Edição 199 - Aracaju, 19 de julho a 16 de agosto de 2015
Cultura
Por Cesar Carvalho
Fotos: Cesar Carvalho
Grafites no Minhocão, região central de São Paulo
Saí de São Paulo há quinze anos para morar em cidades interioranas. Saí a contragosto. A necessidade de sobrevivência e a oportunidade de trabalho estavam fora da grande metrópole. Apesar de nascido no interior do estado, cheguei a São Paulo em seu quarto centenário. Como costumavam dizer, era um caipira disfarçado de paulistano. Assimilei sua energia frenética e desvairada em minha vida pessoal e só a abandonaria por questões mesmo de sobrevivência.
Quinze anos depois volto. E me deparo com uma São Paulo mais intensa, mais frenética. Assustadora aos olhos dos paulistanos, cada vez mais amedrontados e neuróticos, e maravilhosa aos meus. Afinal, neste tempo todo meu corpo estava nas cidades onde morei, mas minha cabeça continuava na metrópole.
O retorno
Primeira impressão. Chego de carro num momento de fluxo intenso. Saio da Pedroso de Moraes, na zona oeste, em direção a Pinheiros, pela Rua Teodoro Sampaio e percebo que as faixas de carro estão mais estreitas. Pequeno truque da companhia de tráfego para comprimir a circulação e fazer com que os carros fluam melhor. Medo caboclo: a distância lateral entre os carros praticamente faz com que eles se colem. No trânsito parado, se houver necessidade, muito difícil abrir a porta para sair do carro. Demoro, pelo menos, dois meses para me acostumar a esta realidade.
Um rio caudaloso
Semanas depois visito a zona leste. Horário de pico. Duas horas para chegar à Avenida Celso Garcia, no Parque São Jorge, onde passei minha infância e adolescência. As recordações foram inevitáveis. Quando cheguei a São Paulo o movimento dos carros e o tamanho dos edifícios me embeveciam. Era a época em que a cidade, símbolo do desenvolvimento industrial e do processo de modernização, não podia parar. Cresci ali, naquela avenida de mão dupla e, praticamente, única via de acesso ao centro da cidade. Enquanto meu pai, alfaiate, criticava a americanização da música brasileira ouvida no rádio, eu me deliciava com os primeiros sucessos da Bossa Nova. Durante as chuvas torrenciais de verão, brincava com barquinhos de papel que naufragavam nas águas da avenida que, aos meus olhos infantis, se transformava em rio caudaloso.
Hoje, a Celso Garcia é uma via de mão única e uma das muitas opções de tráfego para ir e vir na cidade. Mas, durante as chuvas torrenciais, ela continua sendo um rio caudaloso, inviabilizando o tráfego urbano.
Galeria ao ar livre
Nos anos 60, vi o desaparecimento dos bondes e a formação de grandes congestionamentos automotivos que as facilidades de crédito e o surgimento da classe média implementavam. Surgia a sociedade de consumo onde galerias transformavam-se em shopping centers e as ruas estreitas em grandes avenidas.
Office-boy à época, caminhava pela cidade da garoa cantarolando um hit do momento, Chove Chuva, de Jorge Ben. Com desgosto vi, anos depois, a Avenida São João, na gestão de Maluf, transformar-se num enorme viaduto que desvalorizou os imóveis.
Minhocão foi o apelido apropriado que os paulistanos encontraram para esta aberração arquitetônica que pretendia, sem muito sucesso, desafogar o trânsito. Muitos aproveitaram, pelo menos até o final dos anos 90, para transformá-lo em residência, acampando sob seu teto. Suas colunas, até então, cinzas e áridas, estampavam, quando muito, garranchos pichados com tinta preta. Hoje, para minha surpresa, estampam grafites, transformando o viaduto numa espécie de galeria de arte a céu aberto.
Entrada do Beco do Batman na Vila Madalena
Um bairro cool
Nos anos 90 tive a felicidade de compartilhar um escritório de produção cinematográfica na Vila Madalena. Nos intervalos do trabalho, árido e inglório – fazer cinema àquela época era mais difícil do que hoje, afinal, Fernando Collor tinha acabado de fechar a Embrafilme, principal responsável pela produção cinematográfica –, flanar pelas ruas da Vila Madalena era um prazer indizível, produzido pelos grafites que aliviavam a tensão. Grafite era, praticamente, sinônimo de rebeldia. Os grafiteiros realizavam seu ofício artístico na madrugada, um olho na parede, outro na rua, para se prevenir do policiamento. Muitos acabavam presos.
