Edição 200 - Aracaju, 16 de agosto a 13 de setembro de 2015

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Crônica

Cães parte 2
Ritos e desafios da infância

Por Mendonça Filho

 

Do meu segundo cão eu lembro que era um Pastor Alemão chamado Pintado, que uma vez ele matou um gato e depois de um chega-pra-lá com a pata, como se verificando se o animal estava realmente morto, embora o estado do corpo não deixasse margem para dúvidas, saiu de perto com o que me pareceu indiferença, o focinho de um vermelho que aludia a um farol de carro ligado numa noite sem lua e sem estrela e sem iluminação nos postes, mas era dia, no meio de uma tarde ensolarada, e o gato pertencia à vizinha. Eu lembro que minha mãe vomitou, e, sem ser proferida uma palavra a respeito da mudança no cardápio, pelo resto do mês nenhum tipo de carne foi serviço nas refeições. Diante dos três degraus que levavam à varanda, entre um bocado de plantas e flores e vasos e sapos de cerâmica, eu esperava pela dona do gato. O nome dela era Amélia, a essa altura certamente morta, e recordo de ter tocado o sino de ferro forjado onde repousavam dois pássaros de bronze, ter dado passos para trás, me desequilibrando nas escadinhas, até pisar ― eu estava descalço ― nas pedras portuguesas que compunham uma pequena trilha com início no portão de arabescos góticos. Eu não sabia como dizer, mas não foi preciso, porque sem que eu tivesse percebido, minhas roupas estavam imundas de sangue, e quando eu virei o pescoço na direção dos latidos de Pintado, meu cão ocultado pelo verde e pelo muro que separava nossas casas, ela olhou para o chão ao redor, acho que à procura do felino, e entendeu. “É melhor você colocar esse short e essa blusa pra lavar rápido, sangue não sai fácil”, foi o que disse.

Eu disse à minha mãe que agora eu tinha doze anos, não seis, e que não ia descartar meu cão como ela tinha feito quando eu era criança. Ela disse para eu tomar cuidado que qualquer hora dessas ele podia amanhecer duro, e a impressão que tive foi mais de ameaça do que de um alerta amigável. Ela se referia à dona Amélia, que poderia querer se vingar. Eu disse que nem todo mundo era ruim como ela, e ela deu uma risada escandalosa. Desde a morte do gato, eu tinha me aproximado da nossa vizinha, passando alguns fins de tarde em sua companhia, na varanda ou agachado no jardim, ajudando a arrancar ervas daninhas ou tomando suco de laranja e conversando sobre As aventuras de Tom Sawyer. O nome do gato era Leco, nome dado por seu marido, “morto há mais tempo do que você tem de vida”, ela disse.

Depois da devolução do Primeiro Cão ao meu pai, eu não tive mais animal de estimação ao longo da infância. Gato, coelho, hamster, cobra, lagarto, papagaio, peixe, rã. Na escola, quando a professora chegou à sala com animais, a fim de que as crianças cuidassem deles por um dia, eu inventei desculpas. Que eu ficava espirrando e me coçando toda vez que chegava perto de um gato. Que era melhor não arriscar levar um dos ratinhos nem um dos lagartos, porque meu irmão ― que não existia ― criava uma cobra. Que cobra não teria graça porque não seria uma novidade. Que era errado e triste deixar um papagaio preso numa gaiola e um peixe, num aquário. Que rã era um dos pratos preferidos da minha mãe, então eu preferia não correr o risco de a bichinha ir parar na frigideira. É claro que a professora não caiu na ladainha. Para tirar a história a limpo bastava procurar minha mãe numa das salas do Ensino Médio, e foi exatamente isso que ela fez. O resultado certamente não foi o esperado. Embora tenha agido na maior boa-fé, com aquele papo de investigar as razões da criação das narrativas que me livrassem de ter que voltar para casa com um bicho, do mesmo modo como meus colegas iriam, todos em êxtase desde o primeiro minuto, o caso é que minha mãe apenas disse, “Se o menino não quer a droga de um animal, ele não vai levar nenhum”, e voltou para dentro da sala de aula, porque nem todo mundo se ocupava com bichinhos, ela, por exemplo, tinha uma Equação do Segundo Grau para ensinar. Quem me disse tudo isso foi ela própria, que arrematou pegando meu queixo, “O que você devia ter dito era ‘Eu não quero’, e não ter inventado aquela baboseira ridícula”, e, levando as mãos às minhas bochechas, os dedos subindo até minhas têmporas suadas, como se quisesse espremer minha cabeça, olhando nos meus olhos, finalizou, “Eu tenho NOJO de mentira, foi por esse motivo que me separei do teu pai, não-seja-um-mentiroso”. Eu tinha oito anos.

