Edição 190 - Aracaju, 12 de outubro a 09 de novembro de 2014

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Crônica

Só um garoto
Cena urbana

Por Victor Lima

 

Ele é só um garoto.
Um corpo estirado na calçada de cimento.
Sol de meio-dia.
Posição fetal.
Ainda está vivo.
Um olho inchado, o outro de repente aberto, arregalado.
Não há lágrimas em suas bochechas.
O nariz quebrado.
Do lábio inferior cortado pinga sangue.
Não há sandália.
Pés imundos.
Unhas grandes, podres.
Há vômito.
Ele se contorce.
Na camisa rasgada, uma mancha vermelha não para de crescer.
Um cara tira o celular do bolso e aponta a câmera na direção do garoto.
Este cara é filmado por outro cara que também filma a cena.
Alguém leva a mão à boca.
Alguém leva a mão ao nariz.
Diarreia.
Poça de sangue e merda.
Ele é só um garoto.
Uma senhora pergunta o que houve.
Não há resposta.
Ele passa a língua nos lábios.
O sangue torna a escapulir.
As mãos esqueléticas pressionam a barriga.
Fotos.
Um semicírculo.
Ele urra.
A boca aberta: quase sem dentes.
É só um garoto.
Menos um, alguém ri.
Quem é, a senhora pergunta.
Ninguém.
Ninguém jamais saberá de fato sua história.
História nada original, aparentemente, acredita-se.
Ele é só um garoto.
Vá nessa, ouve-se.
A senhora de repente sentada no chão.
Fecha a mão na mão ensanguentada dele.
Ele já não parece enxergar, mas o olho segue aberto.
Quem foi, a senhora pergunta.
Ele morde os lábios.
O queixo babado.
Saliva e sangue.
Ao longe, sirenes.
Há lágrimas: a senhora.
As pessoas mudam o pé de apoio, param de olhar, coçam o braço: desconforto.
Isso sim parece absurdo, a senhora chorando.
Só mais um grito. O mais alto de todos.
Alguém leva a mão aos ouvidos.
O corpo parado na calçada de cimento no sol de meio-dia.
Talvez desmaio.
Talvez mais que isso.
O olho fechado.
Mais uns segundos de gravação.
Mais umas fotos.
Celulares nos bolsos.
Semicírculo desfeito.
Acabou.
A senhora vê o garoto sendo colocado na ambulância.
Na calçada, só a mancha escura.
Sangue, vômito, bosta.
Quando não há mais ninguém, um homem sai do estabelecimento com balde e vassoura na mão.
Resmunga: puta que pariu.
Resmunga: espantando a freguesia.
Cospe.
Ele era só um garoto.
(Você que tá dizendo, ouço.)
Há vários.
Todos os dias. Aqui, aí, acolá.
Sim, está confirmado: acabou.

 

Victor Lima é jornalista.