Edição 201 - Aracaju, 13 de setembro a 11 de outubro de 2015

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Crônica

Cães - parte final
Uma nova etapa

Por Mendonça Filho

 

Ele foi o terceiro, sem levar em conta o que dei a você, e se não o ponho na lista é porque além de ser teu, pouco tempo depois saí de casa. Por motivos inextrincáveis, lá estava eu meio que repetindo a história, meu pai indo embora quando eu tinha seis anos, e, mais de duas décadas depois, você com cinco me ajudando a colocar as coisas no banco de trás do carro, “Isso é muito pesado para você, filho”, “Não, eu aguento, pai”. Ao menos havia a certeza de que tua mãe não entraria em contato, nem aos gritos numa ligação nem via SMS em caixa alta, ordenando que eu fosse buscar a porra do meu cachorro. Afinal, por maiores pontos de contato, coincidências ou qualquer nome que se dê, que vai de eu ter sido pai na mesma idade que o meu pai, até ela dar aulas três turnos igual a minha mãe fazia, entre outras tantas coisas, eu e ela não éramos, no fim das contas, meu pai e minha mãe, sobretudo em um aspecto: havíamos decidido nos separar enquanto tudo se restringia à tristeza e à decepção e não a ódio. Nos teus aniversários seguintes lá estaríamos os três juntos, sim, e nos dias do meu nascimento eu ouviria a voz dela desejando felicidade e força, sempre, e na casa de vocês eu não entraria apenas no dia de morte do teu cão, mesmo a partir do dia em que ela estivesse morando com outro cara.

Para cada etapa da vida, um cachorro. Foi o que pensei enquanto dirigia de volta para casa, com o cão sentado no banco do carona. Em certa medida, minha infância foi marcada por aquele cachorro que nem bem chegou foi mandado embora. Assim como minha adolescência pode, pôde, acredito eu, ser traçada, destrinchada, partindo da minha relação com o Pintado. Não foi exatamente isso que fiz, narrar a você? E agora, perto dos trinta, pai, divorciado, órfão de pai e mãe, depressivo, eu recomeçava, não, seguia em frente, uma casa de dois quartos e não um apartamento de três, sem muita coisa além de algumas centenas de livros, um porta-retratos, um PS3, um quadro, algumas sementes de tomate, pimentão e coentro, e, também, um cão. Cortando a 13 de Julho sentido Centro, onde escolhera morar depois de anos num bairro majoritariamente de estudantes universitários, antes de dirigir até a um pet shop (pomadas, sabonetes, esparadrapos, seringas, remédios, vasilhas, sacos de ração, coleira), decidi que era o momento certo de comprar um prato, um garfo, uma faca, uma colher, um copo, uma panela, um saco de arroz, outro de feijão, duas postas de peixe, meio quilo de carne, uma garrafa de uísque e outra de água. Para isso, baixei os quatro vidros, no estacionamento privativo e bem iluminado, deixei o cão deitado no banco. Pedi ao segurança que passasse o olho no carro preto, por favor, só por precaução; o cão ainda não tinha forças para pular pela janela, tampouco vontade, dada as circunstâncias, e de ser roubado não havia perigo, pois ninguém ia querer nem chegar perto de um animal naquele estado.

Poderia ter sido uma planta, um peixe ornamental ou mesmo um gato, mas quando sua mãe e eu reconhecemos que não dava mais, o que fiz, na primeira semana na nova casa (algumas caixas ainda empacotadas, uma torneira ainda quebrada, o cheiro de tinta ainda presente), foi adotar um cachorro. Não é, todavia, que pensei na solidão, nos cinco dias da semana longe depois de cinco anos de convivência diária: banho, mingau, cantiga de ninar, lágrima e muco e grito e sorriso, o inédito gole d’água e a colherinha de comida sólida número um, a primeira sentada e a primeira engatinhada que deu, o pa-pa e o ma-mã, enfim, cada etapa do teu desenvolvimento, ao mesmo tempo acontecimentos ordinários e extraordinários, tudo pelo que todo bebê saudável passa, mas ainda assim motivos de pequenas celebrações (sem receio de parecer bobo, porque, como eu já disse, dizer não ao cinismo sempre), eu telespectador e coadjuvante das tuas idiossincrasias, e mais, mais para frente, as leituras (você lendo para mim “um livro de gente grande”, enganchando em algumas palavras, atrapalhado em certas construções sintáticas, indo e voltando nas frases, o que é isso, o que é aquilo), os desenhos e os filmes, os passeios de bicicleta, as braçadas na piscina do clube, e, sobretudo, aquelas noites: você, com o filhote de cachorro debaixo do braço, espremendo-se entre o meu corpo e o da tua mãe numa madrugada tempestiva ou depois de um pesadelo ou por conta de um simples estalo de um móvel, sem saber que em breve um lado da cama estará vazio, e quando voltar a não estar vazio será outro que não eu ali.