Eu cresci certo de que a relação entre meu pai e eu nunca tinha sido a mesma depois de ele ter voltado lá em casa com a obrigação de levar o Primeiro Cão embora. Foi só muitos anos mais tarde que compreendi: estávamos fadados à uma relação rasa desde o princípio, porque daquele jeito era meu pai, afastado, circunspecto, introspectivo, não mudou por uma mulher, e não seria por um filho que mudaria, e não por não querer, mas ― e esta é, conscienciosamente, uma visão determinista ― porque não podia.

O que eu fazia com Pintado era correr todas as manhãs, antes da escola, seguindo a linha férrea, passando à frente do Convento, da Biblioteca Municipal, do prédio dos Correios, da praça da Matriz, da estátua do Cristo. No entardecer saíamos para a rua, comprar acarajé ou o pão. Os outros clientes ficavam ou com medo ou irritados ou as duas coisas, “Um animal desse aqui dentro”, mas o dono era um velhinho meu amigo que todo dia se aproximava e fazia um carinho em Pintado. Ele gostava de TV, e de dormir no tapete do meu quarto, e de brincar com um boneco Power Ranger remanescente de uma fase longínqua. Ele não gostava da minha mãe, nem de som alto, nem de ração enlatada. Como todo cachorro não era fã de banho, mas depois que se molhava entrava no modo resignação, à trovoada e bebês ele também não era receptivo. Ele vivia solto e nunca atacou nenhum dos meus amigos. Para minha mãe ele era um inútil, nem para proteger a casa servia, “Tá uma beleza”. Algumas pessoas, amigas dela em geral, ficavam receosas, não queriam entrar, difícil acreditar que um cachorrão daquele não ia arrancar suas pernas, aí eu precisava prendê-lo. Ele ficava choramingando, mesmo comigo lhe fazendo companhia e cafuné por quanto tempo a pessoa permanecesse na casa. Mais de uma noite ele foi me avisar que a porta da frente estava aberta ― indo até minha cama, latindo, refazendo o caminho, até que eu o acompanhasse. Nas nossas saídas foi o responsável por eu conhecer algumas meninas mais velhas graças a seu carisma. Diziam, “Que lindo”, perguntavam, “É brabo?”, alisavam seu pelo e se eu estivesse tomando um sorvete, sentavam ao meu lado e perguntavam qual o sabor e o que eu estava lendo. Éramos uma boa dupla.

Eu comprei Pintado quando tinha dez anos. De repente, como se tivesse ido dormir um garoto e acordo outro, eu quis ter um cachorro. Até então minha relação com os cães era de deliberada indiferença. Os garotos brincando com um Chihuahua nervosinho no aniversário de um dos amigos, e eu achando a cena patética. Um esquelético coberto de feridas fuçando restos podres, e eu achando normal. O cadáver coberto de moscas em meio ao lixo, e eu achando apenas fedorento. Acho que eu decidi, ainda que dificilmente tenha pensado nesses termos naquela idade, que não queria ser um cínico, nem um cara cuja principal marca é a indiferença. Eu estava seguindo aquele caminho sinuoso e, talvez sem volta, em relação a tudo. E, por mais brega que pareça, Pintado foi minha salvação. Eu queria simplesmente me envolver. Eu não queria me tornar meu pai ou minha mãe. Daí parei de lanchar, economizando dinheiro. Não pedi dinheiro a nenhum dos dois. Não perguntei se podia ter um cachorro. O porteiro da escola, com quem eu costumava conversar sobre HQs, conhecia um cara que podia me vender um. Meu dinheiro não pagava ― ou pagava, mas fui enrolado ―, e tive que entregar o dinheiro mais meu relógio, que não valia tanto assim do ponto de vista monetário, mas tinha sido presente da minha avó. Foi ali que descobri que era verdade o que volta e meia ouvia meu pai dizer ao telefone, quando eu estava na casa dele, que um homem tem que fazer o que tem que fazer. Nunca soube com quem ele falava nem sobre o quê. Na primeira vez que entrei no carro com Pintado dentro de uma caixa de papelão, a ração e as vasilhas na mochila, eu pensei que ele não fosse perguntar nada. Dias atrás eu tinha chegado em casa com a mesma caixa, e da minha mãe eu esperava perguntas, e o preparo para rebater crítica, bronca e tudo o mais tinha sido providencial. Ele, no entanto, não costumava sequer desviar o olhar, sempre reto, quando eu entrava no carro, as mãos apertando o volante a ponto de os dedos ficarem brancos. Mas o choramingo chamou sua atenção e ele bruscamente suspendeu o filhote pela pele do pescoço ― “Cuida-”, eu parando antes de terminar a palavra por conta do seu olhar recriminador, “Como ousa?”, parecia dizer ― e depois o colocou no colo e esfregou os nós dos dedos na cabeça de Pintado e o devolveu à caixa. “Agora ela te dá um cachorro”, ele disse com um sorriso desagradável. Eu disse, “Não, comprei com meu dinheiro”. Ele tinha rodado a chave na ignição, mas tornou a desligar. “Não se compra ― aqui ele fez uma cara de nojo ― cachorro quando se tem um monte por aí”, varreu o dedo na direção do para-brisa, “morrendo de fome e sendo assassinado”, ele disse. Eu pedi desculpa, ele disse que seja, que como tinha saído do meu bolso pelo menos eu provavelmente pensaria duas vezes antes de me desfazer do bicho. E finalmente pôs o carro em movimento. Eu permaneci calado, a garganta seca.

