Edição 200 - Aracaju, 16 de agosto a 13 de setembro de 2015

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Entrevista

Os tambores de São Luís
Quarenta anos da obra-prima de Josué Montello

Por Reginaldo de Jesus

Foto: Divulgação

Josué Montello, autor da saga negra no Maranhão

 

Já fazia mais de três séculos que os primeiros negros tinham chegado ao Maranhão, ainda com a cidade circunscrita ao seu forte, a algumas ruas tortas, ao casario de palha, a uns poucos sobradinhos de pedra. [...] E tinham sido eles, os pobres pretos esqueléticos, de grandes olhos febris, as pernas bambas e chagadas, que em verdade ergueram a cidade, com seus palácios, seus sobradões de pedra e cal, suas igrejas, e sua muralha junto ao mar, sem que nem por isso lhes fosse restituída a liberdade. Em verdade, só eram livres ali, na Casa-Grande das Minas, e enquanto ressoavam os tambores. (Os tambores de São Luís, Romances e novelas de Josué Montello. Vol. 2. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986, capítulo XXV, p. 226)

Inspirada numa crônica de Rubem Braga, intitulada “Entrevista com Machado de Assis”, do livro Ai de ti, Copacabana, imaginei esta entrevista com Josué Montello sobre Os tambores de São Luís, seu romance mais festejado pela crítica de todos os tempos, considerado sua obra-prima, e que agora faz aniversário de 40 anos. Para tanto, li suas “Confissões de um romancista” e passei em revista todas as citações feitas por ele, em quatro de seus diários, e num de seus livros de crônicas, a saber: Diário do entardecer, Diário da noite iluminada, Diário de minhas vigílias, Diário da madrugada e Janela de mirante, desde que surgiu a ideia da escrita desse romance. Só nos diários assinalados encontrei 76 referências a Os tambores de São Luís. As respostas dadas por Josué Montello foram extraídas dos textos supracitados. E para acentuar ainda mais o lastro ficcional da entrevista, imaginei Montello, falecido há nove anos, sendo entrevistado pelo jornal A Mocidade, que ele mesmo fundou em São Luís, aos 17 anos, do qual foi redator-chefe.

Foto: Reginaldo de Jesus (feita na CCJM)

Capa favorita de Montello e manuscrito do romance

***

A Mocidade – Por que o senhor decidiu escrever um romance sobre a escravidão, se já havia alguns escritos, tanto no cenário local quanto no nacional?


Montello – Álvaro Lins, no dia em que reatamos a amizade, fez-me este reparo: “Você precisa estender-se num romance amplo, que abarque a vida do Maranhão. Aluísio Azevedo fez o romance do mulato maranhense; o negro maranhense ainda não teve o seu romancista.” Poderia eu, na verdade, escrever o romance do negro maranhense? Sobre ele, dois romances tinham sido escritos: um, de Astolfo Marques, A nova aurora; outro, de Nascimento Morais, Vencidos e degenerados. Mas ambos não tinham transposto os horizontes do Maranhão, circunscritos ao aplauso local. Este último saíra em 1910; o outro, em 1913. Tanto um quanto o outro se limitam a situações episódicas: o de Nascimento Morais dando ênfase ao 13 de maio; o de Astolfo Marques recompondo o ambiente da proclamação da República, com a reação dos negros em favor da Princesa Isabel. Eu queria escrever o romance mais amplo, de linhas mais profundas, e que fosse a própria saga da escravidão na sua ânsia de liberdade. No quadro mais amplo da literatura brasileira, também não existia o livro que, na ordem da ficção, com base na realidade histórica, abarcasse todo o processo, na luta pela redenção da raça negra no Brasil. O Rei negro, de Coelho Neto? A marcha, de Afonso Schmidt? Ou A escrava Isaura, de Bernardo Guimarães? Qualquer deles estava restrito a um aspecto, sem a intensidade global de uma narrativa épica, em condições de exprimir a humilhação de uma raça, e a sua conciliação final, em termos de unidade brasileira.

A Mocidade – Como se deu o fiat genésico de Os tambores de São Luís?

