Edição 193 - Aracaju, 04 de janeiro a 01 de fevereiro de 2015

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Música

Diante de um gênio da guitarra
Assistindo a um show de Stanley Jordan

Por Paulo Lima

Foto: Paulo Lima

O guitarrista americano Stanley Jordan durante show no oceanário de Aracaju

 

Esta história começa em 1994, estou zonando em Curitiba, prestes a me tornar pai pela primeira vez. O rebento a caminho deste mundo e sua mãe, destacada para uma missão de trabalho, estão comigo. Eu os acompanho. A cidade é organizada e limpa. No Relógio das Flores, um dos points muito badalados na época, ouço uma mulher falar em alemão com uma criança, provavelmente seu filho. Faz frio. Existe a cidade real, cujos locais turísticos procuramos conhecer, e uma cidade imaginária, à qual apenas eu tento explorar, e nessa parte imaginária busco os rastros da poesia de um eminente cidadão curitibano. Não encontro nem as marcas de Paulo Leminski, nem seus versos, exceto o fato de que um belo teatro ao ar livre, que visitamos, leva seu nome.

Chega o dia do nosso retorno para casa, e então Curitiba me reservará a maior surpresa. A tevê anuncia que o guitarrista americano Stanley Jordan fará uma apresentação na cidade no dia posterior a nossa partida. Entusiasmado, negocio adiar a volta, mas a mamãe, desconfio que em conluio com seu pequenino hóspede, diz não. Nem adianta argumentar que é uma oportunidade de ouro de assistir a um músico famoso que jamais pisará os pés na distante cidade em que vivemos.

Se praticamente existe uma palavra para tudo que nos rodeia, então deve haver uma que traduza o fato de um evento imperdível acontecer numa cidade justo um dia depois em que a deixamos. Um hiato cruel do destino. Chafurdei no Google sem sucesso. Tal palavra não foi criada ainda. Está aberta a chance para os neologistas/filólogos de plantão.

Esta história dá um salto e cai em 2014. Meio que por acaso, fico sabendo que Stanley Jordan tocará em Aracaju em dezembro. É preciso repetir bem as palavras para acreditar. Stanley-Jordan-em-Aracaju. E o melhor, o show será no oceanário, dali a duas semanas, como parte das comemorações de 35 anos do Projeto Tamar dedicado à preservação das tartarugas marinhas. Depois tomo conhecimento de que o guitarrista tornou-se um amigo do Tamar e do Brasil. Nesses anos todos, ele já veio várias vezes ao país e estabeleceu parcerias musicais. A essa altura, dizem, Stanley já é meio brasuca, e até já estaria negociando a compra de uma propriedade, tipo Dionne Warwick, que viveu um tempo no Rio, e a roqueira Chrissie Hynde, que morou em São Paulo.

Se a notícia já seria boa demais, aqui vai o acorde perfeito. Stanley também iria apresentar um workshop sobre musicoterapia no dia seguinte a seu show. De plateia atenta, eu seria também aluno. De Stanley Jordan.

O passo seguinte à notícia foi garantir nossos ingressos. Vinte anos depois. Dessa vez não faltariam palavras para o fato de que um dos mestres da guitarra contemporânea pisaria, sim, os pés nesta distante cidade. E pela segunda vez. Não soube da primeira, mas talvez as coisas só aconteçam no tempo certo. E a palavra? A palavra seria, talvez, expectativa, uma expectativa de esfregar as mãos e contar as horas.

O segundo passo seguinte foi dedicar-me a um Intensivão Sobre a Obra do Grande Guitarrista, o que consiste, na prática, em ter permanecido horas sem fim a vasculhar os vídeos de Stanley Jordan no You tube e ver boa parte deles. Se enfileirados, somariam o tempo suficiente de uma viagem a um recanto da Via Láctea. Stanley parece ter tocado em praticamente todos os continentes, todos os grandes festivais de jazz e todos os espaços disponíveis aos grandes nomes da cena jazzística mundial.

Meu sensor de jornalista acendeu e passei a pensar numa entrevista. Sim, por que não?

Stanley Jordan, como foi seu primeiro contato com a música brasileira?

Você já tocou com grandes lendas do jazz, como Dizzy Gillespie? Como se sentiu?

Você está na estrada há muito tempo, é um músico aclamado. Como encara o sucesso?