Eu não me desfiz de Pintado, ele morreu atropelado oito anos depois daquela conversa com meu pai. O motorista não estava em alta velocidade, nem bêbado, e parou para prestar socorro. Mas Pintado já estava morto. Ele tinha escapulido pelo portão aberto e ia atravessar a rua quando o para-choque acertou seu corpo. Eu estava com dezoito anos e como não tinha passado no vestibular, trabalhava num armarinho e estudava à noite. Pela primeira vez depois de todos os anos de separação minha mãe ligou para meu pai, que ligou para mim. “É teu cão”, ele disse. Eu o vi sentado ao lado da minha mãe no sofá, em silêncio. Ele não pisava ali dentro desde a vez que tinha ido buscar o Primeiro Cão. O corpo não estava na rua, mas sim na picape dele. Pedi que mostrasse o local exato do acontecido, ele me levou. Lá estavam o sangue e as entranhas do meu cão. Dona Amélia apareceu no portão e parecia mais triste do que quando Pintado matou seu gato. Porque às vezes a dor solidária é pior que a própria dor. Aproximou-se com a extensa mangueira que usava para irrigar a terra e as plantas. Olhou em meus olhos e refez o caminho de volta. Logo senti na palma a pressão da água e desviei a vista da mancha ― que de certa forma era Pintado ― incrustada nos paralelepípedos para a mangueira em minha mão. Lembrei das palavras de dona Amélia, muitos anos atrás, que se demorar o sangue não sai nunca. Eu lia bastante poesia durante o expediente, aí me pareceu poético deixar a marca de Pintado ali, até que a chuva e a areia e os pneus e os passos das pessoas cuidassem do desaparecimento total. Mas encarei meu pai, parado a meu lado, ele me encarou de volta, e fiz o que tinha que fazer. Depois entramos na picape. Eu tinha perguntado a ele, “E agora?”. Tratava-se de um momento de transição, eu tinha essa consciência. Podia me observar de fora. Um cara de dezoito que nunca tinha perdido um animal. E se envolver envolve perder em algum momento, o que quer que seja, quem quer que seja. Eu não ia deixar o corpo num saco plástico na lixeira de ferro, à espera do caminhão coletor, e não porque só passaria dali a dois dias e o fedor seria insuportável. Contudo, não tínhamos um quintal grande o suficiente. Então meu pai disse, “Os eucaliptos”, e saímos da cidade. Pegamos um atalho e logo estávamos entre os troncos finos, abaixo de uma uniforme nuvem verde. Nunca estive, nem voltaria a estar, tão próximo do meu pai como naquela ocasião: nossas mangas arregaçadas, nossas testas suadas, nossas calças sujas de terra, meu cachorro para o buraco, nós dois de volta à picape e, em questão de minutos, sentados numa mesinha de plástico no posto da BR, dividindo uma garrafa de cerveja gelada. Quando ele parou o carro em frente à minha casa ― que há tanto tempo não era mais sua ― já era noite, e por um momento, a luz do poste refletindo no para-brisa e em seu rosto, eu observei meu pai de perfil, olhando reto, sempre, as mãos apertando o volante com firmeza, sempre, eu me reconhecendo nele, como se à medida que seguia rumo à extinção, eu me parecesse cada vez mais com ele, como se um dia, no seu dia final, a transformação viesse a ser terminada e eu finalmente me tornasse ele, e desse continuidade, como um dia vai acontecer comigo e com você, e tudo isso eu escrevo agora ao te dar seu primeiro cão, para que você saiba, haverá Dor, e você não pode escapar, mas jamais escolha não se envolver, não se poupe, não sentir é pior, e por fim eu repito as palavras do meu pai, “Ele é tua responsabilidade”, mas acrescento que enquanto estiver vivo, estou aqui, porque meu pai está em mim, sim, e desde que ele morreu eu sou ele, sim, mas ao mesmo tempo eu sou diferente, dá para entender? Naquela noite, pouco antes de descer do carro, eu disse, “Pai”, ele disse “Oi”, e depois não houve nada além de silêncio, quebrado de leve pelo motor a resfriar, nem até logo nem tchau. A luz da varanda da casa de dona Amélia estava acesa, eu caminhei até lá. Nunca mais criei um cachorro, até você nascer e me fazer lembrar que eu não quero ser um cara conhecido pela indiferença, pelo cinismo, pela casca de blindagem contra os sentimentos, e não há nenhuma forma maior de aceitar a vulnerabilidade da existência do que ser pai ou mãe de alguém.

 

Mendonça Filho, 24, escreve.