Edição 194 - Aracaju, 08 de fevereiro a 08 de março de 2015

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Reportagem

Monte Roraima
Uma expedição até o topo de um dos pontos mais extremos do país

Por Luciana Tancredo

Foto: Luciana Tancredo

Monte Roraima: cenário de ficção

 

Lendas indígenas, mistérios, paisagens exuberantes e um clima de aventura. Estes são alguns dos “ingredientes” que renderiam, sem dúvida, um bom livro ou até novela. Pois é justo um cenário da novela O império, da Rede Globo que fomos desvendar e conhecer de perto. Na verdade, muito antes do Monte Roraima, no extremo norte do país, passar a ser conhecido como o Monte do Comendador José Alfredo – personagem vivido na trama de Aguinaldo Silva pelo ator Alexandre Nero – já tínhamos acertado este Especial.

Depois de desbravarmos diversas outras regiões, de diferentes biomas, para os nossos leitores – como o Pantanal, diversos pontos da Amazônia brasileira e peruana, a região Sul, a Mata Atlântica, Fernando de Noronha, Chapada dos Veadeiros, Serra da Canastra (MG), etc. - sabíamos que tínhamos um “encontro marcado” com o extremo Norte, uma subida de 2.800 metros, caminhando quase 90 quilômetros ao longo de oito dias em terreno acidentado e íngreme, cruzando rios, enfrentando sol e chuva e fugindo das pedras escorregadias.

Nas aulas dos nossos tempos do tradicional Primário aprendemos que o Brasil era marcado ao Norte pelo Monte Roraima e ao Sul pelo Arroio Chuí. Pesquisando com calma, descobrimos que o ponto mais extremo em Roraima é o Monte Caburaí, na Serra com o mesmo nome, marcando a fronteira entre o Brasil e a Guiana. Mas o Monte Roraima marca o nosso imaginário há muitos anos. Estaríamos em um dos extremos de nosso país tão continental: ali fica o Ponto Triplo, marco das fronteiras do Monte: Brasil, Venezuela e Guiana. A Venezuela, detém quase que 80% do Monte Roraima, a Guiana uns 15% e o Brasil tem a menor parte, não mais do que 5%. Por isso a maioria das agencias operadoras de turismo no monte são venezuelanas, e são também as autoridades desse país que controlam a entrada e saída dos turistas do Parque Canaima, onde fica o Tepui.

Há cerca de um ano, decidimos que iríamos fazer esta travessia. Como não sou uma aventureira de carteirinha – embora já tenha rodado vários destinos pelo Brasil e pelo mundo fotografando roteiros de natureza, normalmente com a providencial ajuda do carro, barco ou helicóptero – fazer trekking nunca foi uma rotina em minha vida. Quando mais em um terreno íngreme e acidentado.

Desafio

Encarei a missão como um verdadeiro desafio. Ao completar 50 anos, levando uma vida agitada, amante da natureza, tendo visitado vários parques e destinos inóspitos como o Atacama, na verdade, sempre fui uma moradora de grande centro. Era preciso rever hábitos, reencontrar o equilíbrio com a balança e reorganizar o corre-e-corre diário do trabalho para conseguir realizar este sonho. Chegar ao Monte Roraima não de helicóptero – há esta opção sim, mas a preço bem mais caro, claro e mesmo assim é preciso também andar bastante no topo para conhecer a região -, mas caminhando, em grupo de trekking ao longo de oito dias.

Antes, no entanto, foram meses de preparo e um roteiro bem disciplinado para dar conta da missão. Fiz meu “dever-de-casa”, treinando com disciplina: caminhadas em média de 10 quilômetros por dia, pelo menos três vezes por semana e de preferência em terrenos acidentados e carregando uma mochila com 5 quilos.

Acompanhe, a seguir, o serviço completo com dicas mesmo para um turista iniciante no trekking como eu. Asseguro: até mesmo para uma andarilha sem tanta experiência, é possível sim atingir a meta traçada. Não é preciso escalar, basta ter coragem e seguir todas as indicações dos experientes guias.