Como chegou à touch technique que o tornou famoso como guitarrista?

Fui tomando nota das possíveis perguntas. Intensifiquei o Intensivão. Passei a pesquisar também suas entrevistas. Escritas e faladas. A impressão é que já haviam perguntado tudo – e ele já havia respondido tudo - de relevante sobre sua carreira. Stanley começou na guitarra aos 11 anos de idade, depois de ter estudado piano clássico. Em dificuldade, a família precisou vender o piano. Aos 10 anos, foi assistir a um festival de jazz. Graduou-se em teoria e composição em Princeton. Nasceu em Chicago, mas cresceu na área da baia de São Francisco. Foi músico de rua e teve que enfrentar muita competição. Certo dia, tendo que participar de uma sessão de jazz, percebeu que não poderia ir, pois estava muito gripado. Mesmo assim foi e acabou tocando durante quatro horas, melhorando da gripe. A partir daí descobriu que a música podia funcionar como uma terapia.

Meu Intensivão ia acumulando informações. Um fato não podia escapar aos fãs de Stanley. Ele mudou o visual nos últimos anos. E mudou de uma forma radical, a ponto de parecer outra pessoa. Incorporou ao new look batas, brincos, colares e outros adereços, além de um longo cabelo. Em entrevista ao repórter Jotabê Medeiros, do Estadão, Stanley explicou que antes era muito conservador, e que tais transformações melhoraram sua música.

Numa das apresentações que vi no You tube, Stanley faz um solo de Eleanor Rigby, o hit dos Beatles que ele rearranjou magistralmente. Stanley está num evento corporativo, uma feira de tecnologia. Ele parece incorporar uma frase famosa de uma canção de Milton Nascimento – todo artista tem de ir aonde o povo está. Ao final da apresentação, o mestre de cerimônias vibra: inacreditável! Sim, inacreditável. Stanley transformou seus shows em demonstrações de virtuosismo, tocando ao mesmo tempo piano e guitarra. Ou tocando duas guitarras ao mesmo tempo, fazendo solo e acompanhamento em instrumentos distintos. Alguém fez um comentário pertinente num desses vídeos do You tube: Stanley parece ter dois cérebros. Eu diria dois cérebros e muitas mãos.

Além do virtuosismo, Stanley Jordan carrega uma marca registrada que o distingue num universo pontuado por grandes monstros da guitarra. O tapping (batida), ou a touch technique, a técnica que faz com que sua guitarra soe do modo suave que ouvimos, como se fosse um piano. Stanley não inventou essa técnica, mas a aperfeiçoou, tocando acordes complexos com a mão esquerda enquanto executa solos velozes com a mão direita. Numa entrevista à revista Guitar Player em 2008, ele disse que tocou guitarra com palheta durante seis anos, antes de partir para a nova técnica. Particularmente, acho admirável seu universo musical aberto a várias tendências, fato que o levou a releituras de clássicos do rock and roll, como Stairway to heaven, do Led Zeppelin, do cinema, como Over the rainbow, ou da música clássica, como o Concerto no. 21 para piano de Mozart.

Enfim, o grande dia. Na noite ventosa e estrelada do sábado à noite, uma pequena fila se forma diante do portão de entrada do espaço do oceanário reservado ao show. Stanley Jordan dividirá o palco com um time de músicos de primeira grandeza: o contrabaixista Dudu Lima, o baterista Mamão e o tecladista Ricardo Itaborahy. Como convidado especial, o baiano Armandinho. Vá até o You tube e tecle o nome de um desses músicos combinado com o de Stanley Jordan. Curta à vontade. Só que naquela noite a parada seria ao vivo em technicolor.

Súbito, uma surpresa. Do lado de fora, enquanto aguardamos a abertura do portão, ouvimos que Stanley&convidados estão passando o som! Um pequeno aperitivo antes do show. Pessoas mais afoitas bisbilhotam por entre a cerca de madeira. O lugar é rústico, pequeno, perfeito para aproximar o público do artista.

