Edição 201 - Aracaju, 13 de setembro a 11 de outubro de 2015

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Cinema

BB & Truffaut
Conversa sobre dois ícones franceses

Por Cesar Carvalho

Foto: Divulgação

Brigitte Bardot, musa do cinema francês

 

Final de mês e a programação cultural está intensa. A metrópole é assim, eventos a cada dia. Artistas de A a Z circulam. Preços vários. A escolher. Vi, mais de uma vez, a exposição de Arnaldo Antunes, o multimídia com suas Palavras em Movimento. Perdi o lançamento do livro de Augusto de Campos, na Casa das Rosas, mas vi um monte de outras coisas. Muito, mas muito interessantes.

Mas este mês está particular. Muita exposição de obras de arte, literárias, poéticas e sobre artistas de cinema, além dos filmes, nos diferentes circuitos da cidade. Compromissado com meu editor, resolvi escrever sobre dois eventos ligados ao cinema francês: a exposição de fotos da atriz Brigitte Bardot e a do diretor da nouvelle vague, François Truffaut.

Brigitte Bardot, chamada pelos fãs de BB, foi a musa de uma geração. Participou da transição de um cinema, vamos chamar assim, mais convencional para um cinema inovador. TV à época era coisa rara e BB era mais conhecida pelas fotos das revistas e filmes que as telas cinematográficas exibiam.

Truffaut, no tempo em que BB era a musa de muitos, exercia seu papel de crítico cinematográfico na revista Cahiers du Cinéma e iniciava sua carreira como realizador, ajudando a criar o cinema novo francês. Seus filmes são apaixonantes. As histórias surpreendentes. E os atores ótimos.

O tema dá um bom caldo. Brigitte Bardot & Truffaut, momentos de transição do mundo industrial para o de consumo. A criação de novas linguagens. Período em que a mentalidade tornou-se mais flexível, solta, atrevida e liberal.

Mas, ao conversar com amigos na mesa de bar, o que antes parecia simples, se complicou. Vircolin, com sua ironia ácida, perguntou-me como uma pálida imagem de um passado, uma sombra, pode captar alguma coisa? Além disso, quantas leituras a gente não faz de um mesmo fato?!

O que estas duas sombras - congeladas em fotos, documentos, fotogramas, papéis, enfim, pedacinhos de histórias – podem nos dizer sobre nossa história recente? Tanto uma quanto outra viveram na mesma época, a segunda metade do século XX. Truffaut encerrou sua carreira ao morrer, no início da década de 80. BB continua viva e dedica seu tempo à defesa dos direitos dos animais. Abandonou o cinema há décadas.

Vircolin, todavia, não é o responsável por minha cabeça tornar-se um poço de problemas. Foram as circunstâncias em que tudo aconteceu naquela noite. Explico. Estávamos em três no bar - eu, Vircolin e Genésio - e comecei a falar de minhas dúvidas sobre o texto que deveria escrever: as relações entre BB e Truffaut, seus diferentes papéis para o desenvolvimento da linguagem cinematográfica e a relação entre o cinema e o mundo da época.

Genésio manteve-se calado o tempo todo, mas Vircolin, como era de se esperar, ironizou minha preocupação acadêmica e argumentou que os conceitos que a gente tem das coisas são apenas sombras, ilusões. E a palavra, dizia com ênfase, é um código consensual, a gente concorda um com o outro que a palavra xis diz respeito à merda que tá ali naquele canto. Então é uma sombra. Brigitte Bardot, Truffaut, o que você vai ver deles? Pedacinhos de suas histórias pessoais. Um ossinho seco e duro. Um quase nada. Então você pode escrever o que quiser.

Nisso, chega nosso amigo Giba e a conversa muda totalmente de rumo. Animado, pede uma cerveja e começa a falar pelos cotovelos contando a história do assassinato de um dos principais traficantes da cidade. O cara entrou no carro, não andou dez metros e bum,explodiu. Não dá nem para identificar os corpos.

Genésio interrompeu seu silêncio com gargalhadas, gozando Giba. O traficante não tinha explodido não, tinha era levado um tiro. Foi ontem à noite perto da minha casa. Eu estava na janela, fumando, quando o vi entrar no carro. O carro não andou quase nada e um flash, uma faísca, e o estampido. Deve ter morrido na hora. Corri para a rua, queria ver o que tinha acontecido de perto, mas, quando cheguei, não tinha carro nem nada. Tinham fugido. Só não posso dizer se morreu porque só ouvi o tiro que saiu de dentro do carro. Sabe aquela luz do revólver quando a gente dá um tiro? Então, foi isso que vi. Tenho certeza que foi tiro, ah se foi!

Não dava para saber quem falava a verdade, se Genésio ou Giba, este, mentiroso de mão cheia, aquele, eterno gozador e cínico. De qualquer maneira, pensei, as interpretações do mesmo fato, num certo sentido, corroboravam a tese de Vircolin: as palavras são apenas hóspedes da realidade, nada além disso. A gente é o porteiro que as conduz para suas dependências.

Olha gente, dizia Genésio eufórico, tá no noticiário da TV o que a gente estava conversando. Mataram mesmo o traficante!

Pedi para o garçom aumentar o som e ficamos atentos à notícia. A âncora do jornal anunciou que havia sido elucidado o caso do traficante misterioso. Investigado por policiais, estava prestes a ser preso - um deles gravou as imagens do suposto bandido entrando no carro. E o flash, interpretado como tiro pelo Genésio e explosão pelo Giba, não passou do fósforo usado pelo suposto bandido para acender seu cigarro.

O final da notícia foi hilário: o traficante que provocou tanta celeuma não existe nem nunca existiu, segundo os policiais que investigaram o caso.

Caímos na gargalhada. Pedi mais uma cerveja. Resolvi que chegaria em casa bêbado. Depois de toda aquela conversa e a confusão sobre um bandido que nem sequer existia, melhor era ficar quieto.

Afinal, o que tem a ver BB e Truffaut?

 

Escritor e poeta. Publicou Toca Raul, crônicas e histórias sobre Raul Seixas, e Proesia, antologia poética. Contatos: [email protected]