Edição 194 - Aracaju, 08 de fevereiro a 08 de março de 2015
Turismo
Por Carlos Alberto Mattos
Fotos: Carlos Alberto Mattos
1
No Templo Kalighat, em Calcutá, por algumas poucas moedas o turista pode desfrutar de um privilégio inusitado. Um sacerdote afasta aos gritos e empurrões a pequena multidão de fiéis que se aglomeram no recinto central. Pela fresta momentânea, o visitante ilustre pode vislumbrar a face negra da deusa Kali, os três olhos terríveis arregalados em sua direção.
2
Os pedintes das grandes cidades indianas, geralmente mulheres ou crianças – quando não acumuladas estas sobre aquelas – costumam praticar um piso mínimo: pedem “10 rúpias”. Se ousamos dar uma moeda menor, ficam olhando alternadamente para a mão espalmada e para o doador. A expressão de desapontamento logo dá lugar a murmúrios de desaprovação. Quando se afastam, fica a sensação de que fomos amaldiçoados para esta e as próximas encarnações.
3
O sentido da expressão “fila indiana” há muito deve ter se perdido na poeira dos tempos ou no lusco-fusco dos mitos. As filas na Índia moderna são aglomerados de gente ansiosa e conformada ao mesmo tempo. Há uma suave, quase inocente desonestidade na maneira como os recém-chegados tentam penetrar pelos flancos, alinhar-se lado a lado com quem já estava ali há séculos, sem qualquer pedido ou pretexto. O recato hinduísta obriga a que mulheres e homens formem filas separadas, diante de guichês diferentes. No famoso cinema Raj Mandir, de Jaipur, entrei num desses ajuntamentos em busca de ingressos. A leve pressão sobre meu corpo vinha de todos os lados. O jovem atrás de mim pousou displicentemente uma mão sobre minhas costas, como se fôssemos velhos amigos, e assim permaneceu. A boa sensação de estar em contato quase íntimo com a multidão indiana só veio depois de alguns momentos de perplexidade e reflexão. Depois reparei que todos se debruçavam sobre o “amigo” da frente. Mais tarde ainda, leria que tal prática destina-se a coibir os furadores de fila. À medida que chegava mais perto do guichê, tive que usar meus dois braços para evitar os invasores laterais. Àquela altura, eu já era um expert em fila indiana.
4
A mitologia erótica ainda é o principal item do comércio turístico na Índia. Quase todo vendedor de bugigangas sabe disso. Recusada a primeira oferta – seja de pulseiras, deuses em miniatura, doces ou tambores –, invariavelmente chega a vez do livrinho de Kama Sutra. Basta esperar…
5
Quando proíbem o turista de tirar fotos em algum lugar, os guardas e seguranças indianos o fazem quase sempre com um sorriso nos lábios. À primeira vista, parece que estão autorizando.
Na grande caverna hinduísta da Ilha de Elefanta, perto de Bombaim, um desses simpáticos funcionários comunicou-me que não era permitido rodar a câmera de vídeo. De vez em quando, ele enviava sorrisos adicionais à distância. Depois de um tempo, aproximou-se e perguntou algum detalhe técnico sobre a minha câmera. Em seguida, com o sorriso adquirindo subitamente a forma de um cifrão, ofereceu em voz sussurrada: “Would you like?”. Polida e politicamente correto, recusei. Ele voltou a sorrir e se afastou.
Foi a proposta de corrupção mais cortês e amável com que jamais me deparei.
6
Apontar uma câmera de vídeo em espaço público da Índia é sempre o princípio de uma grande festa. Crianças se apresentam para ser filmadas, e atrás delas vêm o pai com ar condescendente, a mãe com seu sorriso tímido, os parentes intrometidos. Todos se divertem muito em posar, sobretudo se a tela do monitor estiver voltada para eles próprios, e agradecem ao final. Em Agra, até um grupo de guardas pediu que eu os filmasse. Mas uma variante dessa comoção é especialmente curiosa: homens e rapazes, em tom de galhofa, apontam para seus amigos propondo que os filme. Esses, inexplicavelmente, parecem não gostar da brincadeira e viram o rosto para o outro lado.
7
Éramos um pequeno grupo de turistas ocidentais à espera dos elefantes que nos conduziriam rampa acima até a majestosa fortaleza de Amber, nas cercanias de Jaipur. Um cinegrafista aproximou-se. Seu companheiro pediu que um de nós desse um depoimento para a câmera. Mas não seria um depoimento qualquer, senão um preciso texto que ele se apressou em ditar:
- Somos da televisão e estamos aqui para ajudar a vocês, turistas. O senhor ou a senhora poderia dizer que está aqui há quase uma hora, sob o sol, e que isso é uma situação muito desagradável; que alguma coisa precisa ser feita para melhorar o turismo neste local; que o governo deveria colocar mais elefantes no serviço; ou que, ao menos, deveria permitir que cada elefante levasse quatro pessoas, em vez de duas.
Nenhum de nós concordou em recitar script tão premeditado. Alegamos desconhecer as questões envolvidas. E se o governo estivesse protegendo condignamente os pobres elefantes? Os supostos homens da TV ainda argumentaram que era para o nosso bem, mas acabaram mesmo voltando de fitas vazias. Meia hora depois, estávamos no lombo dos gentis paquidermes, cambaleando sem jeito nem culpas, até o topo da montanha. E sabendo um pouco mais sobre o funcionamento da mídia na Índia.
Carlos Alberto Mattos é jornalista e crítico de cinema. As notas de viagens acima foram originalmente publicadas no blog do autor.