Edição 192 - Aracaju, 07 de dezembro de 2014 a 04 de janeiro de 2015

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Livros

Ironia e absurdo
A literatura irreverente de Biu Ramos

Por W.J. Solha

 

Acabo de ler, às 05:54 desta manhã de 27 de novembro, o ERRE BALADA ( selo Beleléu, Pitomba, Rio de Janeiro, 2014) , desse Biu Ramos que se diz “paraibano, farmacêutico e dócil quando bem alimentado”, e que já teria publicado os livros Blue Note (2007), e Aparecida Blues (2011).

Que gênero? Contos, romance? A ficha catalográfica diz: “Lombra”.

1. Lombra

Por Rodrigo Carvalho (US) em 16-09-2007:

1. "lombra" sensação de relaxamento extremo devido ao uso de maconha.
2. "lombra" sensação de relaxamento extremo devido a uma grande quantidade de comida ingerida.
3. "gastar lombra" jogar um papo para conseguir ficar com uma garota (o).
4 "gastar lombra" ficar por um tempo grande demais falando de assuntos nao pertinentes ao contexto do ato.
5. "lombra" diz-se do sujeito chato, mala, que fala mais do que deve, o que, no entanto, nao denota carater corruptivo.
6. "lombra" situação ou lugar indesejado, chato, intediante, monotono.

Lendo ERRE BALADA, vê-se que é realmente produto da terra, como as coisas de Zé Ramalho e Vital Farias – que também beberam da maravilhosa fonte de Zé Limeira. Produto da terra e da Terra, pois há muito, nele, também, de Beckett, Perec... e, quem sabe, do Finnegans Wake.

Começo pela página 100, a última do livro, a verdadeira derradeira, pois o autor dura mais que seu personagem. Ela diz apenas isto:

“Epitálogo:

Aqui jaz Digitus Erre Linhares.
Cap. 1, pag 13 – cap. 25, pag. 98.
Sua vida foi um livro aberto.”
Por que eu disse Beckett?
Porque há vários diálogos tipo Vladimir e Estragon, do “Esperando Godot”. Dois exemplos:

Página 43 (onde Biu Ramos vai, também, pegar a presepada de Ulisses com o ciclope Polifemo):

- Sua graça?
- Ninguém. E você?
- Também. E o que faz aqui?
- Nada.

Página 49:

Mas, antes, meu caro ouvinte, por que você está ouvindo uma rádio tão boa num volume tão baixo?
Pra evitar estática.
A estática que se mova, aumenta isso aí.
Não posso, estou falando do trabalho.
Ah, é? E onde você trabalha, meu caro ouvinte?
Em uma farmácia.
E, diga-me, como é trabalhar em uma drogaria? Muitas drogas?
É uma farmácia.
Claro, claro, e como vai seu armário de controlados?
Trancado.
Trincado?
Trancado.
Ok. Bem, um abração pra ele.
Pó deixar.
Qual era mesmo a pergunta?
Esqueci.
Eu não.

Uma das epígrafes do livro, por sinal inspiradora, é de Beckett:

“Tente outra vez. Erre outra vez. Erre melhor”.
Aí está, portanto, criado, o personagem R.

E Perec? Sim, ERRE BALADA tem, também, coisas de Perec em “A Vida modo de usar”, equivalentes ao gigantesco subsolo, cheio de lagos, docas, trens, do prédio número 11 da rua Simon-Crubellier, décimo sétimo arrondissement de Paris. Biu escreve, na página 81:

“O corredor longo desembocava em uma cozinha simples: geladeira, pia, fogão; que – por sua vez dava para um quintal que era um mundo, maior que a casa, que a rua, que o bairro, a cidade, o estado. Não se via o fim daquilo, se é que tinha fim.”

ERRE BALADA mostra um autor que contém praticamente toda a literatura do mundo. Machadianamente, por exemplo, começa, o livro, no capítulo zero, dizendo:

“Morri, é vero. E daí?”