Montello – Nas caminhadas matinais em companhia de minha mulher, no calçadão da Avenida Atlântica, no Rio de Janeiro, por volta de maio ou junho de 1972, narrei-lhe o esboço do romance, que era o relato de uma dinastia de negros, todos com o nome de Damião, no curso de três séculos de história maranhense. Entretanto, ao sentar-me à mesa de trabalho, para o esboço das primeiras cenas do livro, andei a teimar com a pena e o papel, dias seguidos, sem a perfeita visibilidade de seu encadeamento expositivo. De repente, como num transe de médium, senti que o romance me baixava à mão da escrita, ao mesmo tempo em que todo o seu encadeamento me vinha à consciência, refulgindo como um clarão. Em vez das várias narrativas sequentes que eu havia idealizado – uma única a fechar-se sobre si mesma, na unidade de uma parábola da vida. Partindo de um episódio imprevisto – o encontro de um negro assassinado dentro de um bar, numa velha noite de 1915 – imaginei cruzar duas linhas narrativas, de modo que ambas se fundissem, numa perfeita harmonia de planos, na derradeira página do romance. E assim o livro veio vindo, com uma fluência propícia, à feição do barco que desliza na superfície do lago, tangido pela aragem matinal. Acrescento ainda que nessa noite de 1915, toda a saga da escravidão negra é contada sob um prisma diferente daquele que inspirou Gilberto Freire em Casa-grande e senzala, isto é, em que o conflito de senhores e escravos se desfaz de modo quase ideal, sem crueldades e antagonismos veementes, segundo a ótica gilbertina.

Foto: Reginaldo de Jesus

Rua Grande - onde um negro foi morto num bar

A Mocidade – O que nos diz sobre o delineamento desse romance?

Montello – Ao contrário do que sempre aconteceu com meus outros romances, escrevi Os tambores de São Luís salteadamente. Uma vez, na parada do ônibus, enquanto esperava por um novo carro que me restituísse a Copacabana, escrevi de pé, na fila, todo o esquema da cena em que aparece a Benigna, acompanhada por um moleque, na Rua de Nazaré. No apartamento, nem tive tempo de tirar o paletó. Escrevi todo o resto do capítulo, sem saber ainda situá-lo na urdidura do romance. Outra vez, delineei o tipo de barão, que só vai aparecer no último terço do romance.

Foto: Reginaldo de Jesus

Esquina da Rua da Palma com Nazaré onde Damião viu Benigna pela primeira vez

A Mocidade – Conte-nos mais sobre o bosquejo desse romance que virou um clássico da literatura brasileira.

Montello – O primeiro esboço de Os tambores de São Luís foi elaborado nas viagens entre São Luís e Rio de Janeiro, ao tempo em que, no correr de um ano, fui reitor da Universidade Federal do Maranhão. Membro do Conselho Federal de Cultura, eu teria de vir ao Rio todos os meses para as sessões normais. E como, em grande parte, eu trazia na memória as figuras, as cenas, o ambiente da narrativa, não me foi difícil, mesmo a bordo, em pleno voo, continuar a elaboração do romance. Daí a fluência com que o compus, mesmo em viagem, mesmo nas salas de espera, quando aguardava o momento de ser recebido, a serviço da universidade, no gabinete do ministro da Educação, em Brasília. Quando maior era a demora, maior era o número de páginas que eu ia compondo, no bojo do caderno que sempre me acompanhava.

A Mocidade – O poeta Manuel Bandeira, num artigo sobre seu romance A décima noite, exalta as qualidades de sua escrita, que ele chega a comparar com a de Machado de Assis, afirmando que parece passada a limpo, sem excessos, sem desleixos. Gostaríamos de saber sobre sua luta com as palavras, enquanto escrevia Os tambores de São Luís.

Montello – Páginas reescritas, que eu supunha perfeitas, quando relidas levaram-me a refazê-las, como se nada prestasse. Para o escritor consciente, não há páginas perfeitas. Tudo quanto lhe vem à pena, apesar das muitas emendas, corresponde apenas à aproximação de um ideal inatingível. Uma, duas, várias vezes seguidas, tentei puxar o fio da história. Vinham-me as palavras, e eu as escrevia. Sustava a pena, relia o que escrevera. E uma sensação de pânico, de que o texto escrito não condizia com o tom épico do romance, esmagando-me, atordoando-me, levou-me a amarfanhar convulsivamente as folhas rabiscadas, enquanto se instalava em mim a certeza desesperada de que não saberia mais retomar o fluxo romanesco, sem condições de concluir Os tambores de São Luís. Já o cesto de papéis ameaçava transbordar, com as folhas amarrotadas, quando sentia que a fluência me voltava.