Mas, grafite era tradição na Vila Madalena, tradição que se iniciara no início dos anos 80 quando a Vila era apenas um bairro onde se fixavam artistas e estudantes, e os preços imobiliários eram acessíveis. Hoje, os imóveis são caríssimos, a Vila é ponto de referência artística e os grafites proliferaram, se institucionalizaram e muitos organizam passeios turísticos pelos principais pontos onde estão estampados.
Enfim, se flanar pela Vila nos anos 90 já era relaxante, hoje é muito mais. É um passeio por galerias da agora sofisticada street art, como nossa mente colonizada gosta de chamar o velho e querido grafite.
Intolerância e diversidade
Em qualquer manual básico de Sociologia, o leitor aprende que a vida é um constante processo de socialização. Mudar para outra cidade faz parte desse processo. Você queira ou não, se redefine, muda seus valores, incorpora outros, e se identifica com a nova comunidade.
Chegando a São Paulo ainda criança, a educação recebida de meus pais e a convivência com os vizinhos e amigos da escola tornaram-me um cidadão paulistano. As mudanças sofridas pela cidade se naturalizaram em minha cabeça e tudo parecia muito normal. Só não conseguia entender o porquê dos imigrantes nordestinos que chegavam à cidade nos anos 60 serem chamados genericamente de baianos. Demorei um bocado para compreender que isso era um preconceito cravado no imaginário paulistano e, confesso, nunca aceitei isso.
Com o passar do tempo, eles se socializaram, tiveram filhos e, aos poucos, deixaram de ser baianos para se tornarem, eles também, paulistanos. O preconceito, todavia, apenas se dissimulou, nunca desapareceu.
Quando saí da cidade, final dos 90, certa coexistência pacífica poderia ser constatada, mas a imigração ganhava outras características. Chegavam os coreanos e os bolivianos. Mas fui embora e nunca soube qual o impacto que eles criaram na vida urbana da metrópole, exceto o fato de que os primeiros invadiram os redutos judeus do Bom Retiro.
Hoje, a realidade é bem diferente. Andando pela Praça da República, cruzando a Avenida São João com a Ipiranga, e mesmo andando no Largo do Arouche, o que se vê não são nem nordestinos, nem bolivianos ou coreanos, mas sim africanos de várias etnias. Conversando com alguns amigos sobre o tratamento que recebem, alguns concordam que o preconceito em relação a eles é diferente do que o foi com os nordestinos nos anos 60: eles se misturam menos com a população. Por outro lado, no imaginário paulistano eles são vistos indiscriminadamente como traficantes e mais, como negros, sofrem o que os nossos descendentes de escravos tão bem conhecem, o dissimulado preconceito de cor.
O fato é que a cidade apresenta uma coloração diversificada, várias etnias convivem, comerciam e se divertem naquilo que a cidade pode oferecer de bom e de ruim.
Paulicéia, minha noiva... Há matrimônios assim (1)
Dizem os antropólogos que o conhecimento depende de um distanciamento, um afastar-se para se perceber o que a realidade nos oferece. A verdade é que, enquanto vivi por décadas na metrópole, suas transformações, anomalias e intensidade me pareciam naturais. Ao voltar, certo estranhamento se apodera de minha mente. Em que medida sou, de fato, paulistano?
Caminho lentamente pela cidade. Observo o movimento das pessoas, a intensidade nervosa do tráfego e, lerdo como sou, deixo-me embevecer pelo frenesi urbano, tal qual me embeveci quando criança ao chegar à metrópole. Percebo que meu comportamento destoa da maioria das pessoas, mas, não me importo. Os valores de certo caboclismo, tipo Jeca Tatu, herdado de meu pai, criado na roça, continuam incrustados no fundo de meu ser. Mas, nem por isso, considero-me um peixe fora d´ água. Sinto-me em comunhão com o meio ambiente, um casamento perfeito.
A cidade mudou. Ficou mais intensa, mais frenética, mais desvairada. Em contraposição, certos comportamentos se padronizaram – a educação no trânsito, o subir a escada rolante de forma organizada, essas coisas – mas, a cidade continua a mesma.
Eu e a cidade, como diz o ditado português, estamos cada vez mais parecidos com a gente mesmo.
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(1) Frase de Mário de Andrade no livro Paulicéia Desvairada.
Cesar Carvalho é escritor, poeta e professor universitário aposentado.