Especialistas

Aqui, fazemos questão de fazer importante ressalva. Nada disso teria sido possível sem os guias e toda a equipe envolvida no roteiro. Gente acostumada com grupos deste tipo há 12 anos. “Nossa missão é esta. Dar todo o suporte para que o visitante possa aproveitar cada minuto da beleza do Monte Roraima”, diz Joaquim Magno Souza, dono da Roraima Adventures Turismo, agência especializada neste roteiro e em outros tantos de aventura. Ele esteve pela primeira vez no Monte Roraima em 1992, como turista e, desde então, a região “entrou na sua vida”. Conta à Plurale que naquele ano, juntou-se a três amigos e se arriscaram a ir até um lugar até então desconhecido. “Depois disso, todos os anos esse era meu refúgio”, revela Magno, em uma narrativa que se cruza com a do personagem “Comendador José Alfredo” de “Império” que volta sempre ao Monte para se energizar. Desde 1992 até hoje, já foram 89 viagens ao topo da montanha. “Certamente, devo ser o brasileiro que mais vezes esteve lá em cima”, calcula.

As semelhanças com a ficção, no entanto, acabam aí. No Monte não há garimpo, grutas como as da novela, diamante cor-de-rosa ou qualquer outra ligação com a trama do folhetim. É possível chegar de helicóptero sim, mas não há o clima quase de “Indiana Jones” do século 21 como a televisão mostra. No entanto, com a experiência de quem lá já esteve, asseguro: a realidade é muito mais espetacular e incrível que o roteiro televisivo. Para quem não sabe, muitas das cenas da novela que parecem como se fossem em Roraima, na verdade, são gravadas na região de Carrancas, Minas Gerais.

Gostaríamos de agradecer imensamente também aos guias que nos acompanharam, representados aqui na figura do experiente líder dos guias, Everaldo Cunha Souza, o Borracha, e a todos da simpática equipe. Não só garantiram segurança e atenção ao grupo, como ainda nos desvendaram as lendas, os encantos e “tesouros” naturais da floresta.

Lendas

Lendas como a de Makunaima – o Deus guardião dos montes para os índios Pemon – cuja imagem está “gravada” nas pedras do paredão rochoso e “exige” de cada visitante um pedido de licença para que possa adentrar na região com segurança e assim também voltar.

Os índios que trabalham como carregadores e também são guias contam que Makunaima nasceu das águas de um lago, após os reflexos dourados do sol e prateados da lua se encontrarem. Mas houve um dia em que a divindade se cortou e de cada gota de sangue nasceu um índio. Outra informação importante que os guias nos passam: nada de gritar, já que Makunaina mão gosta de barulho. Se isso acontecer, advertem, o Deus fica com raiva e fecha o tempo imediatamente, derramando chuva pesada.

As lendas não param por aí. Contam também que o Kukenan, o Monte vizinho ao Roraima, significa Vale dos Mortos e para os índios Pemon também é conhecido como Matawi, ou a “montanha que mata gente”. Era ali que aconteciam os sacrifícios, nos quais índios se jogavam do ponto mais alto para acalmar Makunaima ou pagar promessas. Hoje, nenhum índio se atreve a acompanhar as expedições por lá e o Governo da Venezuela praticamente proíbe visitantes no lugar.

Pesquisamos muito antes de começar a jornada e sabíamos um pouco do que iríamos encontrar por lá. Além da savana e da floresta, lemos que ali havia espécies endêmicas, algumas que aparecem somente em dois lugares no planeta: nessa região do Roraima (no topo inclusive) e na África, reforçando a tese de que esses continentes a muitos e muitos anos atrás eram unidos.

Grupo solidário

Éramos 19 visitantes no grupo de diferentes perfis, idades e nacionalidades: brasileiros de diferentes regiões, dois franceses e três suíços. Para minha alegria, tive a companhia de outras duas mulheres. No grupo, havia novatos na experiência e também verdadeiros profissionais em trilhas, como o fotógrafo suíço Hans Peter Gass Migliati, que dá aulas para grupos de turistas em caminhadas e escaladas nos Alpes. Especializado em fotografia de natureza, ele estava encantando com o que via. “Muito mais espetacular do que esperava”, disse. Hans estava acompanhado de dois amigos, Roni Lopes que é enfermeiro e Paulo Zingg, todos filhos de brasileiros, mas residentes na Suiça.

Grupos de amigos e parentes também são bem comuns. Como dois irmãos e o marido de uma prima: Luiz Eduardo Hargreaves é vegetariano, largou emprego em Brasília e está viajando há cerca de um ano, em período sabático por diferentes pontos; o irmão, Paulo Hargreaves, e o primo, Ricardo Alexandre Mendes Calvo, o Rick, formavam o trio do trekking. Outro grupo bem animado e unido eram os “catarinas”, três amigos de Santa Catarina, que gostam de se aventurar em escaladas, Dieter Lichtblau, Francisco Gruber e Laercio Linzmeyer.