A Mocidade – O senhor acredita que atingiu o objetivo a que se propôs com esse romance?

Montello – Não tenho dúvida de que, com esse romance, supri uma lacuna no romance brasileiro. Até aqui, a epopeia da raça negra, lutando por sua liberdade, era composta por episódios avulsos, sem o grande corpo de uma unidade narrativa em que figurassem o navio negreiro, o mercado de escravos, o cativeiro, a insubmissão, o martírio, para colimar na libertação como um movimento global de todas as raças. Por fim, a fusão dessas raças no ser mestiço, genuinamente brasileiro, e que correspondesse à fusão étnica harmoniosa. Nesse ser se superarão os litígios e desencontros atávicos. Não será branco, negro ou índio, isoladamente, mas todos eles ali existirão, com a sua cultura, com os seus valores existenciais, com a sua memória genética, com suas tendências e aspirações, ajustadas ao ambiente e à realidade tropical. O romance, em suma, do brasileiro genuíno, a que a raça negra terá dado, com o seu sofrimento e as suas lutas (afinal superadas), o equilíbrio essencial que comporá o homem de amanhã.

Foto: Reginaldo de Jesus

Igreja do Desterro - cenário da morte de Genoveva Pia

A Mocidade – Podemos afirmar que a natureza épica de Os tambores de São Luís exigiu mais de sua pena do que seus romances anteriores?

Montello – De quantos romances escrevi até hoje, nesta língua transparente e objetiva, foram Os tambores de São Luís, na sua concepção geral e na sua urdidura, aquele que me obrigou a uma atenção maior, como pesquisa, como rigor técnico, dada a circunstância de que nele a ficção se acha amalgamada à matéria rigorosamente histórica. Embora sua ação romanesca componha uma parábola que se inicia às 22 horas de uma noite de 1915 para fechar-se às 9 horas da manhã seguinte, o relato retrocede aos vários ciclos da história maranhense, misturando presente e passado, com mais de quatrocentas personagens, entre bispos, padres, governadores, boêmios, raparigas, estudantes, professores, oradores populares, negros de ganho, artistas, tipos de rua, tentando reconstituir toda complexa vida de uma cidade – ao mesmo tempo em que procura retraçar as lutas do negro maranhense, como elemento consciente do povo brasileiro. Portanto, Os tambores de São Luís, no tom épico que lhe pretendi dar, é, ainda hoje, o mais trabalhado de meus livros.

Foto: Reginaldo de Jesus

Tambores na Casa das Minas

A Mocidade – Inevitavelmente, para escrever um romance dessa envergadura, o senhor recorreu a algumas fontes históricas. Poderia apontá-las?