"Memórias Póstumas de Brás Cubas”, pensamos imediatamente. Por isso o livro termina com o epitáfio em que as datas são os números das páginas do primeiro e do último capítulo. Ficção pura.

Como o ERRE morreu?
Com uma faca “nas entrelinhas”.

Tal como Carlos Trigueiro, machadiano confesso (que está lançando agora seu também excelente MIERDAMORFOSE), Biu Ramos frequentemente usa a técnica de enumeração machadiana, que tanta dinâmica dá às narrativas. Escreve, por exemplo, tão grande relação dos integrantes de uma muvuca (página 64), que não dá pra reproduzir aqui (“estropiados, pernetas, mancos, contrabandistas, mordidos por cães raivosos...” – e mais cerca de 50 itens). Daí que o autor prossegue,na página seguinte:

“E lá se vai R., perdido em meio à turba, procurando em meio ao caos social o que é a câmera e o que é taipa, o que é chinelo e o que é sapato, o que é gel e o que é gomalina, o que é Chanel e o que é Avon... quem são os eleitos, quem é a lei, quem é mausoléu, e quem é cova, urna.”

Biu Ramos jamais se leva a sério – levando-se e muito, claro – chegando a me matar de rir quando escreve, após o capítulo catorze, catorze-e-meio, catorze-quase-quinze , o quinze, quando diz:

“Vide Rachel de Queiroz. Romance. Clássicos. Outra estante, outra sala.”

Mas o que ele pretende com tudo isso? Página 69:

“A realidade é uma alucinação coletiva, marujo. E daí que, mais nada, só isso.
Calcular é preciso. Viver, outros quinhentos”.
O que se completa na página 84:
“Eu acabo deixando que as coisas passem por mim sem que eu as entenda. Porque, ou eu tento entendê-las ou as vislumbro”.

Resumo da ópera: ERRE BALADA é algo “mucho loco”, na linha do célebre PANAMÉRICA de José Agrippino de Paula, que marcou época. É de uma imaginação tão febril quanto a de alguém que está realmente... febril, delirante. O trecho abaixo vale como trailer:

“Corre em direção à rua (...) só para descobrir, estupefato, que a rua lá fora, o bairro, a cidade inteira, virou um entruncadíssimo labirinto criptográfico, um claustrofóbrico emeranhado de letras entrameladas em palavras soltas, poucas, polkas, porcas, placas, picas, punks, ploc! E. deu de cara com um poste. Não um de cimento, alto, claro, liso, mas com a palavra poste, literalmente. A letra T, mais especificamente, que partiu-se com o impacto. “ etc , etc, etc, tudo tão assumidamente literatura, que Biu prossegue: “R., resumindo, precisa de referências. Um solo por onde andar seria um bom começo. Então, atendendo a pedidos, aqui vai uma dura, áspera, rústica, calçada.”

Pois aproveite e vá com Biu. Cum deus. I qui Jesuis Nosso Sinhô li potreja.

 

W. J. Solha nasceu em 41, Sorocaba-SP, renasceu em Pombal-PB em 63. Trabalhou como ator nos filmes "O Som ao Redor" e "Era uma vez eu, Verônica". Pintou o painel Homenagem a Shakespeare (7,20m de largo), em exposição permanente no auditório da reitoria da UFPB. Escreveu a trilogia de poemas longos - Trigal com Corvos, Marco do Mundo e Esse é o Homem. Vários romances, alguns premiados nacionalmente, como Israel Rêmora (Prêmio Fernando Chinaglia 74), A Batalha de Oliveiros (Prêmio INL 88), Relato de Prócula (Prêmio UBE Rio 2010), a coletânea de contos e romances História Universal da Angústia (finalista do Jabuti 2006). Tem um livro inédito, Brevíssimos Ensaios Muitíssimo Ilustrados.