Edição 192 - Aracaju, 07 de dezembro de 2014 a 04 de janeiro de 2015

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Cinema

Capitalismo e solidariedade
A subversão dos irmãos Dardenne

Por Eduardo Sabino

Foto: Divulgação

A atriz Marion Cottilard em cena do filme "Dois dias, uma noite"

 

Entre os melhores filmes que vi em 2014, está o belga Dois dias, uma noite, dos irmãos Luc Dardenne e Jean-Pierre Dardenne. Na mesma linha do longa irlandês Calvário, outro grande filme desta temporada, o longa gira em torno de um personagem em uma via-crúcis particular. A diferença acontece essencialmente no tom: Calvário é um drama com diálogos cheios de ironia e um humor surpreendente, enquanto o outro vai pelo caminho de uma tensão dramática com raros momentos de alívio e diálogos que refletem, de maneira autêntica, a intenção dos personagens.

Marion Cotillard interpreta Sandra, uma mulher que se recupera de uma depressão e tenta voltar ao trabalho. No regresso, descobre que o seu cargo foi colocado em votação na empresa. Sem ela estar presente, o gestor da equipe pediu aos empregados para decidirem entre um bônus de mil euros ou o emprego da colega. Quase ninguém votou pela sua permanência.

Precisando do emprego para quitar o aluguel da casa onde mora com marido e dois filhos, Sandra convence o patrão, em uma sexta-feira, a fazer uma outra votação na segunda. O tempo do filme transcorre durante esse final de semana em que ela visita os colegas, na companhia do marido, e tanta convencê-los a abrir mão do bônus. Eis o ponto de tensão da trama. Os trabalhadores devem escolher por uma melhoria inegável em suas vidas, que também não são fáceis, ou manter o emprego e garantir a sobrevivência da colega.

Grande atuação de Marion Cotillard na pele de Sandra, que percorre o seu calvário à base de remédios. Desmoronando-se, reerguendo-se, a cada confronto.

Embora adote uma linguagem realista, o filme permite leituras simbólicas: a mais evidente, as referências ao Novo Testamento. São 12 funcionários, como são os apóstolos. Enquanto Sandra, o cordeiro a ser sacrificado, busca aliados contra a demissão - ou a crucificação - o gerente, na posição de diabo, fala com os empregados por telefone e tenta persuadi-los. O dono da empresa também aparece, na cena inicial, para dizer a Sandra que não tem nada contra ela e acataria sem objeções a decisão da equipe, lavando as mãos e dissimulando a responsabilidade da diretoria como um legítimo Pôncio Pilatos.

Mas essa é só uma leitura possível. A obra também pode ser entendida como uma alegoria do capitalismo. A premissa inusitada de por o cargo de um funcionário nas mãos dos seus colegas está longe de colocar os últimos numa condição de poder e sadismo. A tarefa incomoda os responsáveis pela escolha. Enquanto no mundo real a empresa anunciaria o bônus após um corte nos gastos, que envolveria, secretamente, uma ou mais demissões, no filme os trabalhadores são obrigados a enxergar a pessoa atrás dos números e decidir por ela (e por si mesmos). O demônio fantasiado de cordeiro ou o cordeiro fantasiado de demônio, conforme o perfil do colaborador: uma mulher meiga e em colapso que bate às suas portas para receber ódio, indiferença ou compaixão.

A ética e a arte

Aqui temos o exemplo perfeito de que generalizar o que a arte pode ou deve tratar é algo no mínimo arriscado. Arte subversiva, para mim, não é simplesmente o que expõe as perversões humanas - não necessariamente - mas o que tira o mundo do lugar comum, detonando, ainda que subjetivamente, o comodismo do público e as visões dominantes em uma sociedade.

Dois dias, uma noite não é um filme moralista, no sentido pejorativo do termo, nem panfletário. Ainda assim, o longa retira toda sua tensão e interesse de uma questão ética.

Se na superfície os valores trabalhados na trama podem se confundir com os valores de uma propaganda, em uma análise um pouco mais aprofundada veremos a oposição óbvia entre um discurso que busca promover uma marca e seus produtos (um simulacro) e outro que confronta as verdades do espectador, especialmente suas noções de bem e mal.

Longe de oferecer respostas prontas, o filme levanta uma série de questionamentos. Pode haver ainda empatia em tempos de individualismo e competitividade acirrada? Ainda seria possível tomar decisões em benefício próprio e ao mesmo tempo levar em conta o prejuízo do outro?

Resumindo: os irmãos Dardenne fizeram uma puta reflexão sobre a solidariedade no capitalismo ou sobre a solidariedade, apesar do capitalismo. Cineastas fofos e bundões? Não, subversivos.

 

Eduardo Sabino é escritor, autor do livro Ideias noturnas - sobre a grandeza dos dias (Editora Novo Século). Blog do autor: http://www.eduardosabino.com.