Considero cada show de música uma festa, e os momentos que antecedem a apresentação são uma festa dentro da festa. A passagem de som cessou, e com algum atraso o portão, um único portão de madeira, foi aberto. As pessoas foram se acomodando por ali, posicionando elas mesmas suas mesas. Escolhi uma frontal ao palco. Éramos três: minha mulher e um amigo que já tivera a chance de ver Stanley Jordan no clube Iridium em Nova York, anos antes. Nesse clube, Regi fez uma foto com o mestre. Tempos depois, fez a foto da foto com Stanley Jordan, na primeira apresentação do guitarrista em Aracaju. Naquela noite, ele teria a chance de fazer a foto da foto da foto, um possível recorde mundial em se tratando de ser fotografado com uma celebridade. Regi é o que os americanos costumam chamar de lucky dog, um cara de sorte. Já assistiu a shows memoráveis no Brasil e nos Estados Unidos, e pôde fotografar e ser fotografado ao lado de seus artistas adorados como um fã número 1.

Então, sem qualquer aviso, os cavaleiros do apocalipse vão chegando pelo lado direito da plateia, completamente anônimos, favorecidos pela semipenumbra do local. E lá está Stanley Jordan, deslizando em silêncio rumo ao palco, junto e misturado com as pessoas. Esse ritual antes do abre-te sésamo é hipnótico, os músicos buscando seus lugares no palco, posicionando seus instrumentos, enquanto o tic tac da expectativa conta os segundos antes do pam pam pam dos acordes iniciais.

Uma garota vai até o microfone e explica o propósito daquela noite. Fala pouco, sai de cena e o show começa com um arranjo funkeado de As árvores, música de Arnaldo Antunes e Jorge Ben Jor. O fraseado com sons de teclado hammond de Ricardo Itaborahy confere contornos de rara beleza a uma composição já bela em si mesma. Os primeiros momentos são de pura magia, e talvez magia seja a palavra certa a ser usada.

A guitarra de Stanley Jordan soa acima do conjunto, e cede espaço aos solos de Dudu Lima, que por sua vez cede espaço ao teclado de Ricardo, que por sua vez cede espaço à bateria de Mamão. Estamos diante de uma jam session com tempero tropical. E nesse improviso eles irão tocar de Milton Nascimento a standards do jazz americano. Os caçadores de imagens se aproximam do palco. Se pudessem subiriam nele. Não basta apenas ver e ouvir. É preciso registrar e levar para casa fotos e vídeos como pequenos troféus. Sou um desses caçadores, e me aproximo também do palco. É preciso filmar e filmar e tirar mais e mais fotos, na tentativa de capturar o momento, o momento... sabe-se lá que momento. É tudo mero impulso obsessivo de fã. Dali dá pra ver que os músicos estão pra lá de Marrakesh, com ar cansado. Depois do show Ricardo Itaborahy me contaria que vieram direto da Praia do Forte, onde se apresentaram na noite anterior. Vida de músico não é apenas glamour.

O setlist do show abre espaço para os tão esperados solos de Stanley. Ele não deixa barato, e seu arranjo jazzy e bluesy para Stairway to heaven arranca assovios e aplausos entusiasmados da plateia. Em algum momento, Dudu Lima dirá, quem sabe tirando um sarro, que eles não ensaiaram. No indefectível momento de apresentação dos músicos, Stanley se perde na tradução. Provoca risos na plateia e em si próprio ao pronunciar o nome de Mamão (ma-mau), o baterista. Sua voz é baixa, tímida. Ele se expressa mesmo é por meio de sua guitarra. Mas Stanley é loquaz e bem articulado na medida certa, como vi em entrevistas e presenciarei no workshop do dia seguinte.

Por fim, Armandinho sobe ao palco, empunhando sua guitarra sergipana (sim, o instrumento é confeccionado pelo luthier sergipano Elifas Santana). Ao lado de Stanley, ele dá mostras de grande virtuosismo, e praticamente roubou a cena ao tocar, no bandolim, Noites cariocas, um clássico de Jacob do Bandolim. Foi o único momento em que Stanley Jordan depôs as armas e, com um sorriso, limitou-se a observar o baiano ousado.

