Edição 190 - Aracaju, 12 de outubro a 09 de novembro de 2014

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Literatura

O romance de Débora Ferraz
Um ensaio ilustrado

Por W.J. Solha

Foto: Divulgação

Débora Ferraz, autora do romance "Enquanto Deus não está olhando"

 

A própria autora, “sem querer, querendo”, define seu livro na página 91, quando um de seus amigos fala sobre o estudo intenso e os porres que tomava na Irlanda:

Um romance de formação – eu pensava, já um tanto alta da cerveja.

- Parece com alguma história que já li.

Bildungsroman,  "romance de formação", confirma-se na Wikipédia: designa o tipo de romance em que é exposto, de forma pormenorizada, o processo de desenvolvimento físico, moral, psicológico, estético, social ou político de um personagem, geralmente desde a sua infância ou adolescência até um estado de maior maturidade”.

Daí que o livro de Débora Ferraz, Enquanto Deus não está olhando, tem muitos pontos de contato com o filme “Era uma vez eu, Verônica”, do Marcelo Gomes, de que participei como ator em 2010. Poderia, na verdade, chamar-se “Era uma vez eu, Érica”. As duas narrativas fazem a crônica de uma juventude classe média contemporânea do terceiro mundo, centrada nas protagonistas que estão no momento em que têm de decidir o que fazer da vida, estando Verônica, além disso, na iminência de perder o pai que tanto ama – doente terminal –, enquanto Érica já vive o enorme vazio desesperado com a perda do seu.

Aí estamos, Hermila Guedes e eu, em cena do filme:

Tive uma boa discussão com Marcelo sobre o Complexo de Eletra, que me parecia visível na personagem dele, coisa que ele não aceitou sob hipótese alguma, exatamente como José Américo de Almeida refugou quando lhe falei do Complexo de Édipo do Lúcio, d “A Bagaceira”, romance dele, quando eu fazia o delegado de “Soledade”, longa de Paulo Thiago, baseado nessa sua obra. A psicanálise chama isso de “resistência”. Mas há grandes diferenças entre Verônica e Érica, no entanto, e uma delas é que primeira é extremamente liberada e tem vários parceiros sexuais no filme – embora a insatisfação seja evidente – enquanto Érica se sente totalmente desmotivada para qualquer relação mais íntima, por causa do luto. Isso o leitor vê no transcorrer da história, mas a jovem só põe a situação às claras quando, na página 227, uma de suas amigas lhe pergunta se está havendo alguma coisa mais séria entre ela e Vinicius, já que os dois estão se frequentando muito, e ela lhe responde:

- Não posso, porque meu pai morreu há alguns meses. E eu estou bem, mas acho que ainda não estou, sabe... Para algumas coisas. Sexo, por exemplo, se é disso que você fala.

A Duína de Suíte de Silêncios, de Marília Arnaud ( Editora Rocco, Rio, 2012), também é vítima de uma dor insuportável, no caso pelo abandono do amante João Antonio, estando ela própria, doente, sentindo-se morrer. E aí, também, temos uma forte contenção sexual na narrativa, até que, quase na parte final, Duína conta como era enorme o prazer que tinha com seu parceiro.

Mas volto aos complexos de Édipo e Eletra. É curioso como esse tipo específico de amor filial é sempre inexplicável. Mais ainda em Enquanto Deus não está Olhando, pois o velho pai de Érica nada tem a seu favor: doente, longe de ser belo ou charmoso, e grosseiro. Veja este diálogo da página 343, de Érica com uma irmã dele:

- Queria entendê-lo – eu digo - , talvez assim descubra, finalmente, o que eu era pra ele. Porque a gente era do jeito que era um com o outro.

- Você quer que eu traga seu pai de volta?

- Não. Só queria saber mais...

- Olhe... você que é a artista aqui, não é?

- Não é bem assim. Não sou artista como vocês pensam.

- Você é a artista. Quem deve trazê-lo de volta é você.