A adoção aconteceu porque numa noite de inverno uma colega do jornal recolhera da rua este cachorro todo estropiado. Era velho, estava machucado e nas feridas havia bichos. A magreza que lembra a morte estava lá, e o focinho que futuca restos também, e a pata que manca e a mancha de sangue seco no pelo, idem: a decadência do animal exposta. Como tantas vezes, com tantos cachorros de rua, ela seguira em frente. Como quase todo mundo faz. Ou a gente simplesmente ignora ou lamenta, e se tem um sanduíche na bolsa ou na mochila, pode até ser que dê ao pobre diabo. Mas mais que isso? Que um lamento? Dessa vez, porém, já no apartamento, depois do banho, ela ainda pensava nele. Então cedeu ao impulso e desamarrou a toalha da cabeça e sem pentear o cabelo molhado ou trocar o pijama por outra peça, de pantufa, refez o caminho, duas ruas, um “L” invertido. O cão estava encolhido sob o toldo de uma farmácia, perto do tambor de lixo. Os olhos fechados. Sabia que ele estava vivo, pouco, por conta da respiração, o sobe e desce dos ossos cobertos por uma mínima camada de pele. No carrinho de bebê do filho que não nasceu, que ela lembrara de pegar antes de sair, sem ter que lidar com resistência em nenhum grau acomodou o animal e prendeu-o com o cinto num clique e voltou para casa. As mesmas pessoas que nos banquinhos do condomínio tinham visto o barrigão durante quase sete meses e, no regresso do hospital, não tinham visto nem circunferência na região do abdome nem bebê no colo, as mesmas pessoas que, meses depois, deixaram de vê-la passar de mãos dadas com aquele rapaz, tinham achado estranho quando, sem o protocolar olá ou boa noite, ela passara a toda velocidade com o carrinho vazio. Igual ou em maior medida de estranheza causou a volta, um vira-lata fedorento bem onde estaria o filho dela, se ele tivesse nascido, se não fosse natimorto. Ela me disse que sequer registrou a presença dos tais moradores: na ida, aflita por chegar a tempo; na volta, nervosa para subir e pesquisar na internet uma clínica veterinária que tivesse serviço de emergência vinte e quatro horas. Dias depois é que soube das “testemunhas” e da conjectura (“A coitada surtou”), a fala de uma mulher mais ou menos da sua idade, da qual não sabia o nome mas que costumava trocar ois, representando os outros, educada, pisando em ovos, como se diz, porque não queriam levar o assunto ao síndico, por isso ela estava ali, para dizer que como se sabe, não é permitido criar animais no condomínio.

E neste ponto está a confluência das nossas histórias. O mesmo inverno, a mesma noite. Em outro bairro da cidade, eu e sua mãe acertando os últimos itens que envolvem um divórcio, a separação amigável de um casal com menos de trinta anos, juntos a seis, nós, um filho de cinco, você. Dividindo uma garrafa de vinho à mesa da cozinha que escolhemos juntos, antes de te chamar no quarto (você jogando videogame com teu cachorro aninhado nas pernas cruzadas), para te contar, com frases claras e curtas, quer dizer, à medida em que avançamos, na hora do ponto continuativo surge uma vírgula, alongamos, caímos em reiteração e redundância, completamos a sentença do outro, reticências, e sob a luz do abajur que ilumina a nós três, na sala, eu e sua mãe sentados no chão sobre as pernas e você em pé, surge uma espiral de frases que buscam dar conta de algo captado por ti muitas palavras atrás: que acabou. Então, durante a semana Ângela conta a própria história, a que te contei acima, não exatamente a mim, e sim à toda equipe da redação, e quando por acaso nos encontramos na máquina de café expresso, embora até o momento não tenha pensado conscientemente no assunto, digo que tenho espaço e que posso ficar com o cachorro de modo definitivo, ou em caráter provisório, ela decide, ela pergunta “Puta que pariu, sério?”, respondo “Sim, você diz quando devo ir buscá-lo”, ela dá uns pulinhos eufóricos e, no reflexo dos óculos escuros dela ― está saindo para uma pauta ―, percebo que estou sorrindo pela primeira vez em dias.

