Edição 192 - Aracaju, 07 de dezembro de 2014 a 04 de janeiro de 2015
Turismo
Por Romildo Guerrante
Fotos: Romildo Guerrante
Cortona, na Toscana, produz vinhos desde o século III a.C.
Enquanto o carro avança pela estrada que leva da capital italiana para o norte, no mesmo sentido em que foi aberta a Via Ápia, a primeira estrada que permitiu a Roma conquistar o mundo conhecido até então, cruzamos o Lácio e mantemos o rumo para cruzar a Úmbria e alcançar a Toscana, como planejamos. Atravessar o Lácio me evoca a história que esse arrabalde de Roma nos legou na língua estropiada, sem as complicadas desinências do latim, o falar rústico do subúrbio que chegou até nós. Quanto da alma desse povo nos teria sido transportado através da “última flor do Lácio, inculta e bela” que Camões louvou?
Creio que muito. Somos mais italianos que portugueses, percebo nos gestos das pessoas, nos hábitos um tanto anárquicos em relação à rigidez europeia de comportamento social, observo na comida transgressora que mistura verduras com massas, que capricha nos embutidos para fazer inveja aos alemães e franceses, detecto na desordem animada do trânsito. Em tudo isso vejo um pouco de nós, brasileiros, que se sentem em casa no território italiano.
Lateral da Igreja Santa Maria Maggiore, em Florença
Nós conhecemos esses caminhos, que percorremos em outras viagens, mas nunca tínhamos decidido a sentar praça num ponto da Toscana e, em seguidas investidas, apreciar com mais vagar tanto lugar bonito de se ver. Nunca tínhamos ficado tanto tempo à mesa curtindo os sabores da culinária que muda do sul para o norte, embora tenha laços de unidade em pratos-mestre que o mundo inteiro conhece e aprecia. Nunca tínhamos invocado a presença de chefs da gastronomia local para nos repassar um pouco do seu conhecimento da forma mais profissional possível. Fizemos isso durante 10 dias de outubro.
A caminho da Toscana, uma parada breve em Bagnoregio para apreciar o que sobrou da vila etrusca mais antiga da Itália, seguimos para Cortona, nosso destino. Com pouco mais de 20 mil habitantes, Cortona é uma cidade de origem etrusca, plantada no alto de uma colina, no extremo sul da Toscana. Cercada por muros altos, como todas as cidades medievais, tem muita história ao seu redor. Recentemente, descobriram e estão revelando um imenso cemitério de tumbas etruscas, ainda não aberto a visitação.
Santuário Delle Celle, em Cortona, onde São Francisco de Assis viveu os últimos 15 anos
Fica tão ao sul que já pertenceu à Úmbria, fica nos limites da Úmbria. Mas, embora ao sul, está equidistante de várias cidades muito interessantes da região. Mais longe só Florença, a pouco mais de 120 km. Então, a nossa escolha foi ficar em Cortona e, de lá, fazer incursões diárias a outros burgos. Escolha acertada. Fizemos nossa base nessa simpática cidade, de gente boa e prestativa, de bons vinhos e boa comida.
De lá, fomos a Arezzo, Montalcino, Montepulciano, Castiglione Del Lago e até mesmo a Assis, para conhecer a basílica que celebra São Francisco, e também a Florença, para não deixarmos de visitar a verdadeira capital da Toscana, nossa velha conhecida de outras viagens, e onde encerramos o passeio e partimos rumo a Paris.
Cortona ficou mais conhecida depois que a escritora Frances Mayes publicou Sob o sol da Toscana, um livro que é uma verdadeira ode à região de gente simples que cultiva uma culinária peculiar. Pois lá tivemos a confirmação de tudo que Frances contou. Mas encontramos, à medida que nossos contatos foram se aprofundando, o retrato de uma crise econômica que envolve a Europa e que, agravada por mudanças climáticas sérias, está provocando grandes transformações nos hábitos das populações da região.
Trufas negras e brancas. Mais raras, as brancas custam o dobro
Outubro é o mês em que se colhem uvas e azeitonas e se recolhem do subsolo as preciosas trufas, pretas e brancas, de grande valor e de uso extensivo como componente perfumado de vários produtos, massas principalmente, além de uma infinidade de temperos. A colheita vai de setembro a dezembro, variando de um lugar para outro, de uma qualidade de uva para outra. Também é quando o governo italiano libera a caça aos javalis, que proliferam sem controle e arrasam as lavouras de batata. E adoram trufas.