Para se ver como essa angústia percorre o livro todo, já se lê, cento e setenta páginas antes: Por que escrever? Por que, no caso (ela é artista plástica), pintar?

Eu tinha visto uma vez que a invisibilidade das coisas se combate com tinta.

Isso é muito bonito.

Vira na TV, quando criança:

Alguém joga tinta amarela no homem invisível e, assim, ele se revela e pode ser vencido.

É o que Débora faz escrevendo, Érica pintando. Veja esta série de fragmentos do romance:

Que outras questões havia naquela ligação misteriosa que unia a nós dois por tantos milhares de mundos igualmente abandonados? O que me ligava a um pai que me abandonaria e, por consequência, como nos ligaríamos, nós dois, a rastros igualmente apagados pelo tempo? (Página 81)

Há um belo momento na página 115, que vem muito a propósito num “romance de formação”:

Eu não devia ter nem sete anos da primeira vez que vi meu pai chorar. (..) Eu sentia uma espécie de calafrio, uma emoção. Parecia uma aventura estar ali, sentada ao lado do meu pai. Sensação ampliada por aquele silencio típico das manhãs de domingo com todos dormindo na casa, o ar saturado de oxigênio fresco. Era como se estivesse vivendo dentro de um filme.

Vê-se que Débora Ferraz trabalha bem com o uso de capítulos curtos e, de quando em quando, surpreendentes, como o trecho ( páginas 122 a 127 ) em que ela conta um sonho impressionante, em que o pai, morto, volta pra casa, “molhado da cabeça aos pés”, com “um forte cheiro de sargaço vindo de seu corpo.”

E por que o namorado?

Penso que se eu descobrir meu problema com Vinicius, descubro o problema do meu pai. (Página 59)

Os olhos dele (Vinicius) lembravam... o que mesmo? Lembrei dos olhos de meu pai. (Página 301)

Mas a verdade é que não se trata apenas de alguma semelhança física. É que Vinicius está pra se mandar pra Argentina. O pai dela, portanto, se foi de um modo, ele se irá de outro. É como se ela buscasse uma ab-reação.

Cena bergmaniana, lá na página 278:

Uma agonia me corroendo. Um relógio sem ponteiros que me lembrava o relógio de parede que havia no bar em que meu pai costumava beber.

 

Débora Ferraz nos põe – como voyeurs – nas páginas 165 e 166, numa cena que se vê muito, em cinema, só com amantes desesperadas pelo abandono: Érica abre o guarda-roupa do pai, aflita pelo cheiro da pele dele. Depois sai correndo, como se abandonasse uma cena de crime.

Atenção: a maioria dos romances me parece ter ritmo de cinema. O de Débora, o de histórias em quadrinhos. Suas descrições não têm equivalentes a panorâmicas horizontais e verticais, zoons. Elas são seccionadas, sequenciadas, e a mente – como no caso das HQs - é que faz os movimentos e fusões. Claro que os gibis têm muito dos storyboards mas, no caso dela, seria um somente com planos de detalhe, closes, primeiros planos, planos americanos, planos de conjunto e planos gerais. Cortes secos.

Veja tudo decupado por mim, apenas introduzindo barras:

Pag. 15

Olhei para trás. / Vinicius falava alguma coisa com o homem que ficava vigiando a portaria, como se pedisse informação, / franzia o cenho, / gesticulava direções, / fazia afirmações com a cabeça, / segurava as alças da mochila nas costas.

Pág. 21

Continuei olhando para a esquerda, para a direção do / portão, que era de onde o carro chegaria. / Bem ali, ao meu lado esquerdo, / percebi que uma menina dormia nos braços de uma mãe morena, / que aninhava os dedos nos cabelos cacheados da menina.

Pág. 39

Encarei minhas mãos,/ as unhas quebradas, / a marca da picada de abelha, / e depois olhei para sua direção. / Ela fazia que sim com a cabeça, / de olhos fechados,/ espremendo os lábios como se segurasse um choro.

