Edição 202 - Brasília, 07 de fevereiro a 06 de março de 2016

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Ficção

Nenhures
Uma miss�o misteriosa

Por Paulo Lima

 

1.
Eu deveria partir de não sei qual lugar para não sei onde. Quando, não me foi dito. Para encontrar não sei quem. E não sei por qual motivo.

2.
Mandaram apenas um bilhete com os dados da missão: encontrar alguém. Não sei onde estava no momento em que o recebi. Tampouco me recordo da data.

3.
Menos ainda do aspecto do bilhete. Por segurança, tratei de sumir com ele. Creio que o incinerei e soprei suas cinzas não sei pra onde. E muito menos quando, claro.

4.
Tinha eu uma missão. Precisava encontrar alguém. Só não sabia quem. Nem onde. Nem porque.

5.
Talvez os detetives tenham um termo para uma situação dessas, o tipo de situação em que o alvo da investigação não está bem definido. Creio que mesmo os melhores deles devem tê-la vivenciado um dia. Passam dias e horas mascando um charuto sem acendê-lo, dando tratos à bola para achar uma solução.

6.
Creio que é uma investigação top secret, como podemos ver nos filmes americanos. Numa cena noir, uma mão passa um envelope para outra mão. Ninguém diz uma única palavra. É um chiaroscuro que fala por si só. O mistério prescindindo de palavras que o expliquem.

7.
Eu estaria numa missão digna de um Sherlock? Ou de um Poirot? Ou de um Maigret?

8.
Mas por que eu? Faço não sei o que na vida, não sei onde, e não sei como. Tudo que sei é que me meteram nessa missão. Encontrar alguém. Quem? Onde? Por quê?

9.
Quando você não sabe o que fazer, nem por onde começar, feche o escritório e vá dar uma volta. É uma regra investigativa. Está no Livro de Ouro dos Detetives & Afins.

10.
Foi o que fiz. Vim gastar sapato não sei exatamente onde, nem a que horas.

11.
Andei não sei quanto tempo. O dia estava frio. Por isso apertei o passo. Até suei um pouco. Me fez bem.

12.
Na volta, entro não sei em qual botequim. A regra número dois do Livro de Ouro dos Detetives & Afins é: mande ver uma bebida depois de caminhar um pouco. Segui à risca.

13.
Nem uma mísera ideia me visitou depois da caminhada. Tudo que sei é que tinha de encontrar alguém. Não sei onde. Não sei quando. Não sei porque.

14.
Dei um cochilo e acordei não sei a que horas. Sei que a tarde ia alta. O sol me lambia a testa. Já devo ter visto isso em algum filme. O detetive acorda e vai até uma banca de revista.

15.
Fui até a banca de revista. Olhei não sei quantas delas, não lembro o que diziam. Troquei uma ou duas palavras amistosas com o jornaleiro, de quem não reconheceria o rosto, e fui embora.

16.
Tomei um metrô em não sei qual estação e fui até uma biblioteca da qual não lembro o nome.

17.
Essa regra não está no Livro de Ouro dos Detetives & Afins, mas eu resolvi inventá-la. Regra: vá até uma biblioteca, retire um livro da seção policial, leia um trecho qualquer em voz alta. Assimile e ponha em prática o que leu.

18.
Vou até a seção dos romances policiais. Eu poderia muito bem me passar por um escritor em busca de inspiração. O fato é que eu não estava muito distante disso.

19.
Retiro um livro ao acaso, de cujo título não me lembro. Abro numa página aleatoriamente. Seja lá o que venha a encontrar, aquilo poderia me dar alguma inspiração.

20.
Um corpo jaz à beira da estrada. Ele não dirigia tão rapidamente a ponto de não tê-lo notado, ou então era seu faro já aguçado para aquele tipo de situação. Patrulhar rodovias anos a fio o fez desenvolver um sexto sentido instantâneo. Freou e desceu do carro.

21.
Ele releu o trecho do romance do qual não lembrava o título, tampouco o autor. Releu mais uma vez. A conclusão a que chegou é que deveria tomar uma estrada para fora da cidade.

22.
Ele não guardou a localização da estrada. Menos ainda do dia em que a percorreu. Sequer tinha noção de quanto tempo gastou até que chegasse a um lugarejo do qual ele já não se recordava.

23.
O lugarejo tinha apenas uma rua principal. Era praticamente uma pequena cidade fantasma. O Livro de Ouro dos Detetives & Afins ensina: numa cidade estranha, comece pelo bar.

24.
O bar estava às moscas. Ele foi até o barman e pediu uma bebida da qual não guardou o nome. – Onde estão todos?, perguntou. O barman apontou com o queixo numa direção e falou “foram todos embora”.

25.
Sim, era bem uma cidade fantasma, talvez até aquele barman fosse um deles. Tomou a bebida de um gole só e saiu. Talvez houvesse um cinema na cidade.

26.
Do cinema, ele não lembra o nome. Sabia apenas que estava passando um filme. Mas do título ele não tem pálida lembrança. Só sabe que comprou o ingresso com uma lacônica vendedora. Entrou.

27.

Lá dentro havia apenas um homem com um enorme chapéu na cabeça. O filme mostrava uma história policial. Nela, um homem recebe uma missão. Encontrar alguém. Não se sabe quem. Nem onde. Nem porque.

28.
Ele tomou um susto. Era sua história. De súbito, ficou de pé, sem acreditar no que estava vendo.

29.
Foi quando notou que o homem de chapéu o observava. Então tudo aconteceu muito rapidamente. O homem se levantou, se aproximou e atirou nele.

30.
Ele caiu levando as mãos até o ponto onde a bala o havia atingido. A respiração ia sumindo. Ele estava morrendo.

31.
A esposa o acordou. Ele estava suando horrivelmente e gritava. Ela perguntou o que estava acontecendo. Ele disse que acabara de ter um pesadelo. Do qual não mais se lembrava.

 

Paulo Lima é jornalista e editor da revista eletrônica Balaio de Notícias.