Edição 198 - Aracaju, 21 de junho a 19 de julho de 2015

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Ecoturismo

Patrimônio chileno
Uma jornada pelas montanhas da Patagônia

Por Danilo Vivan

Foto: Danilo Vivan

Caminho para o Refúgio Los Cuernos na Patagônia

 

As Torres del Paine, na Patagônia são um patrimônio nacional do Chile. Suas imagens ilustram anúncios em ônibus que circulam por Santiago, rótulos de cerveja e as notas de mil pesos.

Geologicamente falando, são três picos bem definidos, em granito cinza-azulado. Na mesma cadeia, ficam os Cuernos, conjunto de picos em forma de chifres em granito cinza-claro e rocha sedimentar, escura, formando um efeito-camada. O maciço todo se ergue a três mil metros, formando paredões impressionantes. Abaixo, a água de degelo forma lagos em tons de verde e azul. Essa beleza atrai gente do mundo todo para um dos trekkings mais famosos do Planeta, o circuito W, percorrido em quatro dias, com hospedagem em abrigos ou campings.

Pude realizar o sonho de fazer essa trilha com minha esposa, Renata, no natal. Chegamos ao abrigo Las Torres, o primeiro, dia 23 de dezembro. Quem está acostumado ao conforto de hotéis pode estranhar a simplicidade de um refúgio. Não há privacidade. Banheiros, só compartilhados. Nosso quarto, minúsculo, era composto por três beliches e muito equipamento: botas, mochilas, bastões de caminhada e quinquilharias que tínhamos de encontrar espaço para acomodar. Longe do ideal de férias da maioria das pessoas, mas de fazer brilhar os olhos de quem ama atividades outdoor.

Primeiro dia: Refúgio Las Torres – Mirador Torres del Paine

Levantamos às 08h e fomos para o refeitório, já lotado de trekkers. Tomamos um café, preparamos a mochila e saímos. Como faríamos um bate-volta até o Mirador das Torres, optamos por levar uma mochila leve com equipamentos básicos, deixando as cargueiras (com 12 quilos de equipamentos cada) no abrigo. Isso nos daria agilidade e pouparia energia para o dia seguinte, quando caminharíamos com carga completa.

A trilha começa em um trecho plano, cortado por riachos que atravessamos por pontes suspensas. Depois de dois quilômetros, dá uma guinada para a direita e tem início uma forte subida com pedras soltas e ventos fortíssimos, característicos da região – segundo os guias de trekking, podem atingir mais de 100 km/h. As torres são como algumas mulheres: lindas, mas de personalidade forte.

Avançávamos lutando contra o vento e o frio (10 graus), deixando para trás trekkers mais lentos. A trilha vai subindo, deixando cada vez mais abaixo, um vale cortado por um rio de degelo. Uma hora e meia de caminhada e avistamos no fundo do vale o El Chileno, abrigo mais isolado do Parque. Ali só se chega por trilha e o abastecimento é feito da maneira mais antiga que existe: em lombo de burro. Descansamos por 20 minutos, enchemos os cantis e seguimos. Passado o abrigo, a trilha desemboca num bosque, chegando, por fim, a um descampado no ataque final às Torres. O cenário lembra o de expedições de alta montanha: o vento fica insuportável e pedras enormes dificultam o avanço. Formam-se congestionamentos. Trekkers em jaquetas da North Face discutem a melhor forma de superar os obstáculos. Imagens que me traziam à mente cenas do livro No ar Rarefeito, de Jon Krakauer, maior autor nesse assunto.

Com a habilidade adquirida em trilhas aqui no Brasil, passamos alguns grupos e atingimos o mirador, ponto final da trilha. Ali, um lago verde-esmeralda avança até uma imensa plataforma de granito coberta de gelo, acima da qual se assentam as Torres. Um sonho realizado. Ficamos ali meia hora e iniciamos o retorno. Três horas depois estávamos de volta ao abrigo. Era noite de Natal e brindamos com gente do mundo inteiro aquela data especial. Meu desejo de natal se realizara um pouco: confraternização entre povos e respeito pela natureza.

Distância: 21,1 quilômetros

Altitude máxima: 890 metros

Segundo e terceiro dia

Abrigo Torre Central – Refugio Los Cuernos – Abrigo Paine Grande

Comparado com a subida das Torres, o segundo dia seria uma caminhada de criança: apenas 13 quilômetros e 100 metros de desnível. Por isso, dormimos um pouco mais em nosso quarto lotado e caímos na estrada às 10h. Vencemos algumas subidas mais chatas, três ou quatro pontes suspensas, e antes das 13h estávamos no abrigo, aos pés dos impressionantes Cuernos. Baixamos as pesadas mochilas, tiramos as botas e ficamos ali, aproveitando o sol pra bater papo com gente que conhecemos na caminhada: Cecile, uma alemã que vivera no Xingú; Rodrigo e Andressa, casal de Franca-SP; Andrea, italiano que adora o Brasil; Paul e Jaime, casal de velhinhos que têm no currículo a lendária Appalachian Trail, trilha da costa leste dos Estados Unidos, com 3.500 quilômetros.

