Edição 199 - Aracaju, 19 de julho a 16 de agosto de 2015
Crônica
Por Mendonça Filho
Quando eu tinha seis anos meu pai me deu um cachorro. Do meu primeiro animal não guardei qual era a raça, qual era o nome, não sei dizer se lhe dei ou não um apelido. Eu poderia pinçar estas informações, preencher as lacunas aqui no papel e em minha mente, enviando uma mensagem via Whatsapp para minha mãe, que foi quem realmente cuidou do animal, e não apenas porque eu tinha a responsabilidade de uma criança de seis anos, mas porque alguns meses depois da chegada do bicho, ela pediu o divórcio. Mas eu não pego o celular ao lado do computador, não busco as respostas, se era vira-lata, Fila, Doberman, se atendia por Rex, Au-au ou simplesmente Cachorro, e a razão é que acho o esquecimento subestimado. Quanto ao meu pai, ele não pode lembrar.
Daquele dia, que era noite, eu recordo, isto sim, do cheiro do combustível queimado, dentro da garagem, no piso uma poça seca de óleo, o motor do carro como se cansado a respirar fundo, e meu pai dizendo "Pss, não toca, rapaz, você sabe que está quente" - minha mão espalmada pertinho do capô do Chevette 83. Numa das mãos grandes e peludas a pochete e o revólver, como eu me habituara a vê-lo todas as noites ao dar um pulo do sofá e sair correndo diante do rangido do portão sendo aberto - a sala escura varrida pelos faróis; mas na outra mão, normalmente vazia ou segurando um maço de folhas de ofício e lápis de colorir ou um saco pardo contendo balas, o que havia era uma bola de pelo choramingando. O que ele disse foi "Toma, é teu", praticamente jogando aquilo em mim, e a coisa até então bem miúda na mãozorra dele agora parecia um tigre nas minhas duas mãos em concha. "Ele é tua responsabilidade: o banho, a comida, a limpeza do cocô e do xixi, e quando estiver maiorzinho será tua obrigação passear com ele, é tudo com você", ele disse, acocorado, da minha altura, me olhando sério sem piscar, e é mesmo curioso eu não recordar informações mais precisas a respeito do meu primeiro cachorro e ao mesmo tempo ainda hoje poder sentir o antigo cheiro do meu pai após um dia de trabalho à frente da máquina de datilografar na delegacia, o suor, um cheiro forte, eu gostava, mesmo que a primeira coisa que minha mãe dissesse a ele, sem parar os afazeres, fosse "Vá tomar um banho, a janta já está quase pronta", e é também curioso ainda hoje eu poder especificar sua vestimenta, naquele dia, uma calça e uma camisa jeans, três botões abertos, abertos, arrisco, ao entrar no carro e baixar as janelas, os pelos pretos do tórax magro e pálido, e no seu rosto barbudo havia uma camada de suor que o fazia brilhar na semiescuridão da garagem - a porta que dava para a cozinha aberta, minha mãe cortando batatas -, os três riscos horizontais que jamais sumiam, acho, e jamais sumiriam, sei, da testa daquele homem ao qual desde muito cedo eu soube, intuitivamente, que nunca conheceria de fato, nem ele a mim, por um motivo que nos escapa, que talvez date de antes mesmo do meu nascimento, a inviabilidade de uma conexão para além da responsabilidade dele, à época, de Pai, e hoje, em sua decadência, da minha própria de Filho.
Toda criança quer um animal de estimação, ainda que exista, claro, exceção à regra. Pode ser um cachorro, um gato, uma tartaruga ou um rato; um papagaio, um lagarto, uma cobra. Ciente disto, e correndo o risco de ser infiel à realidade, afinal o que passou vira ficção ou é no mínimo ficcionalizado, transformado - não há espaço para a verdade bruta --, ainda que nada disto aqui seja inventado, é da minha vida que estou falando, enfim, pode ser que eu tenha visto sim um cachorro num desenho animado ou um de rua morto-vivo ou a foto do de um colega de escola e dito "Pai, quero um", mas eu vou dizer não, não pedi cachorro algum a ele. Disto eu não lembro, de como eu respondi emocionalmente na garagem - há muito demolida - naquela cidade - que também ficou para trás. O que posso e vou dizer é: daqui, desta altura, olhando lá para tantos anos abaixo, aquela surpresa parece um bocado de pressão sobre um garoto de seis anos, ou pelo menos o garoto de seis anos que acredito ter sido. Eu odeio surpresas. O cachorro jogado em mim, as frases pronunciadas no tom monocórdio de sempre, "Veja, ele é um bebê, se você não levar isto a sério, ele morre, entendeu?", "Sim, senhor", eu disse, e nada mais, ou disse? Nada, absolutamente nada, me faz concluir que ali estivesse um garotinho recebendo um presente. Tratava-se de um fardo.
Minha mãe só carregou aquele fardo por um tempo. Por muito tempo, ainda assim. Ela havia se livrado do meu pai há alguns meses. Ensinava matemática em duas escolas, todos os dias da semana. Às tardes, ela me puxava pela mão pelos corredores de uma das escolas, porque eu não tinha com quem ficar. Então eu sentava no fundo das salas, fazendo as tarefas, brincando em silêncio, às vezes não em tanto silêncio assim, com os bonecos Power Rangers, enquanto ela enchia a lousa com números e parênteses e colchetes e chaves, falando para um bando de adolescentes desinteressados. No fim da tarde, nós saíamos com as mãos sujas de giz, "Mãe, você tá me sujando tudo"; as pernas longas dela; minhas corridinhas para acompanhá-la. Chegávamos em casa com a obrigação de lidar - sobretudo ela lidar - com a bagunça feita pelo cachorro, o mijo e a bosta, ela dizendo "É isto que ele me deixa", "Não ajuda e ainda atrapalha", ele o meu pai, o cachorro lambendo meus pés, minhas pernas, "Não deixa ele te lamber o rosto!". Daí um dia ela não aguentou e ligou para ele e disse "Venha buscar tua porra".
Eu não sei como meu pai se sentiu. Nem em relação ao divórcio nem em relação à devolução do cachorro. Por muito tempo, eu tive a chance de perguntar, mas nunca quis. Agora, ele não tem como responder. Não importa. Eu olho para ele e ele olha para mim, e isso é tudo. Sim, sinto por ele, mas não sinto por não ter como saber se também queria o divórcio, se também era infeliz como a minha mãe, se tentou resolver de outro modo, salvar o relacionamento ou o quê, se realmente era um mitômano, se era mesmo viciado em jogos de azar, e se ficou decepcionado por eu não ter sido capaz de cuidar do animal. A intenção dele, com o cachorro, era me ensinar alguma coisa, eu sei. Intenções. O pai dele pode ter feito exatamente a mesma coisa com ele. Ensinar a ser homem ou algo assim. Sem neura quanto a ter falhado. Seria ridículo lamentar por uma decepção - que pode nem ter existido - do meu pai pelo filho de seis anos, que eu era, fui, mas não sou. Se, aos seis anos, pensei "Poxa, meu pai está triste comigo", não sei. Sei que ele foi lá em casa, em pé na sala, como uma visita, desconfortável, um estranho no lugar em que tantas vezes deitou no sofá e andou sem camisa e fez reparos. Ele foi lá, catou quem tinha que catar do chão com uma mão só num naco de gordura, olhou em meus olhos com a mesma seriedade de quando trouxera o presente, fez que sim e disse "Busco você no final de semana". Quando cheguei à nova casa dele na sexta-feira, o cão não estava lá.
Mendonça Filho, 24, escreve.