Quase ao final do show, volto a me aproximar do palco, agora pelo lado oposto onde estivera antes, para fazer novas fotos, mais perto, mais perto, a foto perfeita, a aura do artista, o troféu, o souvenir definitivo e inesquecível. Fico por ali vendo os instantes derradeiros, sabendo que o show vai terminar e depois vem o quê? A realidade. Ao meu lado, um freak, um doidão. O cheiro de marijuana começou a invadir o local lá pela metade da apresentação. Estava na cara que o doidão viajava, se sacudindo todo ao ritmo da música, segurando um copo com uma das mãos. Por dois momentos, Stanley lança um olhar enigmático na direção do sujeito. Daí o doidão deposita o copo na beirada do palco e acende um cigarro. O gesto de Stanley é tão rápido quanto inesperado. Ele dá dois passos ágeis pra a frente na direção do doidão e move o dedo indicador duas vezes em negação. O freak pareceu não entender, nem eu. Então Armandinho, no palco naquele momento, abre a boca e fala articulando claramente as palavras: “O cigarro”, “o cigarro”. O freak se toca, apaga o fumacê e se aquieta.

O show termina. O show um dia tem que terminar. Stanley Jordan foge pelo canto direito da plateia. Alguém sussurra que ele é “antissocial”. Lá vai minha entrevista indo embora, pensei, se bem que, a rigor, eu já havia desistido dela. A essa altura, meu amigo Regi tinha desaparecido. O fato é que Stanley já estava lá ao fundo, a postos, para autografar seus CDs. E Regi também já estava no encalço do mestre para conseguir a foto da foto da foto. Foi o primeiro da fila, e cheguei a tempo de vê-lo sorrindo ao lado de Stanley enquanto um flash eternizava o momento.

Corri e comprei também meu CD, Friends, que o vendedor me avisa ser o trabalho mais recente do artista. Vou para o fim da fila e aguardo, um pouco nervoso, minha vez de debutar um autógrafo e uma foto com um gênio do jazz. Minha vez chegou e aproveito para gastar um pouco o inglês dizendo para Stanley que havia visto muitos vídeos dele no You tube, e que era uma honra estar ali vendo seu show pessoalmente. Em seguida eu o cumprimentei com um aperto de mão. Stanley sorriu e devolveu um thank you very much. Não há nada mais americano do que thank you very much. Meu amigo Regi fez nossa foto. Missão cumprida. Quando viu que não havia mais ninguém na fila, Stanley sumiu. Os outros músicos ainda ficaram por ali, conversando com as pessoas e tirando fotos. Um momento muito bacana de interação e simplicidade da parte deles. Eu e Regi descobrimos que lá atrás havia uma mesa com sanduíches, doces e frutas, boca livre da qual os músicos devem ter se servido antes do show. Cada um de nós pegou um copo de água, depois saí para procurar minha mulher e juntos batemos em retirada. Agora era nos preparar para o workshop no dia seguinte à tarde.

O sol ainda vai alto, embora a tarde caminhe para seu fim. O oceanário está repleto de turistas. Perguntamos pelo workshop, e depois de algum tempo somos conduzidos a um local com algumas fileiras de cadeiras de plástico. Os sortudos vão chegando aos poucos. A maior parte é de músicos. Tal como imaginamos, a aula de Stanley Jordan será um inacreditável tête-à-tête com o gênio. Lá na frente estão duas caixas de som. Um cenário minimalista. Sem pompa, à maneira e semelhança do convidado, que chega à francesa, silenciosamente, carregando o case da guitarra às costas. Stanley dá um aceno, e respondo com uma continência. Com ele chega Dudu Lima, o tradutor e um cara da equipe responsável por registrar o evento com uma filmadora.

A pequena plateia está em silêncio. Stanley Jordan se move lentamente. Retira a guitarra do case. Pluga o instrumento na caixa de som. Ajusta o volume. Afasta-se até um canto e começa a aquecer. Explora as escalas graves e agudas. Olhos fechados. A cabeça em movimento sinuoso, ora para a direita, ora para a esquerda. O homem e seu estilo. Stanley toca sempre muito concentrado, totalmente imerso no tema musical que está executando. Uma imagem muito distante da maior parte dos guitarristas, que incorporam ao ato de tocar uma mise-en-scène de cabelos esvoaçantes e acrobacias corporais – sobretudo os guitarristas do rock. Faz parte do espetáculo.

Fantástico, sensacional!, grita um músico mais exaltado na plateia. Stanley sorri e segue dedilhando a guitarra.

Dudu Lima desempacota seu contrabaixo e efetua também os ajustes sonoros. A atmosfera está ficando cada vez mais musical. Lá fora famílias circulam ocupadas com os atrativos do oceanário, indiferentes ao fato de que bem ali ao lado está um mestre da guitarra contemporânea.