A caminhada também pode ser a dois, como para o casal de veterinário e fisioterapeuta, Renato Valentin e Berenice Chianello , ambos maratonistas, mas com pouca experiência no trekking. Ou de solitários, que logo se enturmam e viram grandes amigos, como Pedro Horigoshi, acostumadíssimo ao trekking de longa distância ou Louc Durieux, um francês super simpático que trabalha com turismo de aventura. Também alegraram o grupo o solidário Luiz Tropardi, que me emprestou um de seus bastões de caminhada, o que eu agradeço muito, e a corajosa Caroline Migault, uma jovem francesinha que viaja o mundo de hoje de mochila nas costas completamente sozinha. Não posso esquecer do Coelho, Vilmar e o Rogério, o trio divertido de Manaus.

Dicas

Mas como foi a caminhada? Que cuidados tomar? Como suportar os desafios? Conto isso a seguir em uma espécie de diário de viagem. Compartilho com os leitores em fotos especiais de cenários muitas vezes beirando o surreal. O Tepui Roraima, também conhecido pelos índios como a Mãe das Águas, nos inspira a tentar olhar a natureza de uma forma diferente. Assim que olhamos as montanhas ao longe, com a chuva caindo em cima delas, é difícil imaginar tudo que vamos encontrar pelo caminho.

A primeira dica para garantir uma boa caminhada é tomar todo o cuidado com os pés. Passe sempre vaselina nos pés e use duas meias para garantir pés secos e saudáveis. Uma só bolha e o serviço estará perdido. Arrumar as malas, ou melhor, as mochilas, também foi um outro desafio. Primeiro organizar e comprar tudo o que recomendavam como essencial e depois tentar colocar tudo e o mínimo de roupa possível (o que para uma mulher já é bem difícil) dentro de duas mochilas. Sem, é claro, esquecer que eu estava indo para fotografar, ou seja meu equipamento também tinha que ir. E não é leve. Por mais minimalista que eu fosse nessa hora, seriam pelo menos 4 kg só de equipamento. A tarefa estava complicada, mas não impossível. Como já estava acertado que teria um carregador pessoal, para a minha mochila cargueira, barraca e outros materiais, que não poderiam passar de 15kg, restava uma mochila e um cinto de fotografia para o resto todo: equipamento fotográfico, água, barrinhas de cereal, repelente, filtro solar, corta vento, capa de chuva, óculos escuros, creme para os pés (pode parecer frescura, mas foi um dos itens mais importantes da mochila).

A ajuda de especialistas é mesmo essencial. Nada de se aventurar sozinhos por esta floresta. Há opções para todos os bolsos e gostos. A Roraima Adventures Turismo, por exemplo, faz quatro saídas para o Monte Roraima e tem calendário fechado até 2016. O dono, Joaquim Magno, assegura que o acesso ao Monte Roraima é possível à maioria das pessoas, mas “é preciso ter consciência de que a realidade da trilha é bastante cansativa, anda-se em terrenos acidentados, um sobe-desce sem parar, e o desgaste físico é extenuante.” Isso pudemos constatar em nossa jornada. Ele completa: “Não é necessário ter grande experiência, porém exige disposição e condicionamento físico em perfeito estado. Nos extremos de idade foram um garoto de oito anos e um senhor de 82 anos, sendo que pessoas acima do peso ou sedentárias podem subir, desde que sejam conscientizadas das dificuldades. O nosso mais gordinho foi um mineiro que tinha 165kg”, lembra.

Verdadeiro tesouro

Posso assegurar que não chega a ser um trekking tão pesado e que, com a ajuda de especialistas e um grupo solidário e experiente como o meu, é possível, sim, cumprir a missão. Garanto ainda que todo esforço diário de cerca de sete horas de caminhada – em clima adverso – mais do que compensa ao chegar no topo do Monte e ver não só a imensidão, mas também cada detalhe da biodiversidade local. Constatamos que fazer esta travessia não era apenas a questão de vencer um desafio. Foi uma experiência de vida completamente diferente de tudo o que já havia visto até então.

Que “Comendador” que nada. O Monte é nosso, de todos nós. Tenho orgulho de dizer que o verdadeiro “diamante cor-de-rosa” – diferente da trama da novela – pode ser encontrado por cada um dos visitantes que respeitem a região, suas lendas e tradições. Sem levar ou interferir em nada. O “tesouro” - a natureza preservada - está e deve ficar na montanha.

 

Luciana Tancredo é fotógrafa. Matéria originalmente publicada na edição 44 da Revista Plurale. Colaborou Sônia Araripe.