Edição 196 - Aracaju, 12 de abril a 17 de maio de 2015
Cultura
Por Carlos Alberto Mattos
Fotos: Carlos Alberto Mattos
Vista de Moscou em 1987
Em 1987, integrei o júri da crítica internacional (Fipresci) do Festival de Cinema de Moscou. Estávamos em plena Perestroika de Gorbachev. Havia um clima excepcional de descompressão política no ar. Filmes longamente proibidos pela censura soviética estavam sendo liberados. Grandes nomes do cinema mundial compareceram ao festival para demonstrar seu apoio à glasnost (transparência) e festejar o fim da guerra fria. Eu me fartei de filmes, entrevistas, fotos e tietagem. Vivi também algumas experiências que vale a pena contar.
LIBEREM A COMISSÁRIA
Num jantar com amigos de diplomatas brasileiros acreditados em Moscou, ouvi a história de um filme maldito que nem os novos ventos tinham sido capazes de liberar e do qual ninguém sequer falava. Chamava-se A Comissária e tratava da convivência de uma oficial do Exército Vermelho com uma família judia. Seu diretor, Alexander Askoldov, vivia no ostracismo. Como no dia seguinte haveria uma esperadíssima coletiva com os figurões do cinema soviético na Domkino (Casa do Cinema), prometi tocar no assunto.
A entrevista corria morna até entrar no tema dos filmes recém-liberados. Eu me inscrevi para fazer uma pergunta e questionei se não havia ainda filmes “muito malditos” nas prateleiras da censura. Elem Klimov (Vá e Veja), presidente da Domkino, iniciou uma resposta padrão e, antes que eu pudesse mencionar A Comissária, eis que para surpresa geral levantou-se o próprio Askoldov e, microfone em punho, fez seu protesto diante da plateia de jornalistas do mundo inteiro. Depois eu soube que ele tinha sido avisado da minha intenção de trazer o filme à baila. Dali em diante, A Comissária virou a grande polêmica do evento. Os jornalistas exigiram ver o filme ainda no festival, o que acabou acontecendo numa sessão histórica.
Meses depois A Comissária ganharia o Prêmio Especial do Júri no Festival de Berlim. Askoldov estava lá e, em entrevista a José Carlos Avellar para o Jornal do Brasil, creditou a liberação do filme à minha intervenção em Moscou. Um exagero gentil, sem dúvida. Só assim o episódio viria a ser divulgado no Brasil. Era tempo de Indiana Jones, e os amigos me apelidaram na época de “Perestroika Jones”.
UM SANDUÍCHE COM VANESSA
Quem estava engajada na defesa da causa palestina era a atriz Vanessa Redgrave. Cruzei com ela num corredor da Domkino e, sem muita esperança de ser atendido, pedi-lhe uma entrevista. Ela se prontificou a conversar ali mesmo, desde que encontrássemos um lugar onde ela pudesse comer um sanduíche que trazia na bolsa. Mas tudo estava lotado e não havia mesa ou balcão disponível. Ela disse: “Vamos nos sentar naquela escada mesmo”. Eu corri à cantina para comprar-lhe um refresco. O sanduíche de queijo era enorme e ela fez questão que eu comesse metade. Pena que não tive coragem de fotografá-la nessa ocasião, mas somente em outro momento. A entrevista saiu no Jornal do Brasil, mas a minha melhor lembrança foi ter rachado um sanduba com Vanessa Redgrave numa escada de Moscou.
O ERRO DA MUSA
Naquela época eu era apaixonado por Nastassja Kinski. Colecionava as “suas” melhores cenas copiadas de VHS. Quando vi o brilho nos olhos dos muitos colegas jornalistas diante da inesperada aparição da musa numa entrevista coletiva, concluí que todo mundo compartilhava minha paixão. Ela chegou brotando de uma minissaia, jeito de menina comum, sentou-se na plateia, no meio de todo mundo, e ficou ali conversando com quem quisesse. Aturdido, nem me lembro se articulei alguma pergunta ou comentário. Só sei que a fotografei e pedi um autógrafo. Ela perguntou de onde eu era e citou o Brasil na mensagem. A palavra “Health” saiu com uma letra a menos. Item de colecionador. Em Nastassja, até os erros eram lindos. Passei duas noites intrigado e esperançoso com o “See you!” que ela acrescentou no papel. Mas nunca voltamos a nos ver.
GIULETTA E FREDERICO
O casal estava entre as estrelas de primeira grandeza que foram prestigiar o festival da transparência. A Entrevista de Fellini ganharia o prêmio máximo do júri oficial. A coletiva deles foi certamente a mais concorrida de todas. Só consegui me aproximar dos dois na apresentação do filme no cinema. Foi a única vez que os vi em carne e osso. Fotografei-os do jeito possível e capturei o autógrafo de Giulietta Masina. Ela estava sendo disputadíssima, mas àquela altura eu já havia percebido o poder da palavra “Brasile”. Ao ouvi-la, Giulietta virou-se em minha direção e pegou meu papel. Grazie, bella!
Carlos Alberto Mattos é jornalista e crítico de cinema. Texto publicado originalmente no blog do autor.