Montello – Foram mais de vinte anos de estudos e pesquisas sobre o cativeiro no Brasil – notadamente em minha província natal, o Maranhão. Dois romances precederam o meu, como já observei anteriormente. Um, de Astolfo Marques, A nova aurora; outro, de Nascimento Morais, Vencidos e degenerados, ambos editados em São Luís. Cumpre acrescentar, quanto ao preconceito de cor, o depoimento de Domingos Barbosa, no conto “Heráldica”, do volume Mosaicos (São Luís, 1908), e mais o volume de reminiscências, Silhuetas (São Luís, 1911), quanto aos perfis do poeta Sousândrade e do dr. José da Silva Maia, que também aparecem no romance como personagens reais. Sobre a reação dos negros maranhenses, por ocasião da Proclamação da República, Viriato Correia acrescentou algumas informações preciosas ao depoimento de Astolfo Marques, numa de suas crônicas históricas de O Brasil dos meus avós. De valor inestimável foram para mim os velhos almanaques do Maranhão, notadamente os de Belarmino de Matos, e também as coleções de jornais da Biblioteca Pública Benedito Leite, em São Luís. Os estudos do professor Jerônimo Viveiros sobre o velho comércio maranhense guiaram-me nas ruas da Praia Grande. Sobre a história eclesiástica, abasteci-me em dom Francisco, em dom Felipe Conduru e em César Marques. De vez em quando, a propósito de anúncios de escravos, bati à porta de Domingos Vieira Filho, que me acudiu com a informação exata, logo convenientemente aproveitada. Devo acrescentar sobre o mesmo assunto o livro de Gilberto Freyre, O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX. Tudo quanto me foi possível obter, em livros, revistas e jornais, sobre o negro brasileiro, como história, crença, tradições, lutas, castigos, revoltas e humilhações, em conexão com a estrutura de Os tambores de São Luís, não deixou de ser lido e assimilado. Sem a monografia de mestre Viveiros sobre Donana Jansen, eu não poderia ter dado a esta matriarca maranhense o relevo que lhe dei, em certas cenas capitais do romance. Vale ainda citar o depoimento de viajantes estrangeiros que passaram por São Luís, como Koster e Gardner. O tipo de dom Cosme Bento das Chagas, tutor e imperador das liberdades bem-te-vis, encontrei-o em Domingos de Magalhães, Rodrigo Otávio, Astolfo Serra e José Ribeiro do Amaral, a propósito da Balaiada. Quanto à Casa das Minas, o livro precioso de Nunes Pereira. E é ele quem afirma, na página 210 de seu grande livro, editado em 1987 pela Vozes: “Uma das mais precisas e legítimas descrições da Casa Grande das Minas é, sem dúvida, a que devemos a Josué Montello, em seu romance Os tambores de São Luís.”Quanto ao processo da baronesa de Grajaú, tive comigo, graças ao senador José Sarney, os respectivos autos judiciários. Daí a nitidez de sua recomposição. Num romance como este, a verdade histórica é a própria substância ficcional. Deixei para o fim, com o propósito de lhe dar o merecido destaque, a confissão de minha dívida para com o meu saudoso amigo Dunshee de Abranches, cujo livro O cativeiro, inteiramente consagrado à escravidão maranhense, tive sempre ao alcance da mão. Ali me inspirei para criar a figura do cabo Machado. O próprio Dunshee entrou como personagem do romance: é o João Moura (como ele então se assinava), que aparece ao lado do Damião, nos comícios populares. Assim o descobri, nos jornais maranhenses de 1888, batendo-se pela Abolição. Devo-lhe também uma informação importante: a do cativeiro dos ex-escravos maranhenses, depois do 13 de maio, nos seringais amazônicos. De uma vez, foram para lá quinhentos negros, recrutados em São Luís.

Foto: Reginaldo de Jesus

Casa das Minas

A Mocidade – De todas essas fontes, sempre ficamos curiosos para saber mais detalhes sobre o processo da baronesa de Grajaú, uma vez que é um dos episódios capitais do livro. Fale-nos um pouco mais desse processo.

Montello – A baronesa, senhora do vice-presidente da província, então no exercício da Presidência, matou dois escravos adolescentes, no seu sobrado da rua de São João. Um jovem advogado, Celso Magalhães, de 26 anos, recém-chegado do Recife, onde se formara, e nomeado promotor em São Luís, não hesitou em formar o processo contra a baronesa, a despeito de sua posição social, e oficial. Foi além: prendeu-a no quartel da guarnição, e a levou a júri. Lendo os autos do processo, descobri que o crime se deu exatamente no gabinete que ocupei enquanto reitor da Universidade Federal do Maranhão. Sou levado a presumir que a alma da baronesa não há de ter ficado satisfeita com a minha presença no seu sobrado. O certo é que, daí a dias, me veio a inspiração adequada para sair dali. Numa de minhas viagens ao Rio, obtive recursos, parte no Conselho Federal de Cultura, parte no Departamento de Assuntos Culturais do Ministério da Educação, e restaurei um dos mais belos palácios de São Luís, o Palácio Cristo Rei, sob a assistência técnica do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, e ali instalei, com a merecida imponência, a Reitoria da Universidade Federal do Maranhão.