Pág. 65

Dentro do quarto, / da janela, / vejo que o céu tem estrelas. / Desvio novamente o olhar e / encontro o mural de avisos à minha esquerda. / Página 3 da revista. / Edição de fotos., identidade visual. / Capa. / Tudo está em atraso, ainda. / Me encolho. / O calendário tem um dia marcado com caneta./ Cinco de maio.

Compare-se o visto acima com uma página do Valentina, de Crepax:

Ou com uma página de nosso genial Shiko:


... ou, a propósito, uma página do Elektra, de Sienkiewics:

 

Lance curioso: o “Era uma vez eu, Verônica”, começa e termina com todo mundo nu, entrando no mar.

No livro de Débora Ferraz há quase isso. Na página 225 a turma de Érica tira a roupa – embora não toda - e ela, apesar da relutância, adere. E aí talvez esteja uma explicação para o comportamento que não cheguei a compreender, no filme:

Estou me esforçando. Estou num esforço sobre-humano para ser igual a todos vocês e ficar rindo para ver se isso tudo dói menos.

Mas há outra diferença importante entre Verônica e Érica. Meu personagem, pai da de Hermila Guedes, trabalha com contabilidade, mesmo doente, pra manter a filha na faculdade de medicina. E ela corresponde ao esforço: forma-se, e sua crise ocorre quando – além de saber que o pai está para morrer – depara-se, psiquiatra, com o mundo terrível dos deprimidos, ansiosos e loucos. Com o que o filme ganha uma dimensão social que o romance da Débora Ferraz não tem. Ou tem, pelo contraste. Pela inutilidade da turma de Érica, vivendo de noitadas e grandes porres. A mãe dela se choca com isso:

Vocês são todos meio assim agora, pensam demais, se perdem demais. (Pág. 320)

Hamlet.

O tio dele parece falar com Érica, quando se dirige ao Príncipe da Angústia:

O REI: Recomenda-te, Hamlet, a natureza chorares o teu pai dessa maneira Mas, lembra-te: teu pai perdeu um pai, que o seu, também, perdera. Ao filho vivo cabe o grato dever de lastimá-lo por algum tempo. Mas mostrar tão grande obstinação no luto, é dar indícios de teima e de impiedade; é a dor dos fracos; revela uma vontade ímpia e rebelde, coração débil, mente anarquizada, inteligência pobre e sem cultivo.

O livro é todo um farto material para psicanálise, a que acrescento isto: Começou a ser escrito em 2008. Em 2009, o pai da autora faleceu. E a obra só foi retomada em 2011. John Shakespeare, pai do dramaturgo, morreu em 1601, ano que se atribui à estreia do Hamlet.

Bem, a conclusão é a de que temos uma nova romancista no pedaço, em que entra já premiada e com uma obra que descende dos clássicos, dotada de um andamento dos que não têm pressa. O mesmo de Marília Arnaud em Suíte de Silêncios. São trezentos e sessenta páginas com a odisseia de uma jovem que – perdido o rumo – quando sai do lugar, sai em círculos. Como Ulisses. Leopold Bloom. E talvez o maior mérito da autora é o de não colocar ao alcance dela nenhum intelectual, conseguindo, com isso, reproduzir com fidelidade o universo de uma jovem comum de nossos dias.

 

W. J. Solha nasceu em 41, Sorocaba-SP, renasceu em Pombal-PB em 63. Trabalhou como ator nos filmes "O Som ao Redor" e "Era uma vez eu, Verônica". Pintou o painel Homenagem a Shakespeare (7,20m de largo), em exposição permanente no auditório da reitoria da UFPB. Escreveu a trilogia de poemas longos - Trigal com Corvos, Marco do Mundo e Esse é o Homem. Vários romances, alguns premiados nacionalmente, como Israel Rêmora (Prêmio Fernando Chinaglia 74), A Batalha de Oliveiros (Prêmio INL 88), Relato de Prócula (Prêmio UBE Rio 2010), a coletânea de contos e romances História Universal da Angústia (finalista do Jabuti 2006). Tem um livro inédito, Brevíssimos Ensaios Muitíssimo Ilustrados.