Terminado o aquecimento, Stanley senta-se e dá início a seu workshop. Nas mãos, folhas de papel com anotações. Leio em algum lugar que ele sempre procura uma brecha em seus shows para dar essas oficinas por onde passa. É um ato voluntarioso admirável. Em Canoas, no Rio Grande do Sul, ele falou para um grupo de crianças especiais e seus familiares, um workshop musical nos moldes do que estamos presenciando agora. Um vídeo da RBS mostra Stanley em ação, tocando e dançando com essas crianças.

Stanley Jordan é membro e porta-voz da Associação Americana de Musicoterapia. A chave do que ele se propõe a explicar naquela tarde diz respeito ao aprendizado e como desenvolver uma habilidade, não necessariamente musical.

Quantas vezes vocês acham que precisamos praticar por dia?, ele nos pergunta. Milhões!, respondo cá da minha cadeira, palpite galhofeiro que arranca um riso de Stanley. Ele logo descarta a resposta. E se eu dissesse a vocês que uma vez só é necessária? Estamos incrédulos, imaginando quantos zilhões de minutos ele não gastou na vida exercitando sua guitarra. Ele expõe então seu método e, se entendi bem, o fundamental é que procuremos aprender em pequenas doses, até dominarmos cada etapa do processo. Não adianta você praticar tanto, se está perseguindo o caminho errado. O próprio Stanley ilustra o método com sua experiência. Numa jam session, quanto menos acordes eu usar, menor será a possibilidade de erro. Pra que usar vinte acordes se posso usar apenas três ou quatro?

Paciência. Tempo. Fazer as coisas devagar. Relaxado. Vou pegando os pedaços de suas explicações e pensando que muitas vezes eu incorri no exagero (e no erro) em meus aprendizados.

Stanley evoca a fábula da tartaruga e do coelho para reforçar sua tese de que as coisas precisam ser feitas com paciência. Afinal, sabemos quem ganhou a corrida ao final, não é mesmo?, diz com uma risada vitoriosa.

Agora, vamos tocar!

Para um dado tempo de aula, uma porção generosa de música. Estamos mergulhados no torpor de alunos-do-grande-mestre-da-guitarra. Nenhum de nós parece ter acordado ainda para o fato de que estamos ali, recebendo doses de sabedoria, uma dádiva para a qual não fizemos grande esforço, sequer pagamos um ingresso.

A cada intervenção da plateia, Stanley se desdobra em explicações pormenorizadas, normalmente enriquecidas por exemplos do cotidiano. Aquele músico tímido no palco agora se revela um professor articulado e didático. Penso cá com meus botões que esses americanos têm método para tudo, e que muitos gênios da arte floresceram por meio da intuição. Não foi Einstein quem disse que a intuição é uma poderosa ferramenta na ciência?

Pergunto então a Stanley que papel a intuição exerce em seu método. Ele se estica na cadeira, pensa, respira e dá início a uma longa digressão. Acaba por concluir que a intuição é poderosa e muitos a explicam de várias maneiras, até como um ato que vem de Deus - no caso de uma bela composição -, mas que a técnica é um elemento indispensável. Então ele pega a guitarra e dá sequência a uma série de belos acordes, cada uma criando um clima diferente, tudo para mostrar que, sem esse domínio técnico, ele jamais seria capaz de expressar suas emoções. OK, Stanley, ponto pra você.

É claro que estou resumindo uma longa e deliciosa explanação de um cara que pensa o problema, que não teme romper fronteiras musicais. E ele tem feito isso o tempo todo. 

Vamos tocar!

Mais um número eletrizante, com Stanley batendo o pé com força no chão para marcar o ritmo. Fico pensando que esse cara se apresentou na noite anterior, e agora estava ali, em pleno domingo à tarde, com disposição juvenil.

Estou aprendendo essas coisas para quando chegar o tempo em que eu estiver bem velho e não puder mais tocar guitarra. Vocês irão me visitar no hospital e tocar para mim, ele dramatiza, desabando teatralmente na cadeira.

Não é possível imaginá-lo deixando de tocar sua guitarra um dia, mas Stanley, hoje com 54 anos, já está de olho no passo seguinte, procurando sair de sua zona de conforto. Um grande músico e sua arte em permanente mutação.