Edição 198 - Aracaju, 21 de junho a 19 de julho de 2015

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Literatura

O guardião da memória
A França de Patrick Modiano

Por Paulo Lima

Foto: Divulgação

Patrick Modiano: obsessão pela memória

 

Sempre despertaram minha curiosidade as condições de vida de sociedades sob o impacto extremo de grandes fraturas históricas. Me impressiona o fato de as pessoas continuarem com suas pequenas ações cotidianas mesmo debaixo de bombas e destruição, caso de Berlim em 1945. E o que dizer de Moscou na época da Revolução de 1917, quando uma velha visão de mundo desmoronou? Ou da França ocupada pelos alemães na Segunda Guerra?

A população segue sua vida, cuidando do essencial para sobreviver, mas também se divertindo, cantando, dançando, namorando e até casando. São esses elementos, pequenas histórias dentro da grande história, que soam interessantes e revelam o espírito de uma época, suas reais motivações, seu élan vital. Muitas vezes, essa petite histoire está mais bem retratada na literatura do que nos compêndios históricos.

No caso da França nos anos 1940, uma leva de romances do escritor Patrick Modiano, recém-lançados no Brasil, oferece pequenos painéis intimistas de homens e mulheres vivendo sob as difíceis condições da ocupação nazista. Modiano ganhou o Nobel de Literatura de 2014, despertando ou renovando o interesse por sua extensa obra.

Inicialmente, a Editora Record publicou um box com três romances de Modiano. Escolhi ler Dora Bruder, um desses romances, atraído por sua sinopse: uma adolescente judia húngara vivendo em Paris com a família desaparece em 1941, provavelmente presa pela Gestapo. Preocupada, a família põe um anúncio num jornal. É esse anúncio que Modiano lerá algumas décadas depois, e a partir dele desencadeará uma busca pela história de Dora Bruder.

Bastaria a leitura desse pequeno livro, como, aliás, são pequenos todos os romances de Patrick Modiano, para percebermos a matéria-prima que constitui a literatura desse francês de 69 anos - a memória. É um obsessivo retorno à infância que determinará o fio condutor de sua obra. Nela, a ribalta é toda ela preenchida por homens e mulheres comuns vivendo seus pequenos dramas cotidianos. O cenário: a França ocupada, a vida difícil, os pequenos artifícios de sobrevivência, o futuro mal entrevisto.

Modiano teve uma infância difícil. Foi abandonado pelos pais e criado por outras pessoas. Isso, por si só, já seria talvez o bastante para forjar um escritor. Mas acresce também o talento. Em romances como Dora Bruder, a memória vai e vem, provocando a sensação de que estamos lidando com algo fugidio, que flutua e nos escapa.

Engana-se quem pensa que Modiano faz uso de intrincados recursos narrativos para atingir seu objetivo. Sua literatura é simples. Daí porque o porta-voz da Academia Sueca, ao anunciar a premiação do Nobel, tenha enfatizado essa simplicidade, afirmando que podemos ler um romance de Modiano antes do jantar e outro após o jantar para concluir a noite. É simples, porém, acerta diretamente a cútis da sensibilidade.

A cartografia dos romances de Modiano é sempre Paris e seus bairros, suas ruas, cenários da infância esfumaçada do escritor. Como um flâneur, Modiano revisita os locais onde viveu, ou onde viveram seus personagens, e nessa busca, nesse deslocamento, se perde e arrasta o leitor em seu labirinto.

Além do recurso à memória, seus romances lançam mão de elementos de thriller. Daí que é impossível largar um romance como Dora Bruder até que se saiba que fim levou a jovem judia. Essa opção narrativa  é potencializada no romance Primavera de cão, um dos outros três romances de Modiano que a Record lançou depois do box. Nesse livro, um homem relembra 30 anos depois um encontro que teve com o fotógrafo Francis Jansen, em 1944. Detalhe: Francis Jansen é um personagem real. Partindo dessa lembrança, esse homem iniciará uma investigação para saber que fim levou Jansen. Mais uma vez, são os volteios da memória que proporcionarão a estrutura desse pequeno romance (são somente 103 páginas), e o percurso de Modiano para nos fisgar inapelavelmente.

Não há nada de exatamente grandioso em seus enredos. Uma pequena centelha determina o começo da história que Modiano tem para contar, e isso basta. É um detalhe assim que abre o romance Flores da ruína. O anúncio num jornal do duplo suicídio de um casal de namorados – no cenário da Paris ocupada, que isso fique claro – ativa o gatilho narrativo. São as razões dessa tragédia que impulsionarão o detetive Modiano pelos escaninhos obscuros da memória.

Por último, no romance Remissão da pena, Modiano volta suas lentes para um episódio de sua infância, quando, ao lado do irmão, viveu um tempo sob a guarda de duas irmãs de personalidades completamente diferentes entre si. Nesse romance, como nos outros, percorreremos Paris, suas vielas, seus bairros, o chiaroscuro de seus bares, de suas almas.

Ler Modiano não é apenas transportar-se para uma época concreta, em que um país se viu às voltas com um grande desafio histórico, no qual resistir ou colaborar com o inimigo podia significar a opção entre viver ou morrer, mas representa também um mergulho na memória difusa e intangível, da qual Modiano é um renitente guardião.