A Mocidade – O senhor já nos contou que escreveu Os tambores de São Luís em constante trânsito entre São Luís/Brasília/Rio e vice-versa, para exercer concomitantemente suas funções na reitoria da UFMA e também no Conselho Federal de Cultura. Houve algum momento em que pensou que não daria conta de todas essas tarefas e, por isso, prejudicaria a produção desse romance?

Montello – Sim, pensei se não seria melhor desistir do meu trabalho em consertar a universidade e disse isso à minha mulher. No entanto, Yvonne me apertou a mão. E tratou de acalmar-me: “Não estás continuando o teu romance? Estás. Não continuas a ler teus livros? Continuas. Não estás prestando à tua terra o serviço que só tu, nesta hora, podes prestar? Estás. Não me tens a teu lado, como tua amiga e companheira? Tens. E não deste a ti mesmo o prazo de um ano para te desincumbires de tua missão? Deste. Então, vai em frente, continua.” E ela mesma pôs na minha mão o caderno do romance e continuei a escrever Os tambores de São Luís.

A Mocidade – Agora nos diga: existiu mesmo o Damião? E a Benigna? E o Barão?

Montello – Digo que sim, embora sejam eles, no mais de seu conjunto, filhos de minha imaginação. Também eu, que os inventei, já dei por mim a recordá-los, não como seres imaginados e sim como seres vivos, que falam e se movem no meu mundo de saudades. Nunca parto de figuras reais para compor um romance. Tudo tem de ser imaginado. Se tomo um tipo do mundo real, desfiguro-o gradativamente, até que o transfiguro. Mas admito aqui que o Damião de meu livro tem um pouco da figura de Astolfo Marques. Adianto ainda que a Genoveva Pia é a transposição da negra-mina Verônica, a cuja memória o romance é dedicado.

A Mocidade – Como o senhor justifica a presença de mais de quatrocentos personagens num único romance, se a maioria não chega a ser sequer secundária?

Montello – A vida, como realidade cotidiana, a todo instante contracena com esses personagens acidentais. Se eu for atravessar distraidamente a rua, sem ver o carro que irá atropelar-me, e um estranho me segura pelo braço, impedindo-me de descer a calçada, deverei a vida a esse desconhecido, sem que se voltem a cruzar nossos caminhos. Por que não lhe dar a mesma importância decisiva na urdidura do romance? Mesmo sem esse papel relevante, e sim de simples comparsa, na coadjuvação de uma cena, atribuí-lhe um nome, assinalei-lhe a presença, e estou certo de que a narrativa ganhou em densidade humana.

A Mocidade – Quem foi a negra Verônica a quem o senhor dedica o romance?

Montello – Foi a negra-mina a quem eu devia a cura repentina de minhas convulsões de infância. Ela ajudou minha mãe a me criar. Para que eu tivesse tudo quanto desejasse, benzeu-me com seu raminho de arruda.

A Mocidade – Quando o romance veio a lume, em 1975, suscitou uma série de boas críticas. O senhor poderia lembrar algumas delas?

Montello – Otávio de Faria foi o primeiro a escrever sobre Os tambores de São Luís, entusiástica e afetuosamente, dizendo ser este romance “o melhor, o mais completo, o mais vivido, tecnicamente o melhor acabado” de minha lavra; Barbosa Lima Sobrinho afirmou que o livro seria “um libelo contra a escravidão”; Jorge Amado proclamou que eu cheguei, com este livro, “ao domínio total de meu ofício”; Luís Viana Filho definiu Os tambores de São Luís como “o grande romance brasileiro da escravidão”. Carlos Lacerda, com igual generosidade, também assim o considerou.

A Mocidade – O romance também recebeu críticas acerbas em virtude da cor do trineto de Damião, que, nas palavras de Benigna, sua mulher, estava “mais para branco que para negro: bem moreninho, como um bom brasileiro.” Por causa dessa cena, o senhor chegou a ser acusado de racismo. Como encarou esse tipo de crítica?

