Edição 200 - Aracaju, 16 de agosto a 13 de setembro de 2015

Youtube Twitter

Ficção

Drácula
A sede de sangue da vingança

Por Eduardo Haak

 

Balázs está recostado numa árvore e olha para a insígnia em sua túnica, MMDC.

Não entende por que o exército paulista é chamado assim, dois mil e seiscentos em números romanos. Apesar de já estar no Brasil há dez anos, sua compreensão do português é rudimentar.

Vamos nos render, não temos escolha, diz o sargento Gouveia.

O que restou do pelotão, dizimado após um combate, está escondido há dois dias, sem comer e exposto ao frio. Os soldados inimigos ocuparam a sede da fazenda.

E aí, Drácula? Entendeu? Rendição, diz o Gouveia, fazendo o gesto de colocar as mãos para o alto.

Balázs faz que sim.

Drácula. É assim que é chamado pelos colegas. A única coisa que aqueles brasileiros ignorantes conhecem da Hungria é o ator Bela Lugosi. Drácula está fazendo sucesso nos cinemas naquele ano, 1932.

Balázs se lembra dos sérvios degolando os soldados húngaros que se renderam em Srebrenica, em 1915. Ele conseguiu sobreviver se fingindo de morto.

Szánd meg Isten a magyart, Kit vészek hányának, Deus, tenha piedade do húngaro, joguete de desgraças.

Anoitece e a temperatura já está abaixo de dez graus.

Os inimigos, que lutam por um tal de Getúlio, fazem churrasco. Pelo tom de arruaça, estão todos bêbados.

Deus dos infernos, eu daria a alma por um naco de carne, blasfema o cabo Vitorino.

Balázs gesticula ao sargento, pedindo permissão para fazer uma diligência.

Vai lá, Drácula. E traz uma picanha para nós, diz, rindo, um riso fraco, apático.

Balázs carrega o fuzil e caminha até o ponto em que a prudência o faz se arrastar ao solo. Chega, enfim, onde pode observar o movimento.

O churrasco ocorre numa área coberta, ao lado de uma piscina. O fogo está acesso numa pilha próxima à entrada. Boa parte dos vapores entra no galpão.

Deve estar quente como os banhos termais de Budapeste, pensa Balázs. Embora o frio no Brasil não se compare ao da Europa, a temperatura baixa também o tem incomodado.

Vê uma construção anexa à área coberta e decide se arrastar até lá, onde talvez haja mantimentos.

Chega ao local. Querosene para lampião. Ferramentas de arado. Cápsulas de cloro para esterilizar piscina. Latas de leite condensado e atum. Sacos de esterco.

Pega algumas latas de mantimentos. Tira oito cápsulas de cloro da caixa. Olha para fora e vê que está tudo o.k. Arrasta-se até um ponto do terreno e arremessa as cápsulas ao fogo.

Quando está a uma distância segura olha para trás. A churrasqueira emite o vapor amarelo-esverdeado do gás cloro, que está indo para dentro do galpão.

Balázs sorri.

Ele viu o efeito do gás numa trincheira italiana. O cloro queima as vias respiratórias, que passam a produzir líquidos para atenuar a queimadura. Os pulmões acabam cheios e a vítima morre asfixiada.

Espera vinte minutos, até que as tosses, os gritos e os ruídos da dispneia cessam. Balázs pensa em ir até o local para liquidar a tiro algum inimigo ainda agonizante, mas se lembra de que não tem máscara protetora.

Fura uma lata de leite condensado, a suga – como um vampiro sugaria a carótida de uma virgem –, e toma o caminho de volta.

 

Eduardo Haak é paulistano, nascido em 1971. Foi cronista do portal de conteúdo feminino do UOL, "iTodas", durante três anos. É autor do livro Tem uma coisa sobre mim que acho justo você saber, lançado em 2011 pela editora KBR. Blog do autor: http://eduardohaak.blogspot.com.br/