O primeiro impacto foi na visita à vinícola do escritor húngaro Ferenc Maté, em Montalcino. Maté escreveu um belo livro contando a história de seu empreendimento, Um vinhedo na Toscana. Havia chovido na véspera, achar a pequena vinícola perdida no meio de estradinhas rurais não foi fácil, mesmo com GPS. Fomos recebidos muito gentilmente pela mulher dele, a canadense Candace, que participou da grande aventura de deixar Nova York, onde ambos viviam, para recuperar um mosteiro abandonado e transformar aquele cantinho numa produtora de vinhos de qualidade excepcional.
Ferenc havia saído para percorrer os vinhedos, preocupado com a chuva da véspera, que pode ter levado boa parte do açúcar de suas uvas. Com isso, lá se vai a maior qualidade do produto, que é a capacidade de durar no tempo e amadurecer cada vez melhor. Ali tomamos conhecimento do que estava vivendo aquela região. Chovera demais em junho, quando não devia chover, estava seco demais em outubro. E veio uma chuva de encharcamento. Uma noite só de chuva, mas daquelas concentradas.
Basílica de Assis, onde repousam os restos mortais de São Francisco de Assis
Nas sucessivas viagens nos dias imediatos às diversas partes da Toscana, vimos o quanto o clima estava alterado. Estava faltando água nas montanhas por ausência de chuvas na época adequada. Os javalis, com a pouca oferta de água, desceram aos vales e atacaram as lavouras não só de batata, mas também de cebola. Dizem que os javalis também andaram comendo uvas e azeitonas, o que não era hábito deles. Uvas e azeitonas, com colheita prejudicada, devem ter perda superior a 20%, nos disseram os produtores locais. A safra de vinhos deste ano, afetada pela seca, não deve ser lá essas coisas.
Tudo isso ouvimos também em Assis, na Úmbria, onde visitamos a basílica que homenageia São Francisco. De Cortona a Assis vimos a paisagem muito seca. Na própria Cortona, onde estivemos no Santuário Delle Celle, lugar em que São Francisco de Assis passou os últimos 15 anos de vida, o córrego que passava ao lado secou. Em Castiglione Del Lago não havia grande entusiasmo pela caça tradicional aos javalis, pois a crise econômica derrubara os preços dos embutidos desse porco selvagem de carne muito apreciada. Outro fator desfavorável: as caçadas deste ano poderiam tornar o mercado da carne de javali mais ofertado.
Vivemos 10 dias na região dos melhores vinhos da Itália, os Brunello principalmente, de longa tradição, produzidos exclusivamente com a sangiovese, uva nacional da Itália, cujos preços chegam às alturas no Brasil. Lá se encontram bons Brunello a R$ 100 a garrafa, embora existam alguns cujos preços superam os R$ 600. Mas nem só de varietal sangiovese vive a Toscana. Dependendo da região na própria Toscana, há cortes com merlot, cabernet sauvignon e petit verdot, este último meu predileto.
Praça da República, miolo da gastronomia toscana em Cortona
A belíssima Cortona, cercada de muros medievais, produz vinhos desde o século III a.C. Hoje é região demarcada, a primeira na Itália a adicionar a uva syrah em seus cortes. A gastronomia se lambuza em queijos e carnes de gado de uma espécie tipicamente italiana, a chianina, que resulta boas bistecas. Apreciamos essa carne em dois restaurantes, o La Grota e o Logetta. Nenhum deles faria vergonha nos grandes centros da gastronomia mundial.
Mas o melhor de uma viagem dessas, além da convivência com os que viajam conosco, está nos personagens que se tem chance de conhecer e de conviver. Como o Andrea, dono do restaurante Cisterna Dei Toscanici, em Arezzo, que largou tudo pra ir à cozinha fazer uma pasta caprichada para nós. Ele tinha arrendado há seis meses o prédio de uma das três antigas cisternas medievais que abasteciam a cidade. O cardápio é manuscrito, tudo é ainda improvisado. Mas que alegria ouvir suas histórias e apreciar a culinária que capricha tudo numa cozinha apertada num canto da cúpula do antigo reservatório de água.
Conhecer gente como Laurent, do front office do Hotel Madri, em Roma, que se esmera em gentilezas para fazer de nossa estada uma coisa bem gostosa. Gente como os chefs Francesco e Cristiano, que nos ensinaram a preparar pratos toscanos e nos serviram à mesa aquilo que fizemos, com gentileza fora do comum. A Itália não tem apenas a mais criativa culinária do mundo, mas também a gente mais alegre e cordial que se pode encontrar na Europa.
Romildo Guerrante é jornalista e editor da Revista Bio.