Montello - Longamente meditei sobre essa cena. Os partidários da negritude, vivamente empenhados em extrair do contraste racial um argumento de luta, com a prevalência da raça negra, prefeririam, do ponto de vista dessa luta, que o menino fosse negro. Do ponto de vista político, estaria certo. Mas estaria errado do ponto de vista do romance, no quadro histórico em que está situado, visto que a narrativa se passa, no seu principal arco romanesco, no correr de uma única noite de 1915. Se hoje existe uma consciência negra, tendente a contrapor a raça negra à raça branca, essa consciência, com a preocupação de demarcar o seu espaço e afirmar-se etnicamente, não existia na São Luís de 1915, cenário e tempo de meu romance. O que ainda prevalecia era o ideal da branquitude, expresso no ditado lembrado por Gilberto Freyre em Sobrados e mocambos: quem escapa de negro, branco é. Ser branco correspondia a ser livre. A ter direito à ascensão social. A dispor de condições favoráveis para essa ascensão. Era essa, assim, a realidade histórica que me competia fixar. Dizer o contrário seria falseá-la, contrariando o propósito fundamental do romancista, que era dizer a verdade, só a verdade, na saga da raça negra no Brasil, com o heroísmo de seu martírio. País de mestiços, disso nos orgulhamos. E não é por outra razão que, em nossa linguagem corrente, meu nego e minha nega, sempre repetidos, constituem expressões de carinho, enquanto meu branco e minha branca marcam uma distância social nítida, sem nada de terno ou de afetivo, antes de cerimônia que de comunhão.

A Mocidade – O senhor tem algum fato engraçado para nos contar sobre esse romance?

Montello – Eu estava a bordo do avião que me levava a São Luís, para uns dias na Casa de Cultura, juntamente com Yvonne. Depois que o aparelho ganhou altura e se estabilizou, sinto que me batem no ombro. Endireitei a cabeça, reclinada pouco antes, e dou com uma senhora, que traz nas mãos um exemplar da nova edição de Os tambores de São Luís, para que eu o autografe. E eu, escrevendo a dedicatória: “É esta a minha primeira dedicatória a dez mil metros de altura.”

A Mocidade – Sabemos que até hoje alguns leitores viajam a São Luís a fim de conhecer os cenários de seus romances da saga maranhense, especialmente Os tambores de São Luís. O que acha disso? É verdade que até leitores de outros países já vieram ao Maranhão com este propósito?

Montello – Para o romancista, nada mais tocante. O professor dr. Winfried Kreutzer, por exemplo, veio da Alemanha para conhecer melhor o ambiente de Os tambores de São Luís, objeto do longo estudo que preparou, na cadeira de filologia românica da Universidade de Würsburg. Já a portuguesa d. Maria José Avilés, sogra de Jaime Nogueire Pinto, diretor de O século, quando soube que eu e Yvonne estávamos em Lisboa, ofereceu-nos um jantar e me disse que havia acabado de chegar de São Luís aonde só foi para refazer todo o itinerário de Damião, com o romance diante dos olhos.

Foto: Reginaldo de Jesus

Algumas ruas que fazem parte do itinerário de Damião

A Mocidade – Queremos saber agora sobre as proezas de Os tambores de São Luís na França.

Montello – O romance foi traduzido por Jacques Thiériot para a editora Flammarion, com o título de Les tambours noirs e as circunstâncias se conjugaram para que eu assistisse como embaixador ao lançamento do meu romance em Paris. Anos depois, foi incluído entre as obras representativas da humanidade e soube por meu amigo, Sábato Magaldi, ter sido escolhido para o concurso de Agregação em língua portuguesa, em toda a França, por ato do Ministério da Educação, em Paris.

A Mocidade – Passados 40 anos da publicação desse romance, tão laureado pela crítica e pelo público, o senhor teria ainda alguma emenda a fazer nele, em caso de uma nova edição?

Montello – O romance, assim como está, está bem. É natural que eu diga, mesmo levando em conta a boa fortuna que corresponde a seu périplo, que muita coisa ficou por contar, mas sem prejuízo da compreensão global que o tema reclamava. A essência – presumo eu, sempre à espera de obra melhor, na pena de outro romancista – está ainda em Os tambores de São Luís, para o qual só reclamo para ilustração da capa o quadro do Cícero Dias.

 

 

Reginaldo de Jesus é professor de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira no IFS - Campus São Cristóvão. Contato: [email protected]