Edição 193 - Aracaju, 04 de janeiro a 01 de fevereiro de 2015

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Ficção

As almas do Doutor Leôncio
Fenômenos extremos

Por Eduardo Sabino

 

O doutor Leôncio costumava dizer: as coisas são exatamente como nossas ideias e valores as moldam. Não se pode enxergar anjos voando no céu sem conhecimento prévio da simbologia cristã, sem estar imerso na religião e, principalmente, sem experimentar uma boa dose de loucura. O mundo entra nos olhos, recebe filtragem do cérebro, adapta-se aos padrões culturais e regras internas do indivíduo receptor e se estabelece no nível consciente. Dito isso, essa espécie de nota introdutória de palestras, discursos e aulas inaugurais, Leôncio começava a exibir o seu mundo de áreas vastas, sólidas e bem demarcadas. Um mundo com o peso das pesquisas acadêmicas e ceticismo agudo para com tudo o que fugisse do âmbito dos fenômenos científicos. Seu mundo terminaria assim, tranquilo e equilibrado, se não começasse a ver as almas.

Experimentou o medo. Não dos espíritos, pois um homem da ciência não se permite tamanha fraqueza. Medo de estar perdendo a lucidez por motivos físico-biológicos. O que muitos chamariam de assombração, ao menos no primeiro confronto visual, o Doutor Leôncio entendeu como uma alucinação produzida pelo cansaço (era época de correção das provas finais) ou os indícios de uma doença no cérebro. Sintomas de esquizofrenia?

A primeira a dar as caras foi uma garotinha, pulando corda no meio da sala. Chamou-o para a brincadeira e Leôncio não respondeu. Não podia aceitar uma criança materializada na sala de repente se até o vento era impedido de entrar pelas janelas e portas.

“Como entrou aqui?”

“Entrando”.

Analisou o rosto. Nunca a tinha visto. Fora de cogitação ser a filha de algum vizinho perdida na madrugada. Fechou os olhos, imaginou que estava num sonho em que fosse possível sonhar acordado e lúcido. Afastou a hipótese patética e se levantou. A menina se desmanchou – sumiram as pernas, o tronco, depois a cabeça. Leôncio foi até o armário e pegou um charuto. No terceiro ou quarto trago, optou pela solução viável: a alucinação. Por esgotamento físico ou início de doença mental.

Era mesmo o início de algo, pois os invasores foram aumentando, dia a dia, assim como o tempo das visitas. Não só crianças. Jovens, homens e mulheres, idosos, grupos com diversidade de etnia e classe social.

Tentemos imaginar a quebra na rotina do velho Leôncio. Antes ele não tinha ninguém. Recebia em casa apenas uma empregada que dava faxinas uma vez por semana. Tirando ela, nenhuma forma de vida lhe fazia companhia, com exceção dos insetos de lâmpada cuja presença ele tratava logo de eliminar com chineladas nervosas. Para se saber na companhia das almas, bastava ouvir uma voz, um riso, qualquer ruído humano. Surgiam a qualquer momento, nas horas de leitura, televisão e até durante o banho, embaçadas atrás do box.

Brigou com as almas, ao menos no início. Não por insanidade. Para medir o controle sobre as alucinações. No último confronto, excedeu-se. Voltava do cinema, onde já havia dividido uma fileira com tipos estranhos – incluindo uma mulher com feridas nos pulsos – e, de volta a casa, encontrou uma grande festa em andamento. Pessoas com trajes antiquados saídas diretamente do século XIX riam e tomavam o vinho imaginário. Gente em todos os cantos, jogando baralho, interagindo, dançando. De onde vinha o som? Da cozinha, descobriu, onde se posicionavam os músicos, tocando instrumentos acústicos, de sopro e batendo ritmicamente nas panelas.

“Fora, seus filhos da puta!”

Gritou muito, até lhe darem atenção; mudos e indignados. Um homem com bigode longo e curvilíneo retirou o chapéu e pediu calma a Leôncio. O gesto veio com tanta educação, numa linguagem tão rebuscada, que o doutor ficou um tanto constrangido da maneira como fez a abordagem. Desculpou-se então pela grosseria e disse para voltarem no dia seguinte – ele estava cansado e precisava dormir. No instante seguinte, desapareceram.

Leôncio foi ao banheiro, tirou as roupas, entrou no box, abriu o chuveiro e logo se viu diminuindo, diminuindo, até estar sentado no azulejo, encurvado, a cabeça entre as pernas. Logo ele, um doutor respeitado, o mais feroz dos céticos vivos do Brasil – uma vez escreveram – agora acometido pela loucura. Não era justo.

Tentou guardar as almas para si, mas o sigilo não foi uma boa escolha. Nem sempre conseguia diferenciar as almas e os vivos. Nem sempre vinham com trajes de época, resquícios da morte ou detalhe qualquer. Foi questão de tempo até começarem os flagrantes: uma conversa na biblioteca com uma professora invisível; a advertência, diante da turma, a um falso aluno atrasado. Após os episódios, passou a distinguir, até certo ponto, os vivos dos mortos no pátio da universidade. Os vivos mantinham uma expressão de deboche na sua presença; as almas, uma gentileza sincera.

