma lenda: Donana Jansen sai de seu túmulo nas noites de sexta-feira e dá umas voltas de carruagem pela cidade...
Foto: Reginaldo de Jesus
Túmulo de Donana Jansen
Quanto à Escola Modelo, não foi neste endereço do Largo de Santo Antônio onde Montello estudou o jardim de infância e o curso primário. Conforme ele mesmo conta em seu Diário do entardecer, numa página de 23 de novembro de 1972, o prédio da Escola Modelo ocupava toda a esquina da rua da Paz com a rua de São João, em frente à igreja de São João. Foi neste mesmo endereço onde também estudaram Aspásia, de Pedra viva, e Ariana, de Uma sombra na parede, além de Aluísio, de Sempre serás lembrada.
Cenários de Sempre serás lembrada
Sempre serás lembrada é o último azulejo romanesco do mural maranhense de Montello, e, talvez por isso mesmo, o escritor se despeça dos cenários de sua velha São Luís de forma extremamente romântica, quando a coteja com a nova São Luís que acaba de nascer. O Aluísio, protagonista desta história, voltou ao Maranhão, depois de muitos anos na Europa, com uma dupla missão: resgatar seu passado e construir seu futuro. O resgate do passado significa revalorizar a cidade antiga; a construção do futuro, sua contribuição para o desenvolvimento da cidade moderna.
Vejamos como Aluísio verá este embate entre as duas cidades: “No meu regresso a São Luís, se encontrei intacta a velha cidade onde nasci, encontrei também, do outro lado, na foz do Rio Anil, a cidade nova que começava a despontar, para ser ao mesmo tempo o seu prolongamento e o seu contraste. Por aqueles dias, já São Luís entrara a expandir-se para o outro lado da ilha, com a sua ponte sobre o mar, ligando a velha e a nova cidade. Eu próprio, embora preferisse a cidade de minha juventude, iria contribuir, como arquiteto e como engenheiro, para que a cidade nova continuasse a irromper vitoriosa, substituindo ali as orlas de palmeiras onde ainda cantariam os sabiás.” (Sempre serás lembrada, Primeira parte, capítulo I)
Foto: Reginaldo de Jesus
A nova São Luís
Aluísio sabe bem que o cenário principal da São Luís de sua juventude é “esta bela casa do Largo dos Amores, perto da branca ermida de Nossa Senhora dos Remédios.” Ele voltou para morar nela, mas antes vai reformá-la para deixá-la exatamente como no tempo de sua infância e adolescência.
Enquanto isso, no outro lado da ilha, outro cenário vai encantá-lo: “E eu próprio, sabendo que obedecia também a uma opção ajustada aos novos tempos, já possuía o meu apartamento de cobertura, erguido por mim, idealizado por mim, e do qual descortinava a imensidão da Barra, no contraste com a cidade antiga, que ainda subia as velhas ladeiras, partindo da Avenida Beira Mar.” (Sempre serás lembrada, Segunda parte, capítulo II)
Embora Aluísio amasse sua velha São Luís e ainda conseguisse ver uma beleza peculiar nela, não deixava de enxergar seus problemas: “... e nada me pareceu mais triste, mais melancólico, ao passar pelos sobrados da Praia Grande, no silêncio das ruas mal calçadas, do que ter a visão do abandono e da decadência que envelheciam ainda mais as casas velhas, outrora orgulhosas e aristocráticas. E até quando resistiriam? Iriam repetir o abandono e as ruínas de Alcântara, do outro lado da baía? Ou terminariam por encontrar quem as preservasse, como representantes e testemunhas de toda uma época de opulência?” (Idem)
Mas o maior receio de Aluísio, logo esquecido, era ver a velha São Luís sendo sepultada pela nova. Felizmente, como já se havia previsto em Pedra viva, a nova São Luís, ainda que desvalorizasse a velha, seria sua salvação.
Conclusão
Vivi uma experiência ímpar ao passear pelos cenários da velha São Luís dos romances e da vida de Josué Montello. Pude constatar que, ao contrário da dificuldade de encontrar os cenários da obra romanesca de Machado de Assis e Aluísio Azevedo, no Rio de Janeiro de hoje, é bastante possível a recomposição dos ambientes romanescos da saga maranhense de Montello, na São Luís de nossos dias. O Rio de Machado de Assis já não era mais o mesmo pouco antes de sua morte, e o Bruxo do Cosme Velho deixou isso registrado em carta a seu amigo Magalhães de Azeredo.
No que concerne às ruas de São Luís, concordo com o pensamento de Montello, em sua crônica “Velhas ruas de Província”: são ruas de alvorada, inundadas de luz matinal. Caminhando por elas, busquei os passos do autor de Labirinto de espelhos perdidos no tempo e no espaço. Também flagrei, auxiliado por minha memória, as personagens de seus romances maranhenses em várias cenas de suas vidas. Sem dúvida, pretendo fazer outras incursões por esses cenários para descobrir novas nuances.
Enfim, só me resta repetir aqui uma frase que virou um verdadeiro lugar-comum nas vozes de diversas personagens da saga maranhense: “Não há Maranhão como este!”
Reginaldo de Jesus é professor de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira no IFS - Campus São Cristóvão. Contato: [email protected]