No meio da tarde, o tempo fechou, nos obrigando a ir dormir mais cedo, poupando energia pro dia seguinte. O vento balançava o abrigo e o dia amanheceu frio (5 graus) e chuvoso. Mas não havia escolha. Tomamos café, colocamos capas de chuva nas mochilas e partimos. No primeiro trecho, uma praia de pedregulhos à beira do Nordenskjold, cravávamos nossos bastões no chão, lutando para nos manter em pé frente à força do vento. Caminhar assim, em contato direto com as forças da natureza e sem a proteção de fortalezas de aço, vidro ou tijolo, remete às nossas origens mais primitivas. Isso fascina qualquer aventureiro.

Após uma hora de trilha, chegamos ao acampamento Italiano, um bosque com umas 20 barracas, cinco banheiros fedorentos e um posto de guarda da Conaf, o Ibama chileno. Dali, faríamos um bate-volta ao Mirador Francês, ascensão de mais de 800 metros. Repetimos a estratégia de deixar o equipamento pesado (que ficou no posto da Conaf) e subir com uma mochila pequena.

A trilha sobe por bosques, acompanhando o vale. Em certos pontos, mal se nota que a inclinação aumenta rapidamente. Talvez por isso, minha energia foi acabando sem que eu percebesse e meu ritmo caiu. Por sugestão da Renata, paramos pra descansar e comer. Voltamos a caminhar e a energia se esvaia do meu corpo; sentia que iria desmaiar. Mas nessas situações, vale o condicionamento psicológico. Repetia mentalmente algumas das minhas façanhas, como concluir a Serra Fina, trilha considerada a mais difícil do Brasil e pedalar durante uma hora com câimbras numa Corrida de Aventura. Aos poucos, retomei o controle e chegamos ao Mirador, de onde se avista um enorme vale nevado e as Torres del Paine, mas por outro ângulo. Descansamos meia hora e iniciamos a descida, pois ainda tínhamos 15 quilômetros pela frente. Recuperado, ‘empurrei’ a Renata e a Cecile (que nos acompanhava), descendo o mais rápido que conseguia.

Chegamos ao acampamento Italiano, pegamos nossos mochilões e seguimos para o refúgio Paine Grande. A partir dali, a trilha torna-se plana e segue margeando três lagos: o Nordenskjold, o Scottsberg e Pehoé, em cujas margens fica o abrigo Paine Grande. Depois de 10 horas de trilha, chegamos ao refúgio. Comemoramos com um pisco sour, drink típico do Chile. Fomos para o nosso quarto de três beliches e caímos na cama.

Segundo dia

Distância: 13 quilômetros

Altitude máxima: 167 metros

Terceiro dia

Distância: 24,5 quilômetros

Altitude máxima: 727 metros

Quarto dia - Refugio Los Cuernos – Glaciar Grey

Mais um dia de bate-volta; iríamos até um mirante de onde se avista o Glaciar Grey (terceiro maior do mundo, atrás da Antártida e da Groenlândia). De lá, voltaríamos para o abrigo e atravessaríamos o lado Pehoé de catamarã até a entrada do Parque, onde a aventura chegaria ao fim.

A caminhada começa por um vale cercado de montanhas baixas e sobe para cruza-las, chegando a uma pequena lagoa. Em seguida, cruza outro morro chegando ao lago Grey, de águas cinzentas e salpicado por icebergs formados pelo descolamento de placas de gelo do glaciar. Esse processo se acelerou com o aquecimento global. Após três horas, chegamos a uma colina de onde se avista o glaciar, nosso ponto final. A vista é impressionante. Fiquei ali, contemplando a paisagem, alheio às fotos de outros trekkers, imaginando como seria antes do aquecimento global, ou na Era glacial.

Descansamos e pegamos a trilha para nossa última perna no percurso. Após sete horas de caminhada, chegamos de volta ao Paine Grande. Tiramos várias fotos formando, com os braços, um ‘W’. A aventura estava terminando.

Algumas pessoas consideram fazer uma trilha como essa um ato de coragem. É possível. Caminhar 80 quilômetros sob chuva, vento e frio injeta uma considerável dose de autoestima em qualquer pessoa. Há também um componente de consciência ambiental; aventureiro se preze sabe que suas ações no dia-dia, longe da trilha, podem ter impacto nesses cenários, derretendo um glaciar, por exemplo. Nesse sentido fazer o W foi educativo. Mas, mais que tudo, estar nas montanhas significa ter contato com nossos instintos e nos sentir vivos.

Quarto dia

Distância: 24,1 quilômetros

Altitude máxima: 265 metros

 

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Serviço

Para chegar ao Parque Nacional Torres del Paine, é preciso pegar um voo de Santiago até Punta Arenas – duas empresas fazem o percurso, a LAN e a Sky e depois ônibus até Puerto Natales (Buses Fernandes). De lá, tomar outro ônibus até o Parque – Buses Pacheco.

As empresas que administram os refúgios são a Fantástico Sur (Torre Central, El Chileno e Cuernos) e a Vértice (Paine Grande). Pelos sites, é possível reservar abrigos e espaço para camping. De maio a setembro, na baixa temporada, a maioria das trilhas permanece fechada.

 

Danilo Vivan é jornalista. Texto publicado originalmente na Revista Plurale.