Doutor Leôncio voltou a experimentar um sentimento remoto, há muitos anos reservado à memória da juventude: a insegurança, a tremedeira, o suor nas aulas. Temeu pelo prestígio, essa dádiva que lhe fugia a cada novo vacilo e lhe assombrava, todas as noites, mais do que as assombrações.

Revelou-se. Escreveu uma carta aberta no principal jornal acadêmico da comunidade cética, na coluna que mantinha há anos e não estava disposto a perder por bobagens. “Caros leitores, tentarei ser breve e direto. Há pouco mais de seis meses tenho sido acometido por fenômenos singulares. Vejo, a todo o tempo, figuras que os mais supersticiosos diriam serem almas penadas. Mas, digo de antemão, sei que estou doente e elas não existem.” O texto seguiu-se assim, num misto de confissão e análise. Gastou o exato limite de caracteres da coluna numa carta de bastante clareza, uma reafirmação de princípios. Estava disposto a manter a linha de pensamento e as convicções céticas, independente das estranhas experiências empíricas - por pouco não escreveu espíritas. Ao fim, entregava-se às mãos da ciência. Iria aonde fosse preciso para identificar a doença por qual sofria.

De pesquisador, Leôncio virou objeto de estudo, para delírio da comunidade científica do país, que lhe abarrotou de e-mails e cartas de admiração. Submeteu-se a testes, exames e vários procedimentos. Ninguém identificou nada, seja anormalidade no cérebro, distúrbio psíquico ou encenação teatral. O grande poder cognitivo do doutor estava lá, apesar das almas que jurava enxergar ao seu redor. Durante os checapes, Doutor Leôncio faltou com a razão apenas uma vez, e em nome da razão. Um neurocirurgião jovem e imaturo; elogiou os resultados dos últimos exames e afirmou não haver problema algum com o paciente.

“As suas palavras seriam animadoras doutor, não fosse essa velha gesticulando ao seu lado”, disse Leôncio.

O médico, sem sombra de humor nas feições, disse crer nos espíritos, e quis saber como era a mulher. Leôncio negou detalhes da aparição, que pulava e insistia em se fazer ouvida, e diante da insistência do jovem pela mediação do contato, partiu para a violência. Só não o estrangulou porque os enfermeiros estavam por perto.

A não identificação de doenças psíquicas ou físicas após a bateria de exames dividiu os sentimentos de Leôncio. De um lado, a frustração por não enquadrar aquele suposto fenômeno sobrenatural no conjunto de soluções da ciência. No outro, a satisfação de superar a desconfiança dos colegas e ter a lucidez novamente certificada. Vamos resumir os muitos elogios recebidos de toda parte no trecho da fala de um respeitado jornalista: “Sem dúvida se trata de uma doença ainda não diagnosticada, mas de pleno controle do Doutor Leôncio. Mesmo diante de fenômenos tão extremos, Leôncio preserva seus princípios e métodos. Um admirável homem da ciência, frente ao qual até as almas sucumbem”.

Vieram mais louvores, medalhas de mérito, homenagens em assembleias legislativas. Quando Leôncio retomou a rotina, parecia revigorado. Desenvolveu métodos para identificar as almas e não se perder em diálogos irreais. Quando um rosto novo tentava chamar sua atenção, perguntava a um aluno de semblante conhecido se ele também o enxergava. O olhar dos vivos denunciava os mortos, e o doutor Leôncio deixava o interlocutor do além a ver navios fantasmas.

Quem conhecia o Leôncio de antes não diria que ele voltou a ser o velho Leôncio. Havia algo diferente, uma nova persona. O doutor não era tão bem humorado, espirituoso, otimista. Há quem diga que sua alma também se transformou ao viver diariamente a difícil batalha de quem existe para desmistificar as coisas, de quem não crê, ainda que veja. Convenhamos: é preciso muita personalidade para andar por aí com um cemitério sobre os ombros e leveza nos pés.

Estava realmente feliz, o doutor. Por vencer as almas, as pessoas dizem. Mas as pessoas não podem vê-lo do ângulo que o vemos. Às vezes, como agora, ele se levanta de madrugada, calça as pantufas e se dirige à sala. Fecha as persianas, liga o som baixinho e enche um copo de uísque. Fica algumas horas ali; rindo, bebendo e conversando entusiasmado com várias pessoas que, para eu e você, por falta de sensibilidade e vocação, não passam de cadeiras vazias.

 

Eduardo Sabino é escritor, autor do livro Ideias noturnas - sobre a grandeza dos dias (Editora Novo Século). Blog do autor: http://www.eduardosabino.com. O conto acima integra o livro Ali na esquina o mundo se rompeu, a ser lançado em 2015.