Poderia ter sido uma corda, uma gilete, um revólver, mas quando sua mãe e eu reconhecemos que não dava mais, o que fiz, na primeira semana na nova casa (algumas caixas ainda empacotadas, uma torneira ainda quebrada, o cheiro de tinta ainda presente), foi marcar uma consulta e conseguir a receita do antidepressivo. O que acontecerá é que toda sexta-feira vou apertar o botão vinte do prédio caindo aos pedaços, seguir até o consultório, ser atendido, sentar na poltrona de couro e, em todas as vezes, o cão estará a meu lado, calado, quieto, triste. E se a cada sessão, há a tentativa de compreender como cheguei a este ponto, do cão jamais se saberá quais foram os passos dados até aquela noite em que Ângela o resgatou da rua. Idade, não sei. Não sei quantos mais nasceram na mesma ninhada que ele, se a cachorra mãe era de rua ou se alguém se desfez de cada um dos filhotes, ou se depois de afogar um por um num tanque, não teve estômago para o último e simplesmente soltou o bicho em qualquer esquina da ciadade, se algum dia ele teve um dono e fugiu e/ou se perdeu, se levou tapas e chutes e cintadas, se tinha um mordedor em forma de osso, se já matou um gato, se quase já foi atropelado enquanto tentava atravessar a rua, se um dia recebeu um nome ou um afago ou o quê.

Quando ele melhorou, as feridas cicatrizadas, a diarreia contida, a magreza doentia substituída por nacos de gordura, passou a me acompanhar também às caminhadas. Por conta da idade, o veterinário desaconselhou corridas. Íamos à Ponte do Imperador e, ladeados pelas águas do Rio Sergipe, víamos o pôr do sol e a Barra dos Coqueiros em miniatura. Ele gostava de esticar as patas sobre os ferros de proteção e, entre elas, repousar o maxilar. Ficávamos assim até a escuridão tomar conta do cenário, eu fumando um cigarro, ele comendo algumas bolinhas de ração que eu colocava no bolso ante de a gente sair. Você o conheceu. Há uma foto de nós três juntos, tirada por Ângela. Dos três olhares, o teu é o único que ainda presta; os outros quatro olhos, os meus e os do cão, dialogam entre si, e talvez seja em parte por isso o motivo de nos darmos bem: um sofrimento silencioso, que brotava das entranhas, aparentemente irreversível. Talvez você já não lembre dele, nem a raça, nem o nome, nem a cor. Talvez você olhe a foto e pergunte quem ele era. Sem lembrar de quando eu parava o carro em frente ao prédio, ele no colo de Ângela. Nós cinco, eu você, Ângela, o teu cão e o meu seguindo para o Parque da Cidade ou para a Praia do Saco; Ângela se curvando para trás ― no espaço entre os bancos dianteiros, as clavículas e as veias do pescoço saltadas formando uma imagem que me atingia com força ―, passando a você o meu cachorro ― o nosso, meu e dela ― e você em troca passando o seu, trocando também um sorriso, vocês dois.

Começou como é de se esperar, ela perguntando como ele estava, eu respondendo que bem, gordo e sedentário, como todo bom velho, e, numa noite de dois copos a mais de uísque, enviei uma selfie minha e dele, ela respondeu perguntando se podia visitá-lo qualquer dia desse, sim, claro, um domingo de sol, nenhum dos dois de plantão, carnes, cervejas e baseados, nos três, eu, ela e o cão no quintal; nos três, eu, ela e o cão na Ponte do Imperador; nos três, eu, ela e o cão, no tapete da sala, morgados; nós dois, eu e ela na minha cama; nós quatro, outros dias, eu, você, ela e o cão, na praia e na Orla e na passarela e na minha cidade de origem também.

Um dia ele dorme e pronto, fim. Três anos comigo, conosco. Era velho, lembra? Eu ligo para Ângela, ela toca a campainha, eu conto a ela sobre eu e meu pai, muitos anos antes, enterrando o Pintado, nos arredores da cidade, uma outra cidade. Porque não havia espaço no quintal. E, como desta vez, jogar o animal morto no lixo não era uma opção. Mas agora há um quintal enorme, ainda que a casa não seja minha e sim alugada, não importa, e eu não tenho pá, não importa, eu saio e compro e volto e cavo; e ela enrola o cão no tapete, o mesmo em que dormimos nós três uma vez, lá no início, e o deposita no buraco, enquanto limpo com a manga da camisa a testa suja de poeira e suor. Ela me olha primeiro muito séria, depois com um sorriso, triste, é verdade, mas mais que isso, e sei que esse sorriso carrega mais significado do que um sem número de palavras pode atribuir. Sob a luz do sol do fim de tarde filtrada pelo pé de manga, eu sentado numa cadeira de praia, observo: ela joga a primeira pá de terra sobre o cão, e a segunda e a terceira e a quarta e a quinta...

 

Mendonça